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Foto do escritorRevista Sphera

AffonCinÁvila: filme de Eleonora Santa Rosa celebra o poeta Affonso Ávila


Affonso Ávila (1928/2012), um dos mais importantes poetas brasileiros do século XX, também ensaísta e referência fundamental na pesquisa sobre o Barroco mineiro, em cena do documentário Cristina, 1300. Foto: Divulgação

O endereço residencial do poeta, ensaísta e pesquisador Affonso Ávila em Belo Horizonte tornou-se referência internacional de pujança cultural, grandes encontros e celebrações poéticas durante várias décadas. O "solar dos Ávila", como exprimiu Haroldo de Campos certa feita, ficava na Rua Cristina, 1300, no bairro Santo Antônio, e lá, ao lado do poeta, vivia sua companheira Laís Corrêa de Araújo e os filhos também ligados à literatura: o poeta Carlos Ávila, a escritora e historiadora Cristina Ávila e a tradutora e professora Myriam Ávila. Sobretudo, nos anos de chumbo, de ditadura militar, nos anos 1960 e 1970, a Rua Cristina, 1300 desempenhou papel agregador, acolhendo escritores, artistas e intelectuais mineiros, de outros estados e também estrangeiros.

Neste 2024, quando o Golpe de 64 completou 60 anos, a Rua Cristina, 1300 ressurgiu insurgente nas telas do cinema graças a uma profunda conhecedora da história da casa, de Affonso Ávila e da dinâmica cultural belorizontina, contextual, que os acercava: Eleonora Santa Rosa. O filme "Cristina 1300 - Affonso Ávila, homem ao termo", já exibido em várias paragens, não é apenas justa homenagem ao grande poeta, mas uma intervenção crítica no agora desmemoriado que temos amargado, resgate de um tempo humanista que, se dermos por perdido, a própria cultura brasileira se perderá na vaziez digital, institucional. Sphera disponibiliza aqui, como reconhecimento ao gesto da Diretora, a apresentação do filme, um poema inédito de Affonso Ávila, cenas e fotos do filme. (Anelito de Oliveira)



Cristina, 1300


EDUARDO DE JESUS



Ao longo do tempo as relações entre cinema e literatura foram construídas de

inúmeras maneiras. Às vezes, relações de proximidade, outras de afastamento e

tensão combinando elementos históricos e contemporâneos em contextos artísticos

cada vez mais hibridizados. Já a poesia em sua dimensão formal realoca as linhas de

força entre palavra e imagem ampliando sentidos e significações. Operações de

linguagem que redistribuem as fronteiras entre as derivas da imagem e suas conexões

com a palavra, tensionando as escalas da significação em um infinito jogo de

possíveis. Ampliando ainda mais, as passagens entre a palavra e as imagens em

movimento aproximam as tradições da edição de textos da literatura e a da montagem

das imagens do cinema em um diálogo sensível, repleto de atraentes riscos. Como

uma faca de dois gumes, o manuseio da edição-montagem dá novo sentido ao corte

reelaborando linguagens em formas híbridas, como se estivessem sempre em trânsito

entre um domínio e outro.

Foi em torno dessa abordagem – potencializando a força poética-visual da

palavra – que Eleonora Santa Rosa concebeu o documentário “Cristina 1300 – Affonso

Ávila - Homem ao termo”, sua estreia na direção cinematográfica. Santa Rosa em seu

primeiro longa (codireção com Marcelo Braga, 60 min, 2023) toma essa robusta

tradição das relações entre palavra e imagem em movimento para nos apresentar o

universo poético de Affonso Ávila (1928-2012) em sua vida literária. Poeta

incontornável da tradição construtivista e experimental brasileira, Ávila foi ainda um

intelectual engajado na reflexão e na crítica, especialmente em torno do Barroco

Mineiro, referência importante de sua produção ensaística e poética.

