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Escritas apátridas 2: leia texto da escritora brasileira Viviane de Santana Paulo sobre Édouard Glissant

Atualizado: 23 de dez. de 2024

Memorial L´Anse Cafard, Martinica, 1959, obra escultórica de Laurent Valère, denúncia permanente da escravização de corpos africanos e seu translado através do atlântico para construir forçosa e humilhantemente impérios brancos / Foto: Internet

A poética de Todo-Mundo e as maravilhas das fronteiras na mundialidade


VIVIANE DE SANTANA PAULO

     

 

Existem o que podemos chamar de poesia-política e ensaio-político, entretanto, ensaio político-poético é algo raro e creio que Glissant é o maior representante deste estilo literário. Com efeito, o espaço poético permite, através das suas evocações plurais, reunir imaginações e tecer ligações entre culturas. Nascido na Martinica, em 1928, filho de uma dona de casa e de um administrador das plantações canavieiras, Édouard Glissant é poeta, filósofo, ensaísta e romancista. Formou-se na França, onde estudou história, literatura, etnologia e filosofia, e logo se introduziu no movimento artístico-literário que se ocupava com as tendências anticolonialistas. Foi precursor de uma visão completamente nova da cultura caribenha, que consistia em se desvincular da Europa, tornando-se independente dos padrões estipulados pelos colonizadores e/ou imperialistas. Glissant conviveu com figuras como Frantz Fanon e Stuart Hall, entre outros. Ganhou o prêmio Renaudot com a obra La Lézarde, em 1958. De volta ao seu país, em 1965, funda o Instituto de Estudos Martinicanos. Foi chefe de redação da revista da UNESCO, professor na Universidade de Nova York, e vivia entre Paris e Nova York. Morreu em Paris, em 2011.

As teorias e as denominações de Glissant tornaram-se partes integrantes dos estudos sobre a filosofia negra, ou seja, sobre a filosofia em geral. Termos como Crioulização, Todo-Mundo (Tout-Monde) são referências nestas pesquisas, além das denominações Imprevisibilidade (no que se refere à interação das diferentes culturas), Opacidade (que designa o direito de não ser compreendido de forma plena, de permanecer parcialmente inacessível ao outro), e Rizomas Identitários, isto é, a multiplicidade das raízes identitárias. Glissant é fundador de uma filosofia de inclusão e diversidade cultural, por uma visão poética do mundo e uma nova perspectiva de abordagem em relação à história da escravidão, a partir da narração do escravizado, considerando as particularidades diversas que inclui a autenticidade de cada cultura.

Édouard Glissant estreou em 1956 com a obra Sol da consciência: poética, composta de textos curtos em verso e prosa, que marcaria o seu estilo, e onde encontramos os primeiros sinais de uma busca poética e identitária, tendo como ponto de partida a paisagem específica do arquipélago, e as ponderações para o que mais tarde viria a desembocar na filosofia da Poética da Relação (1990), obra mais densa e ensaística, na qual ele reforça e redefine as teorias da crioulização e do todo-mundo, desenvolvendo os conceitos da imprevisibilidade e da opacidade no âmbito cultural.

A filosofia glissantina busca nivelar as culturas, renunciando a hierarquia entre elas, gerando a ruptura com o discurso europeu, mas também com o discurso anticolonialista estático que não permite a imbricação das diferentes culturas. Em seu último ensaio, Glissant dedica um capítulo a este aspecto: Quando os países crioulizam, eles não se tornam crioulizados como os habitantes das Antilhas, por exemplo, mas entram juntos na imprevisibilidade de sua diversidade, embora isso às vezes aconteça em circunstâncias dramáticas. [...] A crioulização não é uma mistura arbitrária (uniforme) em que cada indivíduo se perde, mas uma série de soluções surpreendentes cuja máxima fluida poderia ser: 'Eu mudo em troca com o outro sem perder ou falsificar a mim mesmo'.

