
Pedro em foto de Dulce Mahumane
Elegia sem dó nem piedade
Um dia nos cai o disfarce e descobrimos que nunca f
omos escritores ou poetas ou artistas –
tínhamos só uma fantasia de tudo
da coisa que com fogo cuidávamos que fôssemos
pois – há muito de belo nisto, estarmos num ca-
fé, numa tasca do centro ou numa esquina de um su-
búrbio qualquer a encetar conversa sobre os poemas
lidos nos manuais de escola e a maldizer dos cânones
para depois trocarmos um maço de versos iniciáticos
cada um com o desejo de ser o maior isto ou aquilo dos n
ossos tempos. Mas não é bem assim, não, não é
somos apenas uns pobres idiotas, uns muito pobres idiotas!,
com alguma educação, está visto, e o falso tabloide chamado re-
de social – que nos impede ou nos impele viver cada mi-nu-to
afinal, um dia nos cai a máscara e temos filhos com mães difer-
entes, pensões por pagar, a geleira vazia e o sonho da casa própria
e há ainda o emprego que nos soa a um hospício desgraçado
e já não há tempo a dedicar um poema ao povo, à bunda da senhora
ou à Republica que também é uma bunda de ódio e repressão
e ser ouvido – o desejo de ser ouvido – dá lugar ao ouvir as tripas.
Quem diabos diria, não é? Todos esses anos a comprar l
ivros, a entulhar as estantes com clássicos brilhantes e foscos
a revisar textos a emborcar garrafas para darem brilho às caganitas d
a musa. Um dia nos cai o disfarce e topa-se o desperdício de talento
engenho para escrivão, para copywriter ou professor de português
numa escola do interior – qualquer outra coisa mais significativa
e aí nos dói os dois livros sofríveis impressos à custa da poupança
poucos vendidos, metade deles oferecidos aos amigos que
não gostam de ler; também não houve crítica, duas ou três idas à
TV, mas foi tudo em nome da alma, não fomos homens comuns.
E o tempo perdido? Recupera-se um poema?
A rebeldia veste fato e gravata e diz: “Sim, senhor”!
Surge uma vaga para político, para PCA, para amante de duas mo-
ças; já se esfumou o inferno e a vaidade do poema lindo
e sorrindo depois de tanto tempo que não vale o tempo
só nos restará imitar os escritores ou os poetas que não fomos
de sonhos prenhes de futuro e manhãs suicidas com café
e quem sabe reunir aqueles textos zumbis e fazer uma colectânea
e voltar a supor com um prémio carreira para a reforma do p
oeta – não, não, não seria isto instantâneo e podre sol?
Um dia, a cambalear de velho, com o rifle do tabaco na gengiva
sem a máscara do bode, que também tem duas grandes bolas e chi-
fres, e a vida fez-se num lampejo de merda pouco comovente
(terá faltado, se calhar, sorte ou norte e as coisas mudaram)
com uma crua ferida no desnudo coração – assumiremos
que vida houve, mesmo na margem indiferente do real.
quatro quadras das bordas estreitas do coração
a-
um colibri não hesita – os beijos são sempre melhores
do que os melhores – o amor funda-se à socapa
o tempo a correr sempre a correr faz quilómetros
faço pontaria – há suor ou néctar na imitação do Éden
b-
num dia soltou-se o solstício em fiapos no teu rosto
e mesmo marcado pela cama que se faz sobre o teu corpo
soube afinal da vertigem que é adentrar em tal zepelim
deus nenhum é louco bem-fadar assim um zé-ninguém
c-
as cortinas do amor caem com o sol em falta no sol
não é amor o amor achado dentro do instantâneo infinito
e para quem não é dado a dados e promessas de dedos
cuidar de leve das memórias impõe muito mar
d-
três gins e desejos já Marte é destino – a sede amiúde cede
desatino: a saudade só não é arte por conta de sua brevidade
é ressaca e passa logo e mais dias “o homem está na cidade”
“o coração [está] disparado/ pisoteia-lhe a flor” – diz para si.
o homem existe dentro da fraude
1.
Sala nua
incenso e álcool no ar
a cabeça toda no ar
não se pode ver o homem
2.
Há um assobio de veludo –
sala nua e o ofício do sono
a lápide sobre os joelhos
não se nota o homem imenso
3.
O homem é um gnomo
fechou ciclos abriu ciclos
foi Li Bai na lua da Apollo
é só promessa para vilão
4.
Sala nua
dentro do homem fala O Deus
o incenso pesa e o álcool é frio
o homem existe dentro da fraude
.uma elegia funda, gosto!