Aqui está, finalmente, o segundo número de Sphera, esta revista que tem sobrenome: Habitações do Encantado. Não se trata apenas de mais uma revista digital, mas da instauração de um processo de ocupação diferenciante do espaço digital. A diferença reside no investimento na produção de materialidades potentes em oposição à produção de virtualidades vazias. São produções que se opõem por radicarem em horizontes epistemológicos conflitantes: o histórico e o pós-histórico. A produção de materialidades é atravessada pelos antagonismos dilaceradores da história. Esses antagonismos são partes integrantes do próprio processo produtivo, que, por isso mesmo, é conturbado.
Sphera nasceu em 2021 em meio a uma das maiores conturbações da história humana: a Pandemia provocada pelo Coronavírus. Nasceu em meio especialmente a um genocídio no Brasil. Milhares de pessoas adoecendo, agonizando e morrendo sem que se visse um esforço efetivo do dito Governo da Nação para salvá-las. Enquanto amargávamos a possibilidade de sermos as próximas vítimas, avançávamos no enfrentamento da nossa própria condição humana, torturávamo-nos diante do espelho. Cada qual, é certo, a seu modo, nas noites e dias de exílio domiciliar, mas com algo em comum: o assombro. Estávamos chafurdados no assombro de existir, sem saber o que fazer da própria vida fragilizada, humilhada.
Naquele contexto, em que nos víamos abismados no desencantamento, a literatura e artes tornaram-se mais ainda nossos dispositivos de reencantamento. Sphera constitui em si mesma um testemunho antagônico, é certo, dessa situação ao se construir a partir da Obra-Vida de João da Cruz e Souza (1861/1898). Também ele, sua mulher e seus quatro filhos foram vítimas da gestão irresponsável, desumana, da vida social brasileira. Poderiam não ter sido vitimados pela tuberculose se não padecessem dos mesmos males que ainda afetam grande parte da população: inseguridade alimentar, privação de saneamento básico, abandono à própria sorte. Mas nada disso foi capaz, claro, de suprimir a potência encantadora de uma Obra.
Nosso assombro diante da vida não teve fim ao longo deste 2022, mas apenas tomou novas formas, a forma do luto social, por exemplo, a melancolia coletiva. Vivenciamos, os vacinados sobreviventes responsáveis, o peso de mais de 700 mil mortos nas costas! Vivenciamos, intimamente, o sentimento de estar só meio vivos, com a morte na alma, como no texto de Sartre, sempre a nos inquietar. Por isso este número de Sphera se fez de modo muito arrastado, a contrapelo, com muita dificuldade de respirar. Muitas colaborações solicitadas não chegaram, outras tantas chegaram com muito atraso, grande parte das pautas propostas não se efetivou. Tudo muito compreensível do ponto de vista de uma produção em meio aos antagonismos da história.
O que temos aqui neste número 02 é, todavia, suficiente para ratificarmos os preceitos estruturantes desta ocupação digital expostos no nosso Missal Editorial disponível neste Site. Destacamos uma homenagem a Marielle Franco, a mulher preta da Maré carioca, um dos aglomerados que exibem para o mundo a cara grotesca da desigualdade social brasileira produzida pelas elites brancas, racistas, sanguinárias. Evocamos, através de dez nomes de destaque das letras pretas brasileiras, a mulher que foi brutalmente executada como parte da ascensão fascista no país. Essa evocação é premente porque no próximo 14 de março de 2023 completar-se-ão cinco anos da morte de Marielle e até agora os assassinos e seus mandantes não foram revelados nem processados, muito menos condenados.
Também destacamos homenagem a Carlos Drummond de Andrade, o poeta central do século XX no país e um dos mais importantes da produção poética moderna. Alguns dos leitores mais sensíveis da Obra do Autor nascido há 120 anos na Cidade de Itabira, no Estado de Minas Gerais, contribuem com trabalhos relevantes para sentirmos novamente, ou pela primeira vez, um poeta que leva a consequências extraordinárias o legado radical do Simbolismo de um Alphonsus de Guimaraens e um Paul Valéry. E também destacamos, ainda das Minas Gerais, uma homenagem ao jornalista, escritor e intelectual João Paulo Cunha, um dos mais brilhantes de sua geração, nascido na Cidade de Belo Horizonte e morto prematuramente este ano.
O caráter agregador do periódico é ratificado, mais uma vez, com a publicação de um grande número de autoras e autores de lugares diversos, brasileiros e estrangeiros, cultores de gêneros discursivos e formatos diversos. Pelas várias habitações de Sphera, encontram-se poemas verbais, visuais e sonoros, contos, ensaios, resenhas, depoimento, entrevista, fotografia, cinema, tradução e entrevista. A todas as autoras e todos os autores, agradecemos pela colaboração voluntária, assim como todo o nosso trabalho, para levarmos adiante esta revista-território que se dispõe como um “espaço de possíveis” (Bourdieu) relegados à impossibilidade na vida cínica contemporânea, em que as diferenças são suprimidas em nome de uma servidão orgulhosa ao Imperialismo estadunidense. Leiamos-habitemos e, assim, instauremos a ocupação Sphera Habitações do Encantado.
Anelito de Oliveira
Publisher de Sphera Habitações do Encantado
Uma coletânea necessária,escrita por um grupo seleto de escritoras e escritores negros.Todo a minha admiração. Parabéns
Parabéns Anelito e equipe Sphera por este número 2. O editorial acima situa bem a importância desta publicação e a amplitude de seu caráter artístico e de resistência, Estou feliz por participar. Bjoão