Em nome da poesia, a autobiografia da existência poética catarinense, este é o livro de Alcides Buss, lançado pela Caminhos de Dentro, em 2018. Um livro chega até a gente por três caminhos de fora: por ouvir falar, por ver sua estampa em alguma vitrine real ou virtual, por ver sua referência em outro texto. E a gente chega a um livro por uma necessidade, curiosidade ou vontade de lê-lo. Quando essas quatro maneiras que fazem o livro existir para uma leitora se reúnem, é preciso que ele seja lido.
E assim o foi. De saber que o livro existia, agendei sua leitura em minha mente e o desejo me fez ir até à Livros e Livros para comprá-lo, justamente poucos minutos antes de seguir para a Sala Harry Laus da Biblioteca da UFSC, onde a reunião do Círculo de Leitura, criado pelo autor de, Em nome da poesia, já ocorreu mais de 90 vezes. Pessoas ilustres e famosas e pessoas dedicadas à escrita e às artes, sem fama ou babados midiáticos, são convidadas para a roda de conversa e muitas perguntas.
Em nome da poesia é um baú de memórias da história de um sujeito que se constrói de fragmentos de ensaios de expressão literária, poética e, por que não dizer, política, um sujeito que insiste em preservar seu corpo, este baú do qual saem as memórias do vivido e inventado ao longo de seis décadas, atravessando, o menino, sozinho, de barco, até a outra margem do rio, existindo, criança e depois nem tão mais criança, no cerco de uma cultura avessa à leitura, uma cultura que brota e parece fixar-se na dureza da roça, cavando e capinando em terra árida, uma cultura que leva ao pranto desconsolado o menino para o estudo em regime de internato, longe de casa e dos seres amados. A flecha foi disparada do arco. Os filhos, diz Nietzsche, são a flecha. Os pais, o arco. Para o disparo de uma flecha não basta o arco, é preciso o artilheiro. Se a flecha erra o alvo, comete-se um “pecado”, sentido original do termo na língua dos artilheiros, “pecado” que usamos sem saber de onde veio. O artilheiro não querendo errar o disparo, indaga ao menino se quer desistir do estudo. Não. Não quer. Chorando, resiste à tentação de não ser uma flecha solta no disparo, em absoluto desamparo, pronta para traçar seus próprios alvos. Existir é preciso.
Dessa terra pedregosa nasce o que a expressão não formatada, não enquadrada, cultiva e exige nascer. Dela não se formam plantações. Tais nascimentos são eventos que não se podem repetir nem reproduzir em larga escala. Também não se repete a existência de qualquer dos grafados na vida por ordem da poesia. A roça catarinense insiste na produção diversificada, na agricultura familiar, sem o gosto do veneno biocida que devasta o que nasce fora dos moldes impostos pelos grandes campos de monocultivo, dominados pelas produções tóxicas, campos a elas submetidos. O menino nem sabe, mas resiste, desde então, a tudo o que for cercado à poesia de sua existência e dos seus fazeres criadores. A flecha escolhe seus alvos. Não o pode o arco, nem o artilheiro. Só o faz a flecha livre em seu próprio movimento. Por vezes disparada. Em outras, esquiva.
Do que se completa o conteúdo de um baú repleto de fragmentos que somente a memória do protagonista, observado de perto por um sujeito atento e registrador, um baú que se abre para deixar nascer uma autobiografia que inclui mais de quarenta anos de criatividade poética, de inovações culturais, de interação e embates na arena política, da qual, lastimavelmente, ainda dependem os poetas, artistas e escritores para existirem numa história oficial que pouco se importa com seus feitos? António Damásio, em seu livro, A estranha ordem das coisas, publicado em 2017, concede que só há memória onde houver emoções. Não é pouco constatar que a emoção é a chama com a qual o corpo desenha o que importa para o sujeito, a existência, ficando de fora o que lhe desimporta. E assim uma existência é biografada com sentido, com emoção e sentimentos gerados por aquelas chamas, chamadas.
Em nome da poesia inova a arte do relato e nos ensina que uma autobiografia será mais do que autorizada, será autoral, quando escrita pelo sujeito que ali existe, observado pelo sujeito que junta os fragmentos ignorando a linearidade tão cara à memória das histórias oficializadas, aquelas que mal e mal interessam a quem é obrigado a ler tais desalentos.
