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Cinco narrativas de Péricles Prade

Atualizado: 9 de set. de 2021


Ludwig Wittgenstein (1889-1951) Pintura - Michael Newton



Olhos azuis


Durante anos tive pesadelos com um jacaré enorme, de olhos azuis, dentro do aquário, que espantava os outros, menores, com a cauda semelhante a chicote, cuja cabeça batia no vidro, para quebra-lo, na ânsia de me engolir.

Certa manhã, deprimido, resolvi dar um ao insuportável terror noturno. O melhor a fazer seria viajar à sua procura para saber a razão da insistência desse tormento.

Consultados, amigos e conhecidos disseram que o lugar mais apropriado para encontrá-lo seria no Alto Xingu. Reuni com desagrado todas as economias e parti, sem remorso, pois a solução do mistério era a minha única e verdadeira motivação.

Antes da partida fui contatado pelo antropólogo Jean Sobek, neto de Xavier de Maistre, aquele que, para cumprir prisão domiciliar, resultado de um duelo quase mortal, em 1794, pôs-se a escrever uma insignificante ode, ao redor de seu quarto, ainda prestigiada por determinados críticos medíocres. Discreto, ofereceu-se como experiente caçador e nada pediu para o trabalho. Ainda indeciso, aceitei.

A viagem durou mais tempo do que eu havia previsto. Nesse período, o acompanhante não disse sequer uma palavra. Não era mudo, mas comportava-se como se o fosse. Estranhei, mas fiquei absorto pelos pensamentos que fermentavam notável ansiedade.

Passamos na região uns três meses e, apesar do recíproco esforço contínuo, em dias claros ou chuvosos, ou à noite, sobre canoas, quando os caçávamos, nenhum dos répteis tinha olhos azuis. Afirmo isso, sem hesitar, porque usávamos lâmpadas para melhor localizá-los.

Amargurado por não localizá-lo, disse ao companheiro que iria desistir da empreitada.

- Que absurdo!

Levei um susto. Não é que Sobek (ele queria ser chamado somente pelo sobrenome) falava? A inusitada intervenção fez com que eu lhe indagasse:

- Por quê?

- Porque estás enganado.

- Enganado?

- Enganado. Posso lhe fazer algumas perguntas?

- Claro.

- Às vezes ele parecia um dragão?

- Quando chegava mais perto da vidraça que nos separava.

- Comia pouco ou muito?

- Todos os pequenos peixes em fuga. Depois, chorava quando movia a mandíbula superior. Lágrimas escorriam e se diluíam n’água.

- Percebeu se expelia excrementos com frequência?

- Sim. Que nojo!

- Não é jacaré. É crocodilo.

Fiquei perplexo. Não estávamos na África, América do Norte ou na Austrália.

- Quem perturba o teu sono sou eu. Mire bem nos meus olhos.

Dito isso, continuou:

- Passe esta graxa no corpo, espécie de unguento para te proteger. Foste escolhido para uma missão na terra. Como Sacerdote e futuro Salvador não deixe a serpente devorar as tuas entranhas e viverás eternamente.

Abriu a mala que carregava com orgulho, colocou uma coroa de plumas na minha cabeça e o cetro na mão direita. Fez um sinal que não era o da Cruz e desapareceu sem deixar vestígios.

Os pesadelos acabaram, mas estou aqui, perdido, sem saber o que fazer, no meio da floresta.




Barriga listrada


Meu amigo Luigi Pomeranos, afilhado do Barão da Tifa-Colley, tinha uma cadela com linda estrela branca no peito. Esperta era, amada por toda família. Em agosto (o dia exato ele nunca me disse), foi encontrada morta no quintal. O veterinário confirmou a suspeita: embolia pulmonar.

O falecimento causou grande sofrimento, principalmente à caçula, que a conduzia pela coleira de pedras preciosas. Impressionado com a tristeza da menina, quis agradá-la, adquirindo outro animal de estimação, com as mesmas características. Percorreu, em vão, todos os quadrantes do país.

Não suportando mais os choros diários da criança, disse-lhe que daria outra fêmea, mesmo se fosse uma gata. Mudou de comportamento. Contente, agora andava pela casa, cantando.

Luigi, obcecado por essa ideia, abandonou o trabalho (era bem sucedido corretor de seguros) e nada mais fez, no semestre, do que ir em busca de uma substituta que pudesse lembrar Capitu, recém-premiada por causa do formidável desenho.

Perto do final de outubro recebeu correspondência, registrada, vinda de Berlim, na qual constava apenas a fotografia de uma gata com a barriga listrada. Ficou emocionado. Leu o endereço na parte traseira do envelope, comprou em seguida uma passagem, na agência próxima, e embarcou no primeiro avião disponível.