Distante dos filmes biográficos mais tradicionais sobre escritores e poetas,

normalmente ancorados nas palavras de comentadores e especialistas, “Cristina

1300...” mostra a escolha ousada de sua diretora de tomar o signo poético fazendo-o

emergir potente em sua forma sonora e visual, sobretudo na voz do poeta. As relações

entre os registros sonoros e visuais trazem a palavra em destaque na tela criando

novas dobras de significação. Tudo se abre em uma operação verbivocovisual que ao

tangenciar as especificidades dos códigos da imagem em movimento nos revela a

força e a singularidade da poesia de Ávila.

Vemos no filme o poeta redimensionando os limites simbólicos de seu território.

Heterotopia do vasto mundo, a casa da rua Cristina, número 1300, torna-se cidade,

estado e país, como vemos nas entrevistas e depoimentos de Affonso conduzidos de

forma precisa por Santa Rosa. Território que cresce em proporções, reinventando os

limites da casa. Território fabulado, onde Ávila viveu grande parte de sua vida e

constituiu sua família com a também poeta e escritora Laís Corrêa de Araujo (1928 –

2006). Não por acaso, no documentário, logo depois da disruptiva leitura do radical e

irônico “Por que me ufano de meus pais” (Código de Minas, 1969) que apresenta o

poeta e seu nome: “ah!fonso”, vemos imagens prosaicas de Affonso Ávila saindo de

sua casa. Depois da sequência eloquente com cortes rápidos que intercalam as

imagens do poeta e o belíssimo teto da Matriz de Santo Antônio, em Itaverava, de

Manuel da Costa Athaíde, a simples saída de casa.

São duas sequências que marcam questões importantes no filme. De um lado

a saída de seu território, o encontro com a rua e o fora: o poeta se dando a ver como

gesto fundante do documentário. De outro o homem comum, ligado a força política e

afetiva da dimensão cotidiana na vida. Há um interessante paradoxo entre estas duas

breves sequências de imagens logo no começo que Eleonora habilmente, e

escapando do lugar comum, fez espraiar de forma inspiradora e poética por todo o

filme.

Em “Porque me ufano de meus pais” Ávila se reporta ao livro do Conde Afonso

Celso, “Por que me ufano de meu país”, publicado em 1900, e subverte a referência a

que se endereçou na genial repetição de uma estrutura sonora que ironiza a si próprio

e seu nome em uma vigorosa operação poética. “affonso excelso barroco de ahs! e

silêncios”. Logo na imagem seguinte, após os créditos de abertura do filme, o poeta

como homem comum, como um cidadão qualquer da cidade, que aprecia

distraidamente as rosas de seu jardim. Apesar de toda invenção e subversão dos

cânones da poesia, das múltiplas referências presentes em sua obra, Affonso faz isso

sem estardalhaço. É como se víssemos a superfície silenciosa e tranquila de um lago,

mas que em sua profundidade ecoa uma intensa e contínua explosão. O homem

comum e sua poesia singular, como sutilmente o filme de Eleonora Santa Rosa nos

faz perceber.

Tudo isso, sabemos, só é possível graças a uma intensa cumplicidade – um

diálogo constante ativado por uma proximidade cotidiana e íntima – entre Affonso e a

diretora, como nos sinaliza o sensível texto de entrada no filme. Eleonora nos diz “(...)

tive a sorte e o privilégio de privar de sua convivência por 31 anos. (...) Sinto imensa

falta de sua presença atenuada pela leitura constante de seu legado.” Trata-se da

visão pessoal de Santa Rosa, no entanto, calcada em uma leitura extremamente

atenta e sensível da vida-obra de Affonso pela sua produção poética. O desejo que o

poeta seja cada vez mais conhecido e sua obra aclamada por sua potência singular,

questão que, de alguma forma, impulsiona o documentário e que também aparece no

texto introdutório da diretora.

Por isso, certamente vemos o filme atravessar a obra do poeta desde o início

até os últimos poemas, inclusive um inédito, em uma inventiva trilha não linear. A

maior parte da rigorosa seleção de poemas foi realizada pela diretora juntamente com

o poeta antes e durante o período das gravações realizadas em 2011 e 2012, que

integrariam o então futuro documentário. A vida do poeta contada pelo conjunto de

poemas, nos mostrando o tempo passar. De seu território simbólico Affonso nos revela

como se deu seu interesse pela poesia, sua relação com as cidades de Belo

Horizonte, Itaverava e Ouro Preto, um pouco de seu método de trabalho, comenta

seus livros, fases e filiações. Tudo se expande nas relações com as imagens.

