ANELITO DE OLIVEIRA
Edson Cruz é um dos nomes mais ativos da cena literária brasileira dos últimos anos. Tornou-se mais conhecido pela sua atuação em revistas digitais. Inicialmente, Cronopius, já extinta; depois, Musa Rara, de que é editor. Ainda no mundo digital, realiza um belo trabalho à frente do programa de entrevistas Confraria da Palavra no Canal Kotter no YouTube.
Poeta e prosador, seu trabalho tem sede de atualidade, de exprimir, no verso, ou representar, na narrativa, o que está ainda acontecendo. Daí o seu caráter receptivo, sua disponibilidade para receber o que vem de fora, dos seus entornos imediatos, deixar que os contextos adentrem os textos. Dir-se-ia que estamos diante de uma poética da inclusão, que esbanja, por isso mesmo, uma escala de interesses muito abrangente.
Negrura nos apresenta um conjunto de poemas bem apurados, reveladores de um cuidado excessivo com a equação forma X fundo. De um lado, a necessidade premente de exprimir a questão racial, mas de outro a preocupação em não reduzir a poesia a muro de lamentações. Os contornos da problemática racial brasileira, elementos que a configuram, têm ascendência sobre as pulsões da alma neste livro informado por Fanon, Césaire and Cie.
O senso de sensatez, para não dizer uma certa timidez, que reveste essa voz lírica por si só diz muito sobre o lugar difícil que os negros ocupam na sociedade brasileira. Um lugar de paradoxal liberdade, onde exercem, ao mesmo tempo, papéis diversos, sobretudo os mais humilhantes nos diversos segmentos. O papel, por exemplo, no segmento literário, de emissor-receptor dos próprios enunciados, emitente-destinatário de uma correspondência que, afinal, é interior, tem um mesmo endereço, embora sua mensagem não lhe pertença exclusivamente, seja uma matéria social.
Os diálogos com Cruz e Souza, Lima Barreto e Oswaldo de Camargo que aqui encontramos me parecem sugestivos dessa espécie de auto-correspondência, de intralocução. São poemas que repercutem questões que extrapolam a experiência histórica imediata do ainda jovem poeta. São, em razão disso, poemas-senhas de acesso a camadas complexas da história social negra no país. Não se pode, em outras palavras, reduzir o horizonte hermenêutico desses poemas ao autor, converter em monólogo o que se quer diálogo.
Uma das camadas complexas da história que se entremostram nesses poemas e que mais me chamam a atenção é exatamente a de um conturbado “alter”, de um outro muito distorcido, que, lembrando Milton Santos, é testemunho do próprio país, constitui uma imagem chapiscada da urbanitude, de uma condição negra, a negritude, definida em relação conflituosa com a experiência urbana. A “negrura” é índice preciso da urbanitude, da situação de desabrigo, de mendicância, de desgraça, enunciada já pelo poema de abertura (“Homeless”).
Se o fundamento da “Négritude” de Leopold Senghor é de base ontológica, estimulando excessos puritanos ainda em voga por toda parte, o fundamento do conceito de urbanitude, que inventei e com o qual venho lidando há um tempo, é de base territorial: o sujeito social negro se define a partir do território que habita, o lugar que é construído por ele relacionalmente, isto é, a partir de relações objetivas e subjetivas, materiais e imateriais, ainda pensando com o grande Milton, que por sinal viveu e trabalhou em Ilhéus, terra de Edson Cruz.
Não são poucos os poemas que colocam aqui a dimensão territorial em relevo, procurando cartografar, nos limites de uma expressão poética racionalizante, uma cidade negra que atravessa o tempo presente, que precede, acede e sucede a superfície cotidiana. A negrura não constitui mera referência identitária dessa cidade, mas inscrição de uma diferença incômoda nessa cidade, que perturba a consciência que se assume como responsável, que ousa saltar de um nível ingênuo para um nível crítico.
Parece-me bastante evidente neste livro um processo de objetivação do racismo de modo antirracista, isto é, sem radicalismos que possam suscitar reações de não-negros, acusações do risível “racismo reverso”, inclusive. O processo que aqui encontramos é, sobretudo, de compreensão daquilo que, em termos humanitários, constitui um paradoxo dilacerador: o racismo.
O fato é que compreensão não é aceitação, como diz Hannah Arendt, compreender é entrar nos meandros de um processo, ir lá dentro e perceber o que acontece. Daí que no fundo da negrura o poeta encontra aqui a ranhura do sujeito negro, seu estatuto dilemático, seu ser-não-sendo, seu estado de permanente instabilidade. Daí que, na escrita, encontramos rasuras brancas, interditos, interdições, impressões que nos revelam um eu num movimento de auscultação dos seus próprios sons, e sentidos.
Texto publicado como posfácio ao livro Negrura (2022), de Edson Cruz, lançamento recente da curitibana Kotter Editorial.
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