À princípio, a crioulização foi um movimento literário que retratava a vida crioula (francesa) a partir de uma perspectiva crioula (francesa) no idioma crioulo (francês). Hoje, não é apenas um fenômeno linguístico, mas o termo é conhecido e usado para designar o encontro entre as culturas sem que as influências enfraqueçam essas culturas, mas cada uma mantenha a sua autenticidade. Envolve o processo no qual as culturas interagem umas com as outras sem distorções. E, no mundo de hoje, no qual as relações internacionais são cada vez mais amplas, complexas e profundas, e passam pelas mudanças causadas pelo mundo digital e sob os efeitos da globalização, incluindo as guerras e os deslocamentos, "fomes sistêmicas, a banalidade das pandemias", fala-se em se buscar a crioulização do mundo como solução para os conflitos bélicos e identitários.

Por outro lado, embora as tecnologias digitais criem conexões globais com uma velocidade sem precedentes, seus meios de nivelamento destroem um pré-requisito central para encontros genuínos: o reconhecimento de que nem sempre somos capazes de entender uns aos outros, de que nem tudo pode ser traduzido (o que Glissant chama de opacidade), e isso não impede o respeito mútuo e a convivência com as diferenças.

Para Glissant, não existe nenhuma cultura isolada. Todas as culturas se desenvolvem através das diversas influências umas das outras. E alcançam o que ele denomina de Todo-Mundo ("Tout-Monde"). Através deste encontro surge a consciência de que nenhum país e nenhum idioma existem sem os outros.

Importante ressaltar que Glissant se recusava a definir esta relação entre as culturas como mistura. Na mistura as culturas se dissolvem umas nas outras. O filósofo distingue estes dois processos claramente. Na crioulização uma cultura não se dissolve na outra, não há uma miscigenação, mas o encontro, a imbricação, a apropriação de elementos entre elas. A aproximação e o distanciamento, e de novo a aproximação, - conforme a época e as circunstâncias, - e em uma dinâmica renovável e imprevisível. A mistura gera algo previsível, enquanto a crioulização conduz ao intercâmbio entre as culturas e os idiomas, gerando algo novo, algo que não é previsível de ser abrangido em sua totalidade, devido à sua dinâmica e mutabilidade. A imprevisibilidade nas relações culturais é conceito desenvolvido por Glissant de forma abrangente na obra Filosofia da Relação, publicada em 1990.

Tal conceito é base para as teorias de Antonio Bispo dos Santos. Trata-se de narrar a história a partir da visão dos próprios colonizados e de re-denominar as influências culturais e sociopolíticas entre a cultura subjugada e a dominante. Um ponto importante no conceito de contra-colonização de Antonio Bispo dos Santos é a relação entre discurso e prática, permitindo o que o autor chama de “confluência”, isto é a convivência entre elementos diferentes entre si e que, ainda assim, se aproximam em suas cosmovisões.

Edouard Glissant e Antonio Bispo dos Santos reforçam a visão de mundo a partir dos povos originários, dos povos oprimidos, e propagam a valorização das diferenças entre as culturas, da autenticidade de cada uma em confluência com outras culturas. Glissant dá o exemplo das línguas crioulas do Caribe, e os novos estilos musicais emergentes da América, como o jazz, para ilustrar que que o novo emerge de conexões surpreendentes e se ramifica em relacionamentos sempre novos que se estendem ao mundo inteiro. Estendem-se no que ele chama de "Todo-Mundo", e o que Bispo dos Santos chama de confluência. As línguas crioulas usam elementos, palavras e componentes dos idiomas africanos, mas também do idioma europeu, surgindo assim algo novo. No jazz, por exemplo, os instrumentos são europeus, mas a melodia, o ritmo, é africano. Aqui ocorre a interação entre culturas distintas sem que uma se perca ou se dissolva na outra.