Eleonora na direção do manejo da edição-montagem, na relação entre palavra e

imagem elabora – tanto no expressivo conjunto de entrevistas e depoimentos quanto

nas leituras de seus poemas e nas animações que ocupam a tela – a força de uma

produção poética densa, extremamente inventiva e ousada da qual exala um alto teor

crítico alcançado pelo uso radical da linguagem.

Ao longo do filme conhecemos a vida literária de Affonso Ávila. Seus poemas

em suas múltiplas materialidades nos guiam, ativam e constroem pontes e conexões

entre passado e presente, entre a história do Brasil, o coletivo e a subjetividade da

figura do poeta, num jogo que se abre em muitas linhas. Eleonora construiu

transversalmente na direção – na tensão entre edição de texto e montagem da

imagem – a trajetória poética de Affonso.

A proximidade com o poeta e com as dinâmicas de seu léxico poético

permitiram a Santa Rosa trazer para a estrutura do documentário a mesma precisão e

rigor com que Ávila corta e sobrepõe palavras, frases e referências em seus poemas.

Esse gesto de montagem-edição é uma escolha visual e de encaminhamento narrativo

que imprime ao filme uma constante abertura das significações. As palavras

habilmente figuram na tela reterritorializando seus sentidos assim como as imagens

que se misturam a elas na singularidade de suas relações. Aos poucos somos

apresentados a um repertório de signos que habitam o universo da obra de Affonso

Ávila.

O “&”, como in(ter)venção poética e gráfica do livro Cantaria Barroca (1973-

1975) desenvolvida pelo poeta e artista gráfico Sebastião Nunes, torna-se outra

matéria na articulação proposta por Santa Rosa. Como forma de tradução, passagem

quase impossível de uma linguagem a outra, Eleonora faz da cantaria poética e gráfica

de Nunes e Ávila pura duração, cinemática que constitui um elemento dinâmico, para

unir e atravessar as partes do filme compondo um contínuo heterogêneo. O resultado

é uma forma híbrida da palavra-imagem que se estabelece entre a força dos

impressos, revelando texturas e volumes típicos do papel, e a imagem em movimento.

Figuram no filme – como um deleite visual, intrigante e desafiador – as belas

passagens entre a imagem filmada dos livros, as imagens em movimento e as

animações que nos endereçam ao inventivo universo gráfico que caracterizou alguns

dos livros de Affonso. Um traço de absoluta coerência imagética e conceitual entre as

passagens do impresso ao documentário, da palavra impressa à palavra filmada.

Com isso, vemos que o filme de Santa Rosa traz a visão pessoal adensada na

pesquisa e na experimentação audiovisual que em sofisticadas operações de

linguagem nos revela a dimensão poética da vida de Affonso Ávila. Proust dizia que “a

verdadeira vida, a vida enfim descoberta e esclarecida, a única vida portanto

realmente vivida, é a literatura”. É em torno dessa chave que Santa Rosa

inventivamente ancorou seu filme. Poesia que se entrelaça à vida para pontuar os

períodos históricos que Affonso, em sua verve crítica e posicionada, refletiu com sua

produção. Ao mesmo tempo esses pontos se expandem colocando-os em contato

direto com as forças do tempo presente. A ditadura militar aparece em uma das mais

belas e expressivas sequências do filme. Com elaboradas e sutis sobreposições de

imagens, quase sombrias, do casario barroco que se ergue a beira da estrada surge

na tela o poema “Passagem de Mariana” do livro Código de Minas (1963-1967).

Estamos em um túnel, que aos poucos torna-se intensamente vermelho, reproduzindo

a capa de Código Nacional de Trânsito (1971-1973), nos levando ao período da

ditadura militar. Junto com os poemas do livro fortemente críticos ao Regime, que

figuram na tela em primorosas animações, a leitura de Santa Rosa de um texto de

Affonso nos mostra as apreensões e medos trazidos pela violência da repressão.

