Seleção, organização e introdução de Afonso Henriques Neto
A POESIA ENTRE OS GUIMARÃES E OS GUIMARAENS
Alphonsus de Guimaraens Filho organizou e publicou em 1959, por meio do Ministério da Educação e Cultura, as Poesias completas de Bernardo Guimarães. No livro constam informações preciosas sobre os primeiros escritores da família Guimarães, a começar pelo pai de Bernardo, o poeta João Joaquim da Silva Guimarães, que nasceu em Sabará, Minas Gerais, em 1779 e faleceu a 24 de junho de 1858. João Joaquim foi oficial superior da guarda nacional em sua província, onde exerceu vários cargos de eleição popular, sendo deputado na primeira legislatura geral. Os filhos guardaram alguns poemas do pai aparecidos em jornais da época, pois ele não chegou a publicar livro. Cito a primeira e a última parte de um desses poemas, intitulado “A buena-dicha”, na condição de primeiros versos, de que temos notícia, escritos na família:
Trazem, Marília bela,
As moças todas no sinal da palma
Retratadas sua alma,
Seu coração, seu fado, sua estrela.
Chamam-lhe – buena-dicha –
E a sorte a lê-la me ensinou prolixa.
(...)
Seja o que for, sem medo,
Já que queres saber tua ventura,
Eu dessa formosura
Fiel te explicarei todo o segredo.
Tu já não tens mais fado,
É o meu que vejo nessas mãos traçado.
Após João Joaquim, o primeiro poeta dos Guimarães, vemos surgir o nome do filho Bernardo, o primeiro grande escritor da família. Nascido em Ouro Preto, Minas Gerais, em 15 de agosto de 1825, Bernardo Joaquim da Silva Guimarães foi conhecido poeta romântico e autor de vários romances de amplo sucesso, como é o caso de A escrava Isaura, publicado em 1875, clássico da literatura em língua portuguesa e que bem situou Bernardo na campanha abolicionista. De seus irmãos, dedicaram-se também às letras Joaquim Caetano da Silva Guimarães, que chegou a Ministro do Supremo Tribunal de Justiça, e o padre Manuel Joaquim da Silva Guimarães, cujas poesias Bernardo Guimarães arrolou, juntamente com as de seu pai, no volume Folhas do outono, publicado em 1883.
Bernardo matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em 1847, onde se tornou amigo íntimo e inseparável de Álvares de Azevedo e Aureliano Lessa. Bacharelou-se em Direito em 1852. Exerceu a profissão de jornalista no Rio de Janeiro em 1859 e 1860, seguindo depois para Goiás e retornando à Corte em 1864. No Rio de Janeiro cultivou a amizade de Machado de Assis, que dele vai se recordar na conhecida crônica “O velho Senado”, publicado no livro Páginas recolhidas. Escreve Machado: “Assim, dizendo que no mesmo ano [1860], abertas as câmaras, fui para o Senado como redator do Diário do Rio, não posso esquecer que nesse ou no outro ali estiveram comigo, Bernardo Guimarães, representante do Jornal do Comércio, e Pedro Luís, por parte do Correio Mercantil, nem as boas horas que vivemos os três. Posto que Bernardo Guimarães fosse mais velho que nós, partíamos irmãmente o pão da intimidade. Descíamos juntos aquela Praça da Aclamação, que não era então o parque de hoje, mas um vasto espaço inculto e vazio como o Campo de S. Cristóvão. Algumas vezes íamos jantar a um restaurant da Rua dos Latoeiros, hoje Gonçalves Dias, nome este que se lhe deu por indicação justamente no Diário do Rio; o poeta morara ali outrora, e foi Múzio, seu amigo, que pela nossa folha o pediu à Câmara Municipal. [...] Bernardo Guimarães não falava nem ria tanto, incumbia-se de pontuar o diálogo com um bom dito, um reparo, uma anedota. O Senado não se prestava menos que o resto do mundo à conversação dos três amigos.”
Em 15 de agosto de 1867 Bernardo casou-se em Ouro Preto com D. Teresa Maria Gomes. Tiveram oito filhos, seis homens e duas mulheres. Dos filhos, Horácio Bernardo Guimarães foi poeta e jornalista; Afonso Silva Guimarães, contista, é autor de Ossea mea e Os borrachos; Bernardo Guimarães Filho também foi escritor, em que sobressaía a veia humorística; e, por fim, o professor Pedro Bernardo Guimarães, deputado e historiador. Das filhas, Isabel se tornou mãe dos poetas João Guimarães Alves e José Guimarães Alves, enquanto Constança foi noiva do primo poeta Alphonsus de Guimaraens, tendo ela falecido em Ouro Preto aos 17 anos de tuberculose no ano de 1888. Bernardo Guimarães falecera pouco antes, também em Ouro Preto, a 10 de março de 1884.
