O endereço residencial do poeta, ensaísta e pesquisador Affonso Ávila em Belo Horizonte tornou-se referência internacional de pujança cultural, grandes encontros e celebrações poéticas durante várias décadas. O "solar dos Ávila", como exprimiu Haroldo de Campos certa feita, ficava na Rua Cristina, 1300, no bairro Santo Antônio, e lá, ao lado do poeta, vivia sua companheira Laís Corrêa de Araújo e os filhos também ligados à literatura: o poeta Carlos Ávila, a escritora e historiadora Cristina Ávila e a tradutora e professora Myriam Ávila. Sobretudo, nos anos de chumbo, de ditadura militar, nos anos 1960 e 1970, a Rua Cristina, 1300 desempenhou papel agregador, acolhendo escritores, artistas e intelectuais mineiros, de outros estados e também estrangeiros.
Neste 2024, quando o Golpe de 64 completou 60 anos, a Rua Cristina, 1300 ressurgiu insurgente nas telas do cinema graças a uma profunda conhecedora da história da casa, de Affonso Ávila e da dinâmica cultural belorizontina, contextual, que os acercava: Eleonora Santa Rosa. O filme "Cristina 1300 - Affonso Ávila, homem ao termo", já exibido em várias paragens, não é apenas justa homenagem ao grande poeta, mas uma intervenção crítica no agora desmemoriado que temos amargado, resgate de um tempo humanista que, se dermos por perdido, a própria cultura brasileira se perderá na vaziez digital, institucional. Sphera disponibiliza aqui, como reconhecimento ao gesto da Diretora, a apresentação do filme, um poema inédito de Affonso Ávila, cenas e fotos do filme. (Anelito de Oliveira)
Cristina, 1300
EDUARDO DE JESUS
Ao longo do tempo as relações entre cinema e literatura foram construídas de
inúmeras maneiras. Às vezes, relações de proximidade, outras de afastamento e
tensão combinando elementos históricos e contemporâneos em contextos artísticos
cada vez mais hibridizados. Já a poesia em sua dimensão formal realoca as linhas de
força entre palavra e imagem ampliando sentidos e significações. Operações de
linguagem que redistribuem as fronteiras entre as derivas da imagem e suas conexões
com a palavra, tensionando as escalas da significação em um infinito jogo de
possíveis. Ampliando ainda mais, as passagens entre a palavra e as imagens em
movimento aproximam as tradições da edição de textos da literatura e a da montagem
das imagens do cinema em um diálogo sensível, repleto de atraentes riscos. Como
uma faca de dois gumes, o manuseio da edição-montagem dá novo sentido ao corte
reelaborando linguagens em formas híbridas, como se estivessem sempre em trânsito
entre um domínio e outro.
Foi em torno dessa abordagem – potencializando a força poética-visual da
palavra – que Eleonora Santa Rosa concebeu o documentário “Cristina 1300 – Affonso
Ávila - Homem ao termo”, sua estreia na direção cinematográfica. Santa Rosa em seu
primeiro longa (codireção com Marcelo Braga, 60 min, 2023) toma essa robusta
tradição das relações entre palavra e imagem em movimento para nos apresentar o
universo poético de Affonso Ávila (1928-2012) em sua vida literária. Poeta
incontornável da tradição construtivista e experimental brasileira, Ávila foi ainda um
intelectual engajado na reflexão e na crítica, especialmente em torno do Barroco
Mineiro, referência importante de sua produção ensaística e poética.
Distante dos filmes biográficos mais tradicionais sobre escritores e poetas,
normalmente ancorados nas palavras de comentadores e especialistas, “Cristina
1300...” mostra a escolha ousada de sua diretora de tomar o signo poético fazendo-o
emergir potente em sua forma sonora e visual, sobretudo na voz do poeta. As relações
entre os registros sonoros e visuais trazem a palavra em destaque na tela criando
novas dobras de significação. Tudo se abre em uma operação verbivocovisual que ao
tangenciar as especificidades dos códigos da imagem em movimento nos revela a
força e a singularidade da poesia de Ávila.