Alcides Bus, o poeta, mais do que ninguém, faz a abertura de um baú que, olhado sem a orientação do relatador, poderia ser apenas um conjunto de peças sem sentido. Atento, o sujeito que relata ao protagonista os lugares e os fazeres que ele mesmo teria esquecido haver, é um sujeito com visão temporal quântica, na qual passado, presente e futuro, formas necessárias para ordenar as tarefas cotidianas, não se organizam linearmente. Esta é a lei da poesia quando tornada prosa, flechada em relato pulsante.
O relato começa por 1954, em Trombudo Central, e encerra na Ilha de Santa Catarina, em 2016. Nos entretantos e entremeios desse fazer sinuoso e inovador, o leitor é lançado para trás e para a frente, ou quiçá, para um lado e outro, para cima e para baixo? De fato, o atrás e o a frente não existem na consciência do observador. Este junta o que parece ter ficado lá atrás ao que parece ter lugar ali bem ao lado, o que parece socado lá no fundo ao que parece transcender lá no alto. E essa é a arte de dizer-se uma história completa, quando nela são reunidas centenas de personagens criadoras de muitas artes e formas de expressões. Um estilo literário que junta fragmentos e os dispõe no varal das páginas que esta leitora teve diante de seus olhos.
Em qual corda os fragmentos são pendurados? Voltemos à tese de António Damásio, um dos maiores nomes da neurociência a tratar da consciência e do papel das emoções nela, portanto, da capacidade de relatar com algum sentido observador o ocorrido e o feito: o fio no qual as memórias são penduradas e dispostas ao olhar, em qualquer relato poético, são as emoções e os sentimentos que moveram naquele corpo a alma que o leva de cá pra lá e o traz de lá pra cá. Elas forjam o que chamamos de existência em seus altos e baixos. Uma flecha lançada contra os ventos.
Se o observador seleciona um fragmento e o expõe no varal literário, é porque aqueles fatos foram desenhados na alma do protagonista, dão-lhe estrutura para mover-se no quadro da história. Um traço biográfico bem desenhado é este fio no qual penduramos o que para os de fora pode parecer mero fragmento sem ligação alguma. O sujeito observador que acompanha o protagonismo do sujeitado ao relato sabe onde pescar os pedaços daquela alma e juntar seus sentidos. No sentido. Então, uma história de muitas histórias de gente tentando expressar-se em terras áridas catarinas hostis à poética, acaba por precisar do fio condutor, o fio de um autor e empreendedor cultural que trouxe à cena cada um daqueles caráteres, daquelas outras personas que fazem parte do baú da poiésis catarinense que merece o registro nessa autobiografia.
Nem todas as memórias estão forjadas e foram penduradas em fios agradáveis. Algumas cordas são muito ásperas, alguns fios se romperam, outros eram grosseiros demais para o propósito poético. Mas o poeta da existência sabe que importa menos o mal que nos fazem do que o que fazemos para nos redesenhar depois dos alheios malfeitos. E segue com sua dignidade. Um acontecimento em 2016 dispara uma emoção que vai encontrar na alma um sentimento nascido de outro acontecimento de 1954, ou em qualquer das datas e dos lugares entre esses dois, porque a poiésis não para, agita-se em rodeios, roseios e volteios, acontecendo, espiralando-se aqui e ali.
Em meio aos 62 anos de relato, o que resta na memória são as emoções que habitam e desenham a alma do autobiografado. Nesta existência estão inscritas todas as gentes que receberam a dádiva da presença poética do protagonista. Também merecem registro todas as gentes que destruíram ingratamente o árduo trabalho de cultivar essa roça em terras secas, pouco afeitas à cultura, à leitura.
Em nome da poesia tem Alcides Buss e a memória de seus feitos em terras catarinenses e nacionais como protagonista. A leitura dessa autobiografia poética deixa um misto de resignação e alento a toda alma poética genuinamente “catarinense”, acostumada a produzir em solos íngremes e pedregosos: resistir é preciso. Redesenhar-se é preciso. Desistir não é preciso.
[Sônia T. Felipe, São José, SC, 19/11/2018 ]
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