Diferente da teoria de Vilém Flusser (1920-1991), filósofo tscheco-brasileiro que emigrou para o Brasil em 1940, fugindo do regime nacional-socialista, radicando-se em São Paulo, onde viveu 31 anos. Flusser nasceu em Praga, foi educado na cultura alemã, no idioma tscheco e alemão, e dominava mais três línguas. Escrevia em diferentes idiomas e se autotraduzia. Flusser considerava-se apátrida. Para ele, a soma das diferentes pátrias, a aquisição e o acúmulo de novas culturas distintas apagariam a cultura primária, resultando em uma mescla cultural e, por consequência, na dissolução, tornando o indivíduo sem-pátria (Heimatlos). Na obra Von der Freiheit des Migranten. Einsprüche gegen den Nationalismus (Sobre a liberdade do migrante. Objeções ao nacionalismo), sem tradução para o português, Flusser reflete sobre a existência humana como uma experiência sedentária e dependente do habitual, especialmente sobre a vivência do migrante destituído da pátria, por razões políticas ou outras, obrigando-o a viver em uma determinada realidade discordante da sua realidade primária. No entanto, faz parte da natureza humana explorar novas regiões geográficas e formas de vida, em razão de suas necessidades básicas e em busca do avanço de sua própria etnia. Ademais, os tempos atuais conduzem o indivíduo a romper com os vínculos elementares, como os familiares ou territoriais, e a lançar-se em uma existência nômade. A mobilidade gerada pelas tecnologias atuais prova que os valores derivados do habitual não são permanentes.

Consideremos que o impacto de uma cultura na outra, não raro, é acompanhado principalmente da violência e da submissão de uma cultura pela outra. Enquanto a colonização impôs um outro sistema de vida a um povo, obrigando-o a adotar, em sua própria terra, costumes e crenças que lhe eram estranhos e a banir os seus próprios. A migração leva um indivíduo a abandonar sua morada, seus vínculos e adotar outros vínculos estranhos, em uma terra desconhecida. Tanto a colonização como a migração são experiências marcantes para o ser humano. E em ambas estão implícitos o quanto os diferentes hábitos e crenças são essenciais e, ao mesmo tempo, questionáveis.

A pátria é uma casualidade, um incidente, e esse mistério que a envolve, de que fala Flusser, advém do fato de não ser possível determinar o lugar em que se quer nascer, mas ao nascer somos arremessados a uma realidade concebida por diversos hábitos preestabelecidos e variáveis, endógenos, que não escolhemos, mas podemos alterá-los, influenciá-los, a partir do momento que possuímos consciência deles.

A pátria representa o berço — lugar em que as primeiras impressões da realidade, da vida e do mundo são criadas, espaço geográfico onde o Dasein se forma. O ser humano, além de espírito, é matéria e necessita da ligação territorial. O forte sentimento pelo espaço territorial de um dado sistema sociopolítico e cultural resvala no amor incondicional. A pátria se torna o parâmetro e por seu intermédio são definidos os valores e funções dentro de um dado sistema. Mas no exterior que o nativo reconhece a profundidade e a dimensão de suas raízes.

Ao regressar da Europa para as Antilhas, Edouard Glissant lança a obra Sol da consciência: poética, baseada na experiência desta viagem, em que ele trata da aproximação das diferentes culturas ilustrada pela metáfora espacial da costa. Ao deixar Paris e regressar ao arquipélago, o ex migrante passa a observar o seu país sob um novo olhar composto com os novos elementos adquiridos da cultura estrangeira, neste caso, a francesa, em uma espécie de “viagem ao contrário”. Esta redescoberta de seu país e de suas origens proporciona a Glissant a oportunidade de abordar reflexões centrais nas suas teorias em torno do que ele chama de “Antilhanidade”, das relações entre diferentes culturas. E trata da complexa situação identitária do “estrangeiro de dentro”; ou seja, do sentimento de estranhamento ao regressar à pátria, o tornar-se estrangeiro em sua própria pátria.

Vale a pena lembrar que o surgimento do discurso anticolonialista se iniciou com o movimento Negritude, em Paris, na década de 1930, fundado por Aimé Césaire, Léon-Gontron Damas e Leopold S. Senghor. O Negritude reivindica o direito à autodeterminação cultural, ou seja, proclama as origens africanas, seus valores, rejeitando a exploração de uma raça pela outra e a imposição cultural. Trata-se de uma forma de combate antirracista, anticolonialista e anti-imperialista. Em Paris, os integrantes deste movimento não queriam ser franceses de pele escura, mas assumir a sua identidade própria. Escreveram sobre suas vidas como negros, sobre a vida na África e no Caribe. E, em 1948, Senghor lança a Antologia da Nova Poesia Negra em Francês, com o memorável prefácio de Jean-Paul Sartre intitulado "Orfeu Negro". 