O filme segue expandindo o território simbólico de Ávila levando-nos até Ouro

Preto, para revelar sua proximidade com a arquitetura barroca, as ruas e ladeiras da

cidade, como ele mesmo nos diz, “(...) tinha uma intimidade com cada canto da

cidade”. É dessa intimidade que vemos o poeta lendo seus poemas em rigorosos

enquadramentos nas belas paisagens barrocas. O lugar assume outros contornos,

adensa a experiência poética e revela a força de sua história. É justo nas sequências

de Ouro Preto que Affonso nos brinda com um texto inédito sobre a cidade que ele

próprio trata de dar as direções como gostaria que figurassem as palavras na tela:

“focalizar o texto e mostrá-lo em amplitude”. O texto, como não poderia deixar de ser,

é de uma beleza e uma precisão desconcertantes e em sua inserção na tela revela a força da síntese em Ávila. “(...) Uma paisagem construída de mitos e cicatrizes

fatalmente nos leva ao deslumbramento visual, ao recolhimento e reflexão (...)”.

Assim como vimos com o poema que abre o filme no qual o nome do poeta

ganha muitas variações, Eleonora Santa Rosa cria articulações visuais e sonoras,

entre imagem e palavra, para nos mostrar a pluralidade da criação poética de Affonso

Ávila. Somos convidados a entrar em sua produção não apenas como uma forma de

compreendermos a função central da poesia no mundo atual, mas sobretudo para

percebermos a força política da invenção poética e seu desafio histórico ao atravessar

o tempo.

Talvez seja importante, ao terminar este brevíssimo texto de apresentação do

filme “Cristina 1300 – Affonso Ávila - Homem ao termo”, dizer de um imenso respeito,

admiração e total empatia com o poeta. Eleonora Santa Rosa nos coloca em contato

direto e profundo com essa obra poética para entre as imagens nos revelar de forma

precisa e delicada um poeta engajado, irônico, bem humorado, sagaz e absolutamente

brilhante em suas formulações.

O filme nos convida a entrar nas derivas poéticas de Affonso e nos conduz a

uma viagem repleta de surpresas como a divertida e quase desafinada performance

de Ávila fechando o filme, nos deixando ainda com mais saudades.


Eduardo de Jesus é professor do Departamento de Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG.



 


Affonso Ávila e sua poética insubordinada, demolidora de verdades históricas estabelecidas, em cena de Cristina,1300. Foto: Divulgação


afrodísias


AFFONSO ÁVILA


esgueire-se mulher por este beco exíguo

e retire ao final a placa rua sem saída

os deuses generosos dão um átimo de vida

pela permuta e desfrute da musa afrodite

filha do sexo e espuma do mar

e o mais é caminhar esquinado

entre dobras de apelo e de charme

isto é entre rampas da alegria

bens caídos bençãos do céu de abril

e a cada passo uma dança primeva

evoluindo azul e nesgas de joias

pendentes aos braços tornozelos

e quantos a acompanham

sussurram o amor contido

camuflado de canto e anelo

flagrar fim e sim não e quão

a cada corrimão a cada escada

o olimpo é um palácio de imaginação

percorrer pós ela salas e labirintos

transidos pela vontade

e quem não há de perguntar

numens ou homens onde estará

a procurada a desejada a perseguida

a que o tempo não timbra nem fenece

e a luz da tarde aquece

sol que não descamba e queima

e teima seu calor e obnubila a noite

lugar que restou ao poeta

ainda a suar a trescalar

o dia que se foi mas legou seu ímpeto

esta é reta: o verso é o viagra do poeta


Poema extraído de livro inédito Descante deixado por Affonso Ávila




 

[Trailer oficial] Cristina, 1300 - Affonso Ávila - Homem ao Termo




 


DOCUMENTUM CRISTINA, 1300


1) Cartaz do filme Cristina, 1300 - Affonso Ávila Homem ao Termo

2) Material de divulgação do filme

3) Poema de Affonso Ávila

4) Affonso Ávila em cena

5) A Diretora Eleonora Santa Rosa e colaboradores

6) A Diretora Eleonora Santa Rosa


Trailer e fotos: Divulgação



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