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A última conversa em Andara: entrevista com Vicente Franz Cecim por Nicodemos Sena

Atualizado: 10 de nov. de 2021



A conversa a seguir, transcrita em forma de entrevista, aconteceu no mês de setembro de 2001, na V Feira Pan-Amazônica do Livro de Belém do Pará.

Depois de doze anos em silêncio, o consagrado escritor paraense Vicente Franz Cecim reaparecia com um estranho livro, a começar pelo seu enigmático título: Ó Serdespanto.

Tratava-se da 11ª “partitura” de “Andara, o livro invisível”. Espécie de “sinfonia” de signos e significados, ou “legião” de vozes, uivos e gemidos do abismal colosso de significantes e significados, sons e ruídos, palavras e silêncios, incomparável, inclassificável, mas não hermético e sim aberto ao Humano e à Vida, que o fabuloso autor paraense começou a construir em 1979, com A asa e a serpente.

Ó Serdespanto fora lançado com retumbante sucesso em Portugal, pela Íman Edições, do escritor português-moçambicano António Cabrita.

Eu conhecera Cecim dois anos antes, e, imediatamente, como almas que se reconhecem irmãs, tornamo-nos amigos. Por isso, em vez de conceder-me uma entrevista convencional, arrastou-me para o que ele chamou de uma "conversa de compadre". “Atravessar o que nos nega: chegar ao Sim”, é a nossa divisa. Além de temas caros ao ser humano, como realidade, sonho, natureza, imaginário, mitos, lendas e a necessidade de transpor a fronteira entre literatura e vida, Vicente falou-me também de uma Santarém que ele entreviu apenas em sonhos, já que nunca viera à "Pérola do Tapajós", como é conhecida a sede do maior município do oeste do Pará, onde eu e sua mãe Yara Cecim, também escritora, nascemos.

Compartilho essa nossa já remota conversa dois meses após a partida do meu amado amigo-irmão Vicente Franz Cecim para a Terra sem Mal, onde nossos antepassados bailam às margens do grande rio chamado Desejo, onde qualquer dia desses nos reencontraremos, e, então, libertos das ânsias e medos desta vida terrena, no mais completo silêncio, retomaremos esse diálogo ameno, fraterno, luminoso e epifânico. Vamos à conversa?



Nicodemos Sena & Vicente Franz Cecim



NS: Além dos importantes prêmios literários já conquistados por teus livros, "Ó Serdespanto" acaba de ser lançado na Europa. Achas possível fazer uma "literatura amazônica de exportação"?


VC: Te digo, citando um milenar provérbio chinês: "Uma viagem de mil milhas começa com um único passo". E te dou uma chave da vida, que há pouco tempo se revelou a mim subitamente e que eu escrevi na parede da minha sala como uma inscrição sagrada, um guia para os meus próprios passos: "O que a gente procura nos acha". Mas também te pergunto: por que buscar lá o que está aqui?



NS:

Dia 23/09, na V Feira Pan-Amazônica do Livro de Belém, você terá ao seu lado, numa mesa-redonda, o francês Jean Soublin falando de "O real e o imaginário na narrativa amazônica". Será que a Europa, berço do racionalismo, ainda tem algo a nos ensinar sobre "imaginário", ou nós, amazônidas, é que temos muito a dizer sobre o tema?


VFC: Quanto a isso, eu te respondo com as palavras de Lautréamont: "A poesia deve ser feita por todos, não por um". Pois não esquece que seres autossuficientes, fechados em si, sem generosidade, sejamos nós ou eles, tornam-se todos igualmente insignificantes, supérfluos, dispensáveis para a vida. E quero te citar um trecho do "Manifesto Curau", também chamado "Flagrados em delito contra a noite", que lancei em 1983: "O medo ocidental culto é o medo dos imperialismos da Razão, e sua base econômica é totemicamente moral, às possibilidades históricas e estéticas da África, da Ásia e da América Latina. Mas também não temos o direito de esquecer que é com esse medo que as autoridades desse Ocidente culto submetem o indivíduo ocidental anônimo: latente aliado do Terceiro Mundo para uma insurreição em escala planetária".