Indago-me se existe algo semelhante em relação aos atuais escritores brasileiros da diáspora. Sobre qual tema escrevem? Quais idiomas usam? Como lidam com as diversas e permanentes influências estrangeiras na forma de pensar e escrever de cada um? O que reivindicam?

Mais tarde, Glissant se afasta do movimento Negritude ao divergir com a ideia de que poderia existir uma diferenciação, uma essência negra e uma branca. Não há uma essência humana baseada na cor da pele. O ser humano é único, porém, possui várias tonalidades de pele e diversas culturas, costumes, idiomas e crenças. A ideia de uma diferença entre a essência negra e branca não resolvia de maneira adequada as questões da sociedade antilhana, e assim Glissant desenvolve o conceito de Antilhanidade, que surge como uma “oposição” ao conceito de Negritude. Ele entendia que a identidade do povo antilhano apresenta características que vão além das raízes africanas. A Antilhanidade seria composto a partir da ideia desenvolvida do que ele chama de identidade rizoma, quer dizer, a identidade múltipla, a identidade aberta às várias influências do mundo, colocando dessa forma, todos os povos em contato.

Enquanto o conceito de Negritude se limita à valorização e à sobreposição da cultura africana perante as outras, o de Antilhanidade prega a adição de elementos externos, resultando na diversificação das culturas e no seu nivelamento perante as culturas, na valorização das características elementares de cada uma.  

No que se refere à teoria do rizoma identitário glissantino, para o filósofo a identidade possui várias raízes, não se limitando a uma única fonte, em contrapartida com a “identidade raiz única” veiculada pelos povos europeus. Os conceitos filosóficos de "raiz única" e "rizoma" foram desenvolvidos originalmente pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Felix Guattari.

Partindo deste princípio, Glissant escreve: “Porque de fato é disso que se trata: de uma concepção sublime e mortal que os povos da Europa e as culturas ocidentais veicularam no mundo; ou seja, toda identidade é uma identidade de raiz única e exclui o outro. Essa visão da identidade se opõe à noção hoje “real”, nas culturas compósitas, da identidade como fator e como resultado de uma crioulização, ou seja, da identidade como rizoma, da identidade não mais como raiz única, mas como raiz indo ao encontro de outras raízes. (...) quando falamos de identidade raiz indo ao encontro de outras identidades, temos a impressão de uma ameaça de diluição: funcionamos sempre segundo o antigo modelo e, então, repito a mim mesmo, e, se eu não for mais eu mesmo, perco-me de mim! Ora, no atual panorama do mundo uma questão importante se apresenta: como ser si mesmo sem fechar-se ao outro, e como abrir-se ao outro sem perder-se a si mesmo?”

Por fim, as teorias glissantinas nos levam a concluir que o mundo precisa de mais poesia, de mais crioulização, ou seja, mais interculturalidade.

 

 

 

 

 

 

Viviane de Santana Paulo é uma importante poeta, romancista, tradutora e ensaísta brasileira radicada em Berlim (Alemanha). Estudou filologia germânica e românica na Universidade de Bonn. Publicou lebendiges wensen namens gedicht – vom satelliten aus gesehen / ser vivo chamado poema – visto do satélite (coletânea de poesia bilíngue, Engelsdorf Verlag, Leipzig, 2023); Viver em outra língua (romance, Solid Earth, Berlim 2017), Depois do canto do gurinhatã, (Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Foi membro da equipe editorial da ila-latina, revista de cunho sociopolítico com sede em Bonn (Informationsstelle Lateinamerika e.V.). Seus textos foram publicados em revistas e antologias na Europa e América Latina. Traduziu poetas alemães, incluindo Jan Wagner, Nora Bossong, Ron Winkler, Josef Kafka, Sarah Kirch, Paul Celan, Gottfried Benn. Seu último volume de versos publicado no Brasil é Distribuição de passos & outros poemas na Coleção Infame Ruído, projeto da Revista Sphera executado pela Inmensa Editorial dentro do projeto Terceira Feira: encontro de literaturas das margens do mundo, iniciativa do Instituto de Desenvolvimento Humano Daghobé. O texto que Sphera publica aqui foi apresentado durante a primeira edição da TF em Diamantina no âmbito do colóquio Escritas Apátridas, que tem Édouard Glissant como homenageado permanente, sob coordenação de Santana Paulo.

 

 

 

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