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Foto do escritorRevista Sphera

Oito poemas transpictóricos de Cláudio Daniel

Atualizado: 24 de dez. de 2024


Desenhos do artista irlandês Francis Bacon (1909-1992) recentemente descobertos. Foto: Internet

O AZUL

Para Claude Monet


lago de azul-opiário-azul-equinócio azul 

mais azulino azul //

azul não azul-ferrete

azul não azul-da prússia

azul em tons 

de turquesa-azul 

(azul em tons 

de malaquita-azul)

nas folhas de galhos inclinados 

nas folhas de galhos

desmanchados 

em explosões de azul //

nenúfares, borrões 

de azul-azul //

nas pupilas do inseto

que vê: ninfeias, ninfas 

e nuvens 

em borrões de rosa 

e azul 

em borrões de branco 

e azul //

moças sentadas no barco 

são moças de água

moças-flores tingidas

do mais profundo azul //

olhos, folhas, barcos e flores

em nuances de cor

olhos, barcos, folhas e flores

refletidos nas pupilas 

do mais profundo azul //

(líquida pantera subaquática

súbito irrompe na tela:

líquido animal negro-azul) //

tudo que existe afinal

são múltiplas variações cromáticas

do mais profundo azul.



NO LIMITE DA COR

Para Francis Bacon


HOMEM-CARANGUEJO

olhos borrados de azul

orelhas talvez de matéria 

sintética, para não ouvir 

nunca mais, nunca mais

a música macerada do amor.

Lábios escuros, costurados

para o silêncio infinito 

do adeus. Metade do rosto 

silêncio, a outra metade 

rouco ruído de pássaros 

no limite incompreensível

da cor. Nenhuma palavra 

dentro do homem demolido.


NOZ

Para Marc Chagall


Quando um estranho

flutuou no palito  de fósforo

embebido de si mesmo 

contando os peixes do céu

com os dedos de uma só mão.

Quando um estranho

embebido em teu sexo

lavou os cabelos com música

de  um antigo relógio de sol.

Quando um estranho

perdido na manhã líquida

escreveu outra vez teu nome

dentro de uma casca de noz. 



RETRATO

Para Edward Hopper


Mulher de chapéu amarelo

sentada na mesa circular

do café à beira da estrada;

cabeça inclinada, olhos

voltados para a xícara

em hora qualquer da noite

estrelada. Casaco verde

de mangas marrons, blusa 

da mesma cor, combinação

pensada para o encontro

inverossímil com seu reflexo. 

Faz frio lá fora, um cão late, 

música da juke box, tristeza

que não cabe dentro do chapéu.



JARDIM DAS ILHAS

Para Paul Gauguin


No jardim 

das ilhas

onde o sol 

é uma fruta

Gauguin pintou 

o paraíso

em borrões 

de verde-

ouro-marrom.


A terra 

é um corpo

estendido 

sob o céu

e as árvores 

são veias

que pulsam.


Mulheres 

são flores

com olhos 

nos seios

e homens 

são rios

que fluem 

para o mar.

No jardim 

das ilhas,

Gauguin 

encontrou

 o sentido

possível

na dança 

das cores.



CÉU ESTRELADO

Para Vincent van Gogh 


Pintou o infinito

com tintas de fogo.


A noite é um abismo.

que engole o mundo.


Estrelas são lágrimas

que caem do olho de Deus.


Vento é lamento

que sacode árvores.


Folhas são suspiros

que ecoam no silêncio.


A lua é um olho

que vigia o mundo


e sombras são fantasmas

que dançam no breu.


No céu estrelado 

ele encontrou o sentido

ou a ausência de sentido.


A cor é uma ferida,

que nunca cicatriza

No céu estrelado 

onde estrelas são chagas


ele pintou o infinito

com tintas de fogo.



À MANEIRA DE KLIMT


A mulher é infinita

Yasunari Kawabata 


I


Meia-lua para iniciar um poema;

letra v entre as coxas

erguendo relâmpagos.


II

Considere esta jovem mulher deitada,

a mão direita

entre os joelhos

e o antebraço (esquerdo)

na altura das pupilas,

Ariadne em Naxos.

Logo inverte a posição,

estica os tornozelos

e desenha pequenos círculos

imprecisos

com os pés,

mapa de um labirinto?

(Dríade, convoca a mitologia dos lábios

para abolir a noite.)

Súbito, sua mão escorrega

até a pirâmide invertida,

após acariciar o umbigo,

como se violasse

o silêncio

de uma pétala.

Anoitecer em ti,

percorrê-la

em cada poro

mínimo:

de uma estrela

a outra estrela

de teu céu

indecifrável.



O CIÚME

(à maneira de Munch)


— um 

puro gesto

em verde

inexcedível

de fúria

que se consome

em silêncios

de aridez

contida

e se avoluma

em voláteis

ondas

sobrepostas

a outras ondas

do mais íntimo

ignorar-se.


O poeta paulistano Cláudio Daniel. Fonte: https://vermelho.org.br

Claudio Daniel é uma das vozes mais expressivas da cena literária contemporânea no Brasil. Poeta, romancista, crítico literário e professor de literatura. Publicou diversos livros de poesia, ensaio e ficção, como Cadernos bestiais: breviário da tragédia brasileira, Portão 7, Marabô Obatalá, Sete olhos & outros poemas e Dialeto açafrão (sob a lua de Gaza), todos de poesia, o livro de contos Romanceiro de Dona Virgo e os romances Mojubá e A casa das encantadas. Os poemas que Sphera aqui publica pertencem ao livro inédito Cabeza de serpiente emplumada em vias de aparição.







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3 Comments


Marli Fróes
Marli Fróes
Dec 27, 2024

Poemas magníficos! As telas transmigrando para as palavras. Literatura de qualidade ímpar.

Abraços Cláudio.

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tadeujazz
Dec 25, 2024

Maravilhosos, todos os poemas de Claudio Daniel, meu professor de poesia. Parece excelente a Sphera. Ainda não conheço.


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bernardespoetry
Dec 25, 2024

Bravo !

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