Quando pôs os pés na capital alemã manteve conversa, ainda no aeroporto, com um moço estrábico no balcão da companhia aérea. Arranhava o alemão (aprendeu-o na juventude, na época em que morava em Pomerode), mas conseguiu a informação com detalhes de como seria possível ir mais rápido ao destino pretendido. Na periferia da cidade, estranhou a paisagem. Hesitou, antes de bater na porta desbotada. Não houve necessidade de tocá-la por que uma senhora idosa, simpática, abriu-a sorrindo:

- Estava lhe aguardando.

- Onde está a perseguida maravilha?

- No sótão. Seu lugar preferido aos domingos.

Relatou-me, ainda na sala, que até hoje não entendeu o motivo de ela ter escolhido o final da semana para se esconder das visitas, na parte de cima da casa.

Apesar dessa desagradável impressão causada, o desejo de vê-la o quanto antes era maior do que o desconforto. Por isso sugeriu, com receio de não ser atendido:

- Podemos subir?

- Podemos, mas preciso que responda a três perguntas:

- Já ouviu falar na serpente Apophis?

- Não.

- Na deusa Freya?

- Não.

- Na mulher com cabeça de gato?

- Também não.

Ficou preocupado por não tê-las respondido e nenhum movimento fez quando ela resmungou:

- Salvo pela santa ignorância. Se soubesse respondê-las, jamais concordaria com a venda de minha querida amiga.

- O que disse?

- A idade não me permite que continue a cuidá-la.

Subiram a escada com dificuldade.

Sobre a cama estava a gata de barriga listrada, bonita, olhar penetrante, irônico, aquela que seria a boneca de sua filha, bonita, olhar penetrante, irônico, com quem passou a morar, até o último dia de sua vida, como se fossem gêmeas univitelinas.




Em Malta


Quando, em 1929, foi publicada a novela policial O Falcão Maltês, de autoria de Samuel Dashiell Hammett, o publicitário Humberto Ruê, manco da perna esquerda, passou a noite em claro e às 9h estava, em frente da livraria Month Alegro, ansioso para comprá-la.

Foi o primeiro a entrar e o último a sair. Somente parou a leitura quando o dono, Sr. Udschat, comunicou que o estabelecimento seria fechado dentro de alguns minutos.

Levantou-se a contragosto, sem pressa, segurou o guarda-chuva que sempre usava, mesmo nos dias de sol, e com dificuldade andou até a calçada.

Como não tirava os olhos do livro, quase foi atropelado por uma mulher distraída. Sua casa ficava perto, podia ir a pé, mas fez questão de pedir carona a um conhecido.

Ao chegar, na hora do almoço, empurrou o prato da comida preparada com carinho. Sentou-se no sofá mais próximo e recomeçou a ler com avidez incomum. A obra causou-lhe profunda excitação. Pelo menos era isso o que os seus familiares pensavam. Na verdade, o seu interesse dizia respeito, não ao enredo, mas à uma relíquia do século XVI, de incalculável valor, alvo de alguns personagens do livro: a do falcão maltês de ouro.

Depois da leitura, ninguém mais teve paz. Ele passava os dias, de manhã à noite, repetindo:

- Falcão maltês, falcão maltês, falcão maltês!

Meses inteiros fluíram e ele não mudou o martelado hábito, constrangendo a todos. Certa de que a loucura nele se instalara, sua mulher resolveu interditá-lo e interná-lo no hospício Hariêse, especializado nessas monomanias.

Lá permaneceu uma semana. Fugiu pela janela da cozinha, que a enfermeira Érica havia esquecido de fechar. Aflita, a esposa procurou o psiquiatra Angelus Sokar para saber o que houve e como deveria portar-se diante desses delírios.

- Não sei a causa da fuga.

- Onde ele pode estar neste momento?

- Prefiro não dizer.

- Por favor, o caso é de vida e morte.

- Está em Malta.

- Em Malta?

- Um arquipélago, entre a Sicília e o Norte da África.

- Meu Deus! Fazendo o quê?

- Protegendo o falcão maltês.

Ela não acreditou muito nessa história, mas, por via das dúvidas, foi para Malta em companhia do filho maior, Artur, que teve a ideia de atraí-lo com um anúncio na rádio local. Assim agiram e nele declararam que possuíam a famosa estatueta medieval e a venderiam por um preço razoável.

O problema é que apareceram no hotel trinta indivíduos querendo adquiri-la. Um deles (não aparentava ser o mais alucinado) ofereceu uma quantia fabulosa e ficou furioso ao ser informado que outro interessado havia comprado a peça.

Mãe e filho lamentaram o insucesso da missão, quando estavam pagando as despesas da hospedagem, foram surpreendidos por ele, com rifle nas mãos e vestido como falcão da cintura para cima.

- Falcão maltês, falcão maltês, falcão maltês!

Passados alguns minutos, a pedido do recepcionista chegaram três policiais, cujos roupões se assemelhavam a asas de pássaro. Foram ao encontro dele, que, sem resistência, se limitou a olhá-los, paralisando-os.

Perto da bancada da recepção vários hóspedes, estupefatos, tentaram agarrá-lo. Não adiantou. Também ficaram imóveis, os olhos vidrados e a respiração ofegante.

Com destreza, correu aos saltos até a porta principal (agora não mancava) e voou o mais alto do que se pode imaginar.

Em fevereiro, numa escarpada montanha, o nome dela não me recordo, ele foi descoberto morto, congelado, sem arma, com uma iguaria sangrando na boca. E parecia feliz.

Sugeri que prestássemos a ele singela e sincera homenagem: embalsamá-lo e presenteá-lo ao Museu da cidade para a glória nossa e de todas as aves de rapina.




Outra natureza


No velório os presentes não comentaram a desventura da jovem, prostituta conhecida nas redondezas. As conversas giravam sobre a razão de ela ter tantas tatuagens no corpo, todas em forma de aranha. Uma delas atraía a que estava incrustada em sua testa, com uma cruz negra no estômago.

Entre os que a velavam destacava-se o professor Jeremias, figura curvada, de óculos escuros e semi redondos. Falava baixo. Apesar de não entendê-lo muito bem, Wolfang, um desconhecido de meia idade, ouviu algo mais ou menos assim:

- Não se preocupe. Essa espécie de aranha tem outra natureza, bem diversa das demais, africanas, venenosas, às vezes flutuantes, impostoras, chupadoras de sangue e tecedoras redes para serem comidos os organismos menores.

Falou à vontade, sussurrando, pouco se importando se alguém tinha ou não interesse no que dizia.

- Não se deve matá-la. Traz boa sorte. A moça sabe do que estou falando.

Aborrecido com a conversa, virou as costas ao velho tagarela e foi para o lado do caixão, colocado em frente da porta da saída.

Fixou o olhar na aranha tatuada com a cruz no estômago e percebeu que ela se mexia. Enorme a surpresa. Viu que, angustiada, ela se dirigiu até a boca da falecida. Com as patas separou os lábios e se enfiou, sumindo da vista de todos.

Impactado com a cena, lembrou-se do mestre até então desprezado. Com certeza teria uma explicação plausível para esse fenômeno. Foi informado, pela dona do bordel, onde ele morava nos fundos, que havia deixado o local aos prantos.

Precipitou-se ao seu encalço. Abordou-o na próxima esquina. Andava devagar. Antes mesmo de qualquer pergunta, falou de forma pausada:

- Não prestou atenção no que eu disse? Poderia conhecer mais sobre esses insetos milenares.

- Perdão.

- Volte ao velório. Daqui a pouco ela sairá da boca de Lorena. Quando isso acontecer é que, enfim, sua alma deixará a carne e ficará em paz.

Suando, entrou na sala.

Tenso, concentrou-se em sua face a tempo de ver a aranha sair, um tanto desconfiada, olhando à direita e à esquerda, para, num único pulo, pousar atrás de uma orquídea solteira.

Convicto ficou de ela ter agido assim por que não havia mais espírito no corpo, podendo, então, a hospedeira ser conduzida ao enterro programado.

Dois anos se passaram até que, em sua casa, antes de dormir, recebeu a notícia: Jeremias havia morrido e seria velado de madrugada no cemitério de Itacorubi.

Soube mais tarde, pelos parentes dele, que o sábio fazia questão de sua presença. Não gostaram, mas cumpriram o desejo.

Entrou no recinto, ressabiado, quando a cerimônia fúnebre estava terminando.

Alguma energia espiritual havia nesse pedido, pois não existia relação íntima de amizade que justificasse o pedido. Tudo se resumia àquelas trocas de palavras que o fascinaram e o deixaram tão absorto por um longo período.

Como apenas três pessoas ajudavam carregar o caixão, assumiu a quarta posição, segurando a alça com reverência.

Antes de ser posta a viseira para fechá-lo, notou certa ansiedade no rosto que fitava. Quase por instinto, olhou para a boca do defunto, que aos poucos se abria. De repente, uma aranha feliz nela surgiu e mergulhou certeira no bolso do seu paletó. Um sorriso generoso e discreto do mestre transmitiu memorável lição ao respeitoso discípulo passageiro.




Confissão


Não direi o meu nome. Nem de longe pretendo comprometer o ex-amigo Ludwig Wittengenstein. Ele sempre foi muito claro ao exigir silêncio absoluto sobre o nosso segredo.

Fui acolhido por ele em Cambridge, Inglaterra, por volta de 1911, quando, discípulo de Bertrand Russel, aquele extraordinário filósofo resolveu aprofundar o estudo da Lógica. Reservado, falava o necessário. Nossa amizade foi intermitente por que, na Primeira Guerra Mundial, esteve no fronte russo e italiano, ocasionando o nosso afastamento. Foi, no entanto, retomada em 1921, época da publicação do seu famoso Tractatus lógico-philosophicus, um livrinho de 70 páginas.

A excelente convivência desgastou-se com o tempo. Um dos mais sérios entraves foi a minha crítica àquele texto, tido por pretensioso por que Ludwig acreditava ter, com os seus fundamentos, dirimido todas as dúvidas da Filosofia.

Eu estava certo. Os problemas centrais da Filosofia continuavam à solta. Ele não discordou, tanto que passou a ser o crítico mais contundente de si mesmo, abandonando as proposições assertivas anteriores. Não resistiu, tendo, com novos pensamentos, em 1953 publicado Investigações Filosóficas.

Gostei dessa obra, mas dela conservo apenas um esplêndido aforismo: sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar. Creio que deve ter afirmado isso por considerar a Lógica uma imagem-espelho do mundo.

O rompimento entre nós era previsível. Verdade seja dita: jamais ele desdenhou minhas intervenções nos instigantes campos da Lógica e da Linguagem. Rompeu-se quando, brincando, disse que ele, se não fosse um brilhante intelectual, pelo menos tinha habilidade para ser primoroso jardineiro.

Reconheço que ele ficou ofendido e com razão, caso contrário não teria, de modo agressivo, me liberado de um pacto que havíamos estabelecido. Bem por isso, lançou o desafio:

- Quero ver se tem coragem para confessar o que só nós dois sabemos.

Evidente que me desafiava para não voltar atrás. Rompia também com um de seus dogmas. Preferia que eu não me calasse.

Aceitei o desafio sem reclamar. Não por conta da coragem ou coisas desse tipo, mas por que tenho o desejo incontido de relatar o meu drama. Daí a necessidade desta confissão.

Sou parente remoto da tribo escítica dos neuroise. Fazíamos continência ao enorme totem de um lobo, todos os dias, e, uma vez por ano, sem exceção, éramos transformados nesse animal.

Passado no máximo um mês, voltávamos a ser humanos. Essa era a regra no curso da existência. Não consegui retornar a essa condição. Mantive a fala, a escrita, a consciência humana, mas o corpo é de um lobo.

Desorientado, vagava pelos becos da cidade e, durante o dia, ficava escondido nos latões, na esperança de não ser descoberto.

Relembrando: certo domingo, em Viena, ano de 1909, ao sair da toca, pisei sobre a folha de um jornal local, onde li esta diminuta nota: “cumprimentamos o engenheiro Ludwig Wittgenstein que, em breve, nos deixará para estudar Lógica na Inglaterra”. A ficha caiu. Sempre fui exímio nesta disciplina e compreendi que chegara a ocasião para abrir caminho de diálogo com alguém preparado e disposto a me salvar.

Fui até a casa dele, belíssima, e notei que pertencia a uma família rica. Dei a volta por trás. Às 5 horas, sem fazer barulho, entrei no quarto dele. O jovem, estirado sobre o dossel, tinha por volta de 19 anos. Dormia profundamente. Rocei com carinho a sua perna. Perplexo, deu um salto. Disse-lhe que ficasse tranquilo.

- Tenho a aparência de lobo, mas sou homem.

Por incrível que pareça, comportou-se sem alarde e ouviu com atenção minha história. No fim da conversa confidenciou que poderia me adotar, mas não naquele momento. Deveria procurá-lo 3 anos quando deixaria a Áustria rumo a outro país.

Assim o fiz. Quanto à nossa conturbada relação, todos agora sabem o que ocorreu após esse imprevisível encontro.

No momento minha preocupação é outra. Os lobos têm fama de inimigos cruéis e maus. Nem todos os humanos são pacientes e compreensivos como o generoso pensador quase calado. Não quero ser abatido sem o escudo de um novo protetor.

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