O AZUL
Para Claude Monet
lago de azul-opiário-azul-equinócio azul
mais azulino azul //
azul não azul-ferrete
azul não azul-da prússia
azul em tons
de turquesa-azul
(azul em tons
de malaquita-azul)
nas folhas de galhos inclinados
nas folhas de galhos
desmanchados
em explosões de azul //
nenúfares, borrões
de azul-azul //
nas pupilas do inseto
que vê: ninfeias, ninfas
e nuvens
em borrões de rosa
e azul
em borrões de branco
e azul //
moças sentadas no barco
são moças de água
moças-flores tingidas
do mais profundo azul //
olhos, folhas, barcos e flores
em nuances de cor
olhos, barcos, folhas e flores
refletidos nas pupilas
do mais profundo azul //
(líquida pantera subaquática
súbito irrompe na tela:
líquido animal negro-azul) //
tudo que existe afinal
são múltiplas variações cromáticas
do mais profundo azul.
NO LIMITE DA COR
Para Francis Bacon
HOMEM-CARANGUEJO
olhos borrados de azul
orelhas talvez de matéria
sintética, para não ouvir
nunca mais, nunca mais
a música macerada do amor.
Lábios escuros, costurados
para o silêncio infinito
do adeus. Metade do rosto
silêncio, a outra metade
rouco ruído de pássaros
no limite incompreensível
da cor. Nenhuma palavra
dentro do homem demolido.
NOZ
Para Marc Chagall
Quando um estranho
flutuou no palito de fósforo
embebido de si mesmo
contando os peixes do céu
com os dedos de uma só mão.
Quando um estranho
embebido em teu sexo
lavou os cabelos com música
de um antigo relógio de sol.
Quando um estranho
perdido na manhã líquida
escreveu outra vez teu nome
dentro de uma casca de noz.
RETRATO
Para Edward Hopper
Mulher de chapéu amarelo
sentada na mesa circular
do café à beira da estrada;
cabeça inclinada, olhos
voltados para a xícara
em hora qualquer da noite
estrelada. Casaco verde
de mangas marrons, blusa
da mesma cor, combinação
pensada para o encontro
inverossímil com seu reflexo.
Faz frio lá fora, um cão late,
música da juke box, tristeza
que não cabe dentro do chapéu.
JARDIM DAS ILHAS
Para Paul Gauguin
No jardim
das ilhas
onde o sol
é uma fruta
Gauguin pintou
o paraíso
em borrões
de verde-
ouro-marrom.
A terra
é um corpo
estendido
sob o céu
e as árvores
são veias
que pulsam.
Mulheres
são flores
com olhos
nos seios
e homens
são rios
que fluem
para o mar.
No jardim
das ilhas,
Gauguin
encontrou
o sentido
possível
na dança
das cores.
CÉU ESTRELADO
Para Vincent van Gogh
Pintou o infinito
com tintas de fogo.
A noite é um abismo.
que engole o mundo.
Estrelas são lágrimas
que caem do olho de Deus.
Vento é lamento
que sacode árvores.
Folhas são suspiros
que ecoam no silêncio.
A lua é um olho
que vigia o mundo
e sombras são fantasmas
que dançam no breu.
No céu estrelado
ele encontrou o sentido
ou a ausência de sentido.
A cor é uma ferida,
que nunca cicatriza
No céu estrelado
onde estrelas são chagas
ele pintou o infinito
com tintas de fogo.
À MANEIRA DE KLIMT
A mulher é infinita
Yasunari Kawabata
I
Meia-lua para iniciar um poema;
letra v entre as coxas
erguendo relâmpagos.
II
Considere esta jovem mulher deitada,
a mão direita
entre os joelhos
e o antebraço (esquerdo)
na altura das pupilas,
Ariadne em Naxos.
Logo inverte a posição,
estica os tornozelos
e desenha pequenos círculos
imprecisos
com os pés,
mapa de um labirinto?
(Dríade, convoca a mitologia dos lábios
para abolir a noite.)
Súbito, sua mão escorrega
até a pirâmide invertida,
após acariciar o umbigo,
como se violasse
o silêncio
de uma pétala.
Anoitecer em ti,
percorrê-la
em cada poro
mínimo:
de uma estrela
a outra estrela
de teu céu
indecifrável.
O CIÚME
(à maneira de Munch)
— um
puro gesto
em verde
inexcedível
de fúria
que se consome
em silêncios
de aridez
contida
e se avoluma
em voláteis
ondas
sobrepostas
a outras ondas
do mais íntimo
ignorar-se.
Claudio Daniel é uma das vozes mais expressivas da cena literária contemporânea no Brasil. Poeta, romancista, crítico literário e professor de literatura. Publicou diversos livros de poesia, ensaio e ficção, como Cadernos bestiais: breviário da tragédia brasileira, Portão 7, Marabô Obatalá, Sete olhos & outros poemas e Dialeto açafrão (sob a lua de Gaza), todos de poesia, o livro de contos Romanceiro de Dona Virgo e os romances Mojubá e A casa das encantadas. Os poemas que Sphera aqui publica pertencem ao livro inédito Cabeza de serpiente emplumada em vias de aparição.
Poemas magníficos! As telas transmigrando para as palavras. Literatura de qualidade ímpar.
Abraços Cláudio.
Maravilhosos, todos os poemas de Claudio Daniel, meu professor de poesia. Parece excelente a Sphera. Ainda não conheço.
Bravo !