Vemos no filme o poeta redimensionando os limites simbólicos de seu território.
Heterotopia do vasto mundo, a casa da rua Cristina, número 1300, torna-se cidade,
estado e país, como vemos nas entrevistas e depoimentos de Affonso conduzidos de
forma precisa por Santa Rosa. Território que cresce em proporções, reinventando os
limites da casa. Território fabulado, onde Ávila viveu grande parte de sua vida e
constituiu sua família com a também poeta e escritora Laís Corrêa de Araujo (1928 –
2006). Não por acaso, no documentário, logo depois da disruptiva leitura do radical e
irônico “Por que me ufano de meus pais” (Código de Minas, 1969) que apresenta o
poeta e seu nome: “ah!fonso”, vemos imagens prosaicas de Affonso Ávila saindo de
sua casa. Depois da sequência eloquente com cortes rápidos que intercalam as
imagens do poeta e o belíssimo teto da Matriz de Santo Antônio, em Itaverava, de
Manuel da Costa Athaíde, a simples saída de casa.
São duas sequências que marcam questões importantes no filme. De um lado
a saída de seu território, o encontro com a rua e o fora: o poeta se dando a ver como
gesto fundante do documentário. De outro o homem comum, ligado a força política e
afetiva da dimensão cotidiana na vida. Há um interessante paradoxo entre estas duas
breves sequências de imagens logo no começo que Eleonora habilmente, e
escapando do lugar comum, fez espraiar de forma inspiradora e poética por todo o
filme.
Em “Porque me ufano de meus pais” Ávila se reporta ao livro do Conde Afonso
Celso, “Por que me ufano de meu país”, publicado em 1900, e subverte a referência a
que se endereçou na genial repetição de uma estrutura sonora que ironiza a si próprio
e seu nome em uma vigorosa operação poética. “affonso excelso barroco de ahs! e
silêncios”. Logo na imagem seguinte, após os créditos de abertura do filme, o poeta
como homem comum, como um cidadão qualquer da cidade, que aprecia
distraidamente as rosas de seu jardim. Apesar de toda invenção e subversão dos
cânones da poesia, das múltiplas referências presentes em sua obra, Affonso faz isso
sem estardalhaço. É como se víssemos a superfície silenciosa e tranquila de um lago,
mas que em sua profundidade ecoa uma intensa e contínua explosão. O homem
comum e sua poesia singular, como sutilmente o filme de Eleonora Santa Rosa nos
faz perceber.
Tudo isso, sabemos, só é possível graças a uma intensa cumplicidade – um
diálogo constante ativado por uma proximidade cotidiana e íntima – entre Affonso e a
diretora, como nos sinaliza o sensível texto de entrada no filme. Eleonora nos diz “(...)
tive a sorte e o privilégio de privar de sua convivência por 31 anos. (...) Sinto imensa
falta de sua presença atenuada pela leitura constante de seu legado.” Trata-se da
visão pessoal de Santa Rosa, no entanto, calcada em uma leitura extremamente
atenta e sensível da vida-obra de Affonso pela sua produção poética. O desejo que o
poeta seja cada vez mais conhecido e sua obra aclamada por sua potência singular,
questão que, de alguma forma, impulsiona o documentário e que também aparece no
texto introdutório da diretora.
Por isso, certamente vemos o filme atravessar a obra do poeta desde o início
até os últimos poemas, inclusive um inédito, em uma inventiva trilha não linear. A
maior parte da rigorosa seleção de poemas foi realizada pela diretora juntamente com
o poeta antes e durante o período das gravações realizadas em 2011 e 2012, que
integrariam o então futuro documentário. A vida do poeta contada pelo conjunto de
poemas, nos mostrando o tempo passar. De seu território simbólico Affonso nos revela
como se deu seu interesse pela poesia, sua relação com as cidades de Belo
Horizonte, Itaverava e Ouro Preto, um pouco de seu método de trabalho, comenta
seus livros, fases e filiações. Tudo se expande nas relações com as imagens.
Eleonora na direção do manejo da edição-montagem, na relação entre palavra e
imagem elabora – tanto no expressivo conjunto de entrevistas e depoimentos quanto
nas leituras de seus poemas e nas animações que ocupam a tela – a força de uma
produção poética densa, extremamente inventiva e ousada da qual exala um alto teor
crítico alcançado pelo uso radical da linguagem.
Ao longo do filme conhecemos a vida literária de Affonso Ávila. Seus poemas
em suas múltiplas materialidades nos guiam, ativam e constroem pontes e conexões
entre passado e presente, entre a história do Brasil, o coletivo e a subjetividade da
figura do poeta, num jogo que se abre em muitas linhas. Eleonora construiu
transversalmente na direção – na tensão entre edição de texto e montagem da
imagem – a trajetória poética de Affonso.
A proximidade com o poeta e com as dinâmicas de seu léxico poético
permitiram a Santa Rosa trazer para a estrutura do documentário a mesma precisão e
rigor com que Ávila corta e sobrepõe palavras, frases e referências em seus poemas.
Esse gesto de montagem-edição é uma escolha visual e de encaminhamento narrativo
que imprime ao filme uma constante abertura das significações. As palavras
habilmente figuram na tela reterritorializando seus sentidos assim como as imagens
que se misturam a elas na singularidade de suas relações. Aos poucos somos
apresentados a um repertório de signos que habitam o universo da obra de Affonso
Ávila.
O “&”, como in(ter)venção poética e gráfica do livro Cantaria Barroca (1973-
1975) desenvolvida pelo poeta e artista gráfico Sebastião Nunes, torna-se outra
matéria na articulação proposta por Santa Rosa. Como forma de tradução, passagem
quase impossível de uma linguagem a outra, Eleonora faz da cantaria poética e gráfica
de Nunes e Ávila pura duração, cinemática que constitui um elemento dinâmico, para
unir e atravessar as partes do filme compondo um contínuo heterogêneo. O resultado
é uma forma híbrida da palavra-imagem que se estabelece entre a força dos
impressos, revelando texturas e volumes típicos do papel, e a imagem em movimento.
Figuram no filme – como um deleite visual, intrigante e desafiador – as belas
passagens entre a imagem filmada dos livros, as imagens em movimento e as
animações que nos endereçam ao inventivo universo gráfico que caracterizou alguns
dos livros de Affonso. Um traço de absoluta coerência imagética e conceitual entre as
passagens do impresso ao documentário, da palavra impressa à palavra filmada.
Com isso, vemos que o filme de Santa Rosa traz a visão pessoal adensada na
pesquisa e na experimentação audiovisual que em sofisticadas operações de
linguagem nos revela a dimensão poética da vida de Affonso Ávila. Proust dizia que “a
verdadeira vida, a vida enfim descoberta e esclarecida, a única vida portanto
realmente vivida, é a literatura”. É em torno dessa chave que Santa Rosa
inventivamente ancorou seu filme. Poesia que se entrelaça à vida para pontuar os
períodos históricos que Affonso, em sua verve crítica e posicionada, refletiu com sua
produção. Ao mesmo tempo esses pontos se expandem colocando-os em contato
direto com as forças do tempo presente. A ditadura militar aparece em uma das mais
belas e expressivas sequências do filme. Com elaboradas e sutis sobreposições de
imagens, quase sombrias, do casario barroco que se ergue a beira da estrada surge
na tela o poema “Passagem de Mariana” do livro Código de Minas (1963-1967).
Estamos em um túnel, que aos poucos torna-se intensamente vermelho, reproduzindo
a capa de Código Nacional de Trânsito (1971-1973), nos levando ao período da
ditadura militar. Junto com os poemas do livro fortemente críticos ao Regime, que
figuram na tela em primorosas animações, a leitura de Santa Rosa de um texto de
Affonso nos mostra as apreensões e medos trazidos pela violência da repressão.
O filme segue expandindo o território simbólico de Ávila levando-nos até Ouro
Preto, para revelar sua proximidade com a arquitetura barroca, as ruas e ladeiras da
cidade, como ele mesmo nos diz, “(...) tinha uma intimidade com cada canto da
cidade”. É dessa intimidade que vemos o poeta lendo seus poemas em rigorosos
enquadramentos nas belas paisagens barrocas. O lugar assume outros contornos,
adensa a experiência poética e revela a força de sua história. É justo nas sequências
de Ouro Preto que Affonso nos brinda com um texto inédito sobre a cidade que ele
próprio trata de dar as direções como gostaria que figurassem as palavras na tela:
“focalizar o texto e mostrá-lo em amplitude”. O texto, como não poderia deixar de ser,
é de uma beleza e uma precisão desconcertantes e em sua inserção na tela revela a força da síntese em Ávila. “(...) Uma paisagem construída de mitos e cicatrizes
fatalmente nos leva ao deslumbramento visual, ao recolhimento e reflexão (...)”.
Assim como vimos com o poema que abre o filme no qual o nome do poeta
ganha muitas variações, Eleonora Santa Rosa cria articulações visuais e sonoras,
entre imagem e palavra, para nos mostrar a pluralidade da criação poética de Affonso
Ávila. Somos convidados a entrar em sua produção não apenas como uma forma de
compreendermos a função central da poesia no mundo atual, mas sobretudo para
percebermos a força política da invenção poética e seu desafio histórico ao atravessar
o tempo.
Talvez seja importante, ao terminar este brevíssimo texto de apresentação do
filme “Cristina 1300 – Affonso Ávila - Homem ao termo”, dizer de um imenso respeito,
admiração e total empatia com o poeta. Eleonora Santa Rosa nos coloca em contato
direto e profundo com essa obra poética para entre as imagens nos revelar de forma
precisa e delicada um poeta engajado, irônico, bem humorado, sagaz e absolutamente
brilhante em suas formulações.
O filme nos convida a entrar nas derivas poéticas de Affonso e nos conduz a
uma viagem repleta de surpresas como a divertida e quase desafinada performance
de Ávila fechando o filme, nos deixando ainda com mais saudades.
Eduardo de Jesus é professor do Departamento de Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG.
afrodísias
AFFONSO ÁVILA
esgueire-se mulher por este beco exíguo
e retire ao final a placa rua sem saída
os deuses generosos dão um átimo de vida
pela permuta e desfrute da musa afrodite
filha do sexo e espuma do mar
e o mais é caminhar esquinado
entre dobras de apelo e de charme
isto é entre rampas da alegria
bens caídos bençãos do céu de abril
e a cada passo uma dança primeva
evoluindo azul e nesgas de joias
pendentes aos braços tornozelos
e quantos a acompanham
sussurram o amor contido
camuflado de canto e anelo
flagrar fim e sim não e quão
a cada corrimão a cada escada
o olimpo é um palácio de imaginação
percorrer pós ela salas e labirintos
transidos pela vontade
e quem não há de perguntar
numens ou homens onde estará
a procurada a desejada a perseguida
a que o tempo não timbra nem fenece
e a luz da tarde aquece
sol que não descamba e queima
e teima seu calor e obnubila a noite
lugar que restou ao poeta
ainda a suar a trescalar
o dia que se foi mas legou seu ímpeto
esta é reta: o verso é o viagra do poeta
Poema extraído de livro inédito Descante deixado por Affonso Ávila
[Trailer oficial] Cristina, 1300 - Affonso Ávila - Homem ao Termo
DOCUMENTUM CRISTINA, 1300
1) Cartaz do filme Cristina, 1300 - Affonso Ávila Homem ao Termo
2) Material de divulgação do filme
3) Poema de Affonso Ávila
4) Affonso Ávila em cena
5) A Diretora Eleonora Santa Rosa e colaboradores
6) A Diretora Eleonora Santa Rosa
Trailer e fotos: Divulgação
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