NS: E as lendas e mitos do nosso antepassado indígena, prenhes de imaginação e poesia, ainda são um modelo válido de narrativa, ou os escritores amazônidas precisam reinventá-los?


VFC: E eu te digo, outra vez citando o “Manifesto Curau”: “Nesse imaginário, é esta região na verdade quem fala, e, através dela, falaremos todos nós. Bastará que ele nos diga algo. E escutar. Com muita humildade. Muita radical exasperação também. E sonhando bastante os nossos sonhos, a todo instante. E deixando que esses sonhos, os individuais, se misturem com os sonhos da região. Porque, no fundo, só uma coisa sonha e nos sonha: a Vida. É preciso dar-se, deliberadamente, a ela. E é preciso insistir: Nossa História só terá realidade quando o nosso imaginário a refizer, a nosso favor".


NS: Do que trata "Ó Serdespanto" e que técnicas de narrativa empregaste para construí-lo?


VFC: Cá entre nós, Nicodemos, que ninguém nos ouça, citando Pessoa: "Sou técnico só na técnica, no mais sou louco, com todo o direito de sê-lo". Quanto ao que é, ou quem é Serdespanto, é fácil: Serdespanto sou eu, és tu, e quem está nos lendo neste instante ou não nos lê. Para ser um Serdespanto basta ter nascido.


NS: Teus livros foram para mim, filho das selvas do município de Santarém, verdadeira epifania; eles ensinam como fazer prosa moderna sem romper com a tradição do imaginário amazônico.


VFC: Acho que devo isso a Santarém, a terra onde nasceu a minha mãe, no Caxambu ou foi em Alter do Chão, por aí, por essas margens, minha mãe Yara, que foi logo recebendo mal espiava aqui para fora, para a vida, esse espanto, foi logo recebendo esse nome de sereia de água doce ao ser doada às iaras que cantavam embaixo da casa, no rio, na noite em que ela nasceu, e esse nome assim dado a ela como que querendo logo imergir a menina em dimensões mais encantadas, ele foi dado pela minha avó Onorina.


NS: Também conhecida por dona Pupuia?


VFC: Sim, dona Pupuia, que já se vê que era alguém com os parafusos certinhos soltos só de se saber, entre outras coisas, que ela, essa minha avó, me dava desde pequenino o cachimbo dela escondido para eu fumar fechando a porta do quarto para ninguém saber, pois era um segredo só entre nós, e ainda me balançava, xamã entre fumaças, em altos voos e me parece que com entusiasmo na rede em que deitava comigo parecendo inocentemente que era para me fazer dormir mas na verdade era para me fazer ficar zonzo de tabaco e voos até eu começar a sonhar, era para me fazer saltar também logo desde criança para fora da realidade: a mesma coisa que havia feito com a minha mãe na doação da menina às iaras.


NS: Como sabes tanto da "tupaiulândia" (terra dos “tupaius”, que habitavam na embocadura do Rio Tapajós), mas nunca vieste a Santarém?!


VFC: Mas tenho Santarém: em mim, que sou um pedaço dessa mãe, que era um pedaço da minha avó e isso sendo assim uma raiz irradiante ou uma serpente em movimento que veio vindo de bem longe. Mas eu conheço mesmo Santarém, essa que as pessoas conhecem? Ou é Outra? Não sei, pois é de sonhar Santarém que conheço Santarém, não de viver Santarém, porque nunca estive em Santarém. Na verdade, foi Santarém sonhada, de uma certa forma muito secreta, que me fez tomar gosto pela literatura que faço assim tão hipnotizada por si mesma, mas, antes, pela vida como um Sonho que sonhamos e nos sonha. Parece muito estranho conhecer Santarém só de sonhos, assim como quem conhece alguém de vista, como se diz, ou de esguelha, ou com o canto do olho ou de soslaio como uma presença ausente que passa e quando a gente quer ver o que era já é tarde demais: já passou, ficou só um rumor de passos sem passos, ou nem isso: só um silêncio vazio, ou uma brisa, ou nem isso: só uma leve sensação de vertigem, ou ficou só uma Sombra, ou nem isso: só as coisas invisíveis que causam quando passam, roçando, por nós, nem sequer uma leve agitação no ar.


NS: Será que vem daí a constante fusão de realidade e sonho que se vê nos teus livros?


VFC: Talvez, pois foi assim que eu fui conhecendo Santarém: através dos sonhos que minha mãe me fazia ter quando contava histórias da Amazônia para mim e os meus irmãos nos embalando na rede, mas mansamente, não com a energia da minha avó, e pense agora nisto: é sempre na rede, na rede: essa passagem oscilante entre a vigília e o sono, que essas coisas se dão: na rede, que certamente não eram várias redes passando por gerações e gerações de membros da família, mas uma única rede, a Única rede, pois mais real que todas as redes é a Ideia de rede, como nos ensinou Platão. Essa Rede então, já então se balançando em Belém onde nós, os netos e os filhos nascemos, foi nela que eu fui conhecendo a Santarém que eu conheço e que hoje talvez já seja tarde demais para eu suspeitar que não é a real, e falsa essa Santarém que nunca vi por fora, já que foi essa outra Santarém que fui conhecendo através das histórias da minha mãe, que já haviam sido contadas a ela pela minha avó, vê só: a serpente que veio vindo lá de longe mais uma vez aqui. Ouvindo ela, essa mãe, contar, eu ia caindo para dentro dessas histórias, saindo do real de mansinho e quando via, ou não via mais nada, não de olhos abertos, já estava era sonhando, isto é, vivendo no interior da história e os Taú-Taú, esses macacos-homens ou homens-macacos, ali querendo me engolir com aquelas bocas enormes de sonho que tinham diretamente abertas na boca do estômago.


NS: E o medo que as crianças sentem ao ouvirem essas histórias? O medo tem algum papel nos sonhos?


VFC: Mas a gente gostava de sentir medo e pedia: Conta mais uma, mãe. E assim como a minha vó havia contado a ela, ela contava a nós seus filhos. E continuou contando aos netos e ainda está contando aos bisnetos, o que me faz pensar que os contadores de histórias deveriam ser eternos e, olhe, repare: isso é novamente a serpente que veio vindo lá de trás dos fundos dos tempos parece que querendo aumentar cada vez mais a distância entre o seu rabo, onde começou, e a sua cabeça, sempre avançando sonhos a dentro. Então, era assim. E a gente gostava de sentir medo. Porque quem tem medo do medo é gente grande, criança gosta de sentir medo. E sabe por que gosta? Foi o que eu aprendi: porque criança entende a vida: a Vida, como uma coisa só, toda inteira, não a vida contra si mesma, partes combatendo com outras partes e ainda não aprendeu a dividir em bem e mal e para ela tudo é inteiramente só o espanto de viver que vale mais que tudo. "Vale a pena, se a vida não é pequena", como disse certa Pessoa. Então, para ela só há esse espanto de ser um serdespanto, e ela dá um doce por um susto. É ou não é, repare?


NS: Como dizes: "Mas (a Vida) não dá a mínima para as serpentes do banal, as serpentes enraizadas que não rastejam pelos sonhos". O que dirias aos futuros escritores do oeste do Pará?


VFC: Digo que é melhor vocês aí de Santarém beberem em suas próprias fontes, mesmo que pareçam ser só poças de água, e se ainda tiverem sede, então leiam os livros de histórias que essa vó se deu ao trabalho de contar para a minha mãe e que minha mãe se deu ao trabalho de contar para os seus filhos e depois se deu ao trabalho de escrever para contar a vocês essas histórias antes que a serpente da memória devore a sua própria cauda. Mas só façam isso se quiserem fazer sonhar a criança que ainda quer brincar e está amarrada dentro de vocês, de cara amarrada dentro de vocês, sentada num canto sem graça dentro de vocês. Essa criança é, em Santarém, a mesma criança trancada no escuro dentro de qualquer adulto de qualquer parte do mundo. Mas pode voltar a vir a ser como aquela criança que me disse uma vez em Portugal: "O medo é a luz fugindo do escuro".


Vicente Franz Cecim & Nicodemos Sena

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