Carlos Drummond de Andrade, no livro Confissões de Minas, publica bela crônica intitulada “João Guimarães”, com a referência de ter sido escrita em Belo Horizonte, 1934. Nesse texto, Drummond relembra a amizade que teve com o neto de Bernardo Guimarães, o poeta João Guimarães Alves (1892 – 1934), importante nome do primeiro momento do Modernismo em Minas Gerais. Diz o poeta de Itabira na abertura: “A vida separa os amigos, que a morte vem juntar bruscamente. Eu, que há tanto tempo havia perdido João Guimarães Alves, agora torno a encontrá-lo, ao entrar na sala da redação e receber a notícia de que, em Soledade [Minas Gerais], ele fechou os olhos.” Mais na frente: “O poeta João Guimarães Alves tinha a voz forte e o gesto violento que devia ter outro poeta do temps jadis, François Villon. E o punho forte também. Mas esse punho não se abatia com brutalidade sobre um literato medíocre ou um notívago importuno, sem que o coração do poeta corrigisse logo a demasia física. Era impossível ficar brigado com João por mais de cinco minutos.” E ao fim: “Tenho de novo João Guimarães no meu convívio. Suas mãos enormes contam as fichas do chope. Sua grande voz repete Raimundo Correia, ou então, de sua própria fábrica, o soneto em que desfilavam as namoradas de um ano:
913, o ano dos anos!
Ano em que, de alma feérica e iludida,
saboreei, na taça dos enganos,
o capitoso vinho desta vida.
Afinal, João Guimarães é todo um pedaço de minha vida, como terá sido para Milton Campos, Batista Santiago, João Alphonsus, rapazes que, à feição de todos os rapazes do mundo, misturamos um dia a coisa literária com a coisa humana.”
Há que se lembrar, por seu turno, do irmão mais novo de João Guimarães, o poeta e também neto de Bernardo Guimarães, José Guimarães Alves (1910 – 1992). Bem jovem, publicou poemas de caráter nacionalista em números do suplemento modernista Leite Criôlo, que saíram ao longo do ano de 1929 no jornal Estado de Minas. São versos impregnados de romantismo banto, com o intuito de combater a tendência paulista favorável à Europa e pouco representativa das autênticas raízes nacionais. José Guimarães participou da criação do Suplemento Literário Minas Gerais, onde colaborou na condição de poeta, tendo sido diretor da Imprensa Oficial no período de 1961 a 1966. Além de poeta, editor e jornalista, foi crítico de arte, de literatura e de teatro.
Chegamos, então, ao momento em que um dos troncos dos Guimarães se torna Guimaraens. Tal fato aconteceu pelo lado da descendência do poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens (1870 – 1921), o segundo grande nome literário da família, que era sobrinho-neto de Bernardo Guimarães. O nome de batismo de Alphonsus, nascido em Ouro Preto, MG, era Afonso Henriques da Costa Guimarães. Portanto, a latinização do nome civil para Alphonsus de Guimaraens, seu nome literário definitivo, foi uma criação só acontecida e firmada após o ano de 1894. Alphonsus vai se casar com Zenaide Silvina de Lima em 1897, em Conceição do Serro (a partir de 1943 Conceição do Mato Dentro), MG, e os filhos do casal vão, desse modo, receber o sobrenome Guimaraens, deixando de lado o Guimarães do resto da família. Lembramos que o irmão mais novo de Alphonsus, o poeta Arcanjo Augusto da Costa Guimarães, vai latinizar o nome literário por influência de Alphonsus, passando a se assinar Archangelus de Guimaraens (1872 – 1934) e também batizando os filhos com este sobrenome.
Dois filhos de Alphonsus de Guimaraens serão, por sua vez, escritores de renome. João Alphonsus (1901 – 1944), nascido em Conceição do Mato Dentro, MG, foi um dos principais contistas e romancistas do Modernismo brasileiro. Escreveu também poesia, publicada em periódicos e nunca reunida em livro. Os acentos chistosos do espírito modernista podem ser entrevistos, em todo o seu caráter de fina ironia, na deliciosa “Toada da onda”, escrita por João em 1926:
O diabo é que a vida
Nem sempre porém...
Toada da onda
Que vai e que vem.
Mas da onda daonde?
Até nem sei bem...
Ora bolas! Da onda
Que vai e que vem...
Carlos Drummond de Andrade, que foi amigo de João Alphonsus na juventude, diz em crônica do livro Passeios na ilha: “Gosto em especial dessa onda vagabunda, que parece ela própria dizer: Ora bolas!, e que lembra irresistivelmente o jeitão do poeta, na sua filosófica postura diante da vida. Era gordo, calmo. Descria mais do que acreditava. E sua boca parecia guardar sempre uma zombaria, que, por desdém, não se formulasse.” E mais adiante indaga: “Por que terá João Alphonsus renunciado à poesia, se para ela se apresentava tão bem dotado?” Pensamos que tal ‘renúncia’ se deveu à incontornável consciência do próprio escritor de que o ficcionista era de tal ordem preponderante em seu espírito que a poesia acabou sendo relegada a plano secundário. Sem que esqueçamos, contudo, do forte sopro poético que perpassa praticamente toda a prosa escrita por João, autor de contos do quilate de “Galinha cega” e de “Sardanapalo”, clássicos da ficção brasileira.
O outro filho de Alphonsus de Guimaraens que alcançou renome nacional é o poeta Alphonsus de Guimaraens Filho (1918 – 2008). Nascido em Mariana, MG, Alphonsus Filho, cujo nome de batismo é Afonso Henriques de Guimaraens, foi autor de extensa obra poética em que prevalece o sentimento lírico-elegíaco. Percorreu com maestria o verso livre e as mais diversas formas fixas do campo poético, sendo considerado pela crítica um dos maiores sonetistas brasileiros. Por isso mesmo, Carlos Drummond de Andrade vai afirmar que Alphonsus Filho sempre nos enriqueceu “com sua melodia de órgão e flauta transversa, buscando conciliar os desconcertos do mundo e abrir um caminho de céu a céu, entre sombras. Das vozes mais puras que já se escutaram em verso no Brasil.” Ou ainda lembrar o que dele disse José Guilherme Merquior: “Alphonsus de Guimaraens Filho é hoje um dos nossos mais altos poetas, na linha de toda uma tradição de sensibilidade e linguagem.” Para que se possa ter uma ideia da altura a que chegou a poesia de Alphonsus Filho, reproduziremos o soneto intitulado “Segundo poema dos oitenta anos”:
O eterno indagar: por que chegamos?
E na viagem que se segue inquieta
e trepidante, quem em nós secreta
pungir ou alegria indecifrados,
que se fundem, se esvaem, quando vamos?
Cada década se esfaz e como pesa
depois, sentir o ido! O que se preza
é algo que veio num rolar de dados.
Mas eis-me aqui, jungido a este momento
em que tudo é um volver para o já sido
que eu busco em vão nos seus desvãos reter,
vendo que a sombra de um veleiro lento
é tudo o que restou de um cais partido
onde espantoso mar devora o ser.
Em 1944 nasce em Belo Horizonte, MG, Afonso Henriques de Guimaraens Neto, primogênito de Alphonsus de Guimaraens Filho, que irá se assinar literariamente Afonso Henriques Neto. Tendo publicado quatorze livros de poesia, um de textos híbridos (poesias, contos, traduções e ensaios), um de contos, um romance e dois volumes de traduções poéticas, Afonso Henriques pertence à geração dos poetas que surgiram na década de 1970, identificados ao movimento que se chamou ‘poesia marginal’. Carlos Drummond de Andrade também vai se interessar pela terceira geração dos Guimaraens e escreve em 1981 que a personalidade poética de Afonso Henriques Neto “é indiscutível, tanto mais quanto, chegando após duas gerações de poetas de alta qualidade, ela se afirma independente da influência dos grandes próximos que a rodeiam. E é tanto mais curiosa essa personalidade quanto ela se permite ondular entre formas simplesmente modernas de poesia e formas de nítida vanguarda, como a experimentar força nos dois setores.”
Dois netos de Alphonsus de Guimaraens Filho já são poetas com livros publicados: Domingos de Guimaraens (1979), que é também artista visual, e Augusto de Guimaraens Cavalcanti (1984). E há que se citar ainda, também com livros de poesia na praça, um sobrinho-neto de Alphonsus Filho, o poeta Lucas Guimaraens (1979). Será provável que, em parte, se possa explicar pela genética essa propensão para a literatura presente de modo tão intenso entre os Guimarães e os Guimaraens desde o século 18. Contudo, o fato é que se trata de caso único na história da literatura brasileira.
LUAR PARA ALPHONSUS
Hoje peço uma lua diferente
para Ouro Preto
Conceição do Serro
Mariana.
Não venha a lua de Armstrong
pisada, apalpada
analisada em fragmentos pelos geólogos.
Há de ser a lua mágica e pensativa
a lua de Alphonsus
sobre as três cidades de sua vida.
Comemore-se o centenário do poeta
com uma lua de absoluta primeira classe
bem mineira no gelado vapor de julho
bem da Virgem do Carmo do Ribeirão
dos menestréis de serenata
bem simbolista bem medieval.
Haja um luar de prata escorrendo sobre montanhas
inundando as prefeituras
os bancos de investimento de Belo Horizonte
a própria polícia militar
de modo que ninguém se esqueça, ninguém possa alegar:
Eu não sabia
Que ele fazia
Cem anos.
Mas não é para soltar foguetes nem fazer
os clássicos discursos ao povo mineiro
dando ao espectro do poeta o que faltou ao poeta
numa vida banal sem esperança.
É para sentir o luar
extra que envolve
Ouro Preto, Mariana, Conceição
filtrado suavemente
da poesia de Alphonsus, no silêncio
de sua mesa de juiz municipal
meritíssimo poeta do luar.
Algum estudante, sim, espero vê-lo
debruçado sobre a Pastoral aos Crentes
do Amor e da Morte, penetrando
o cerne dociamargo
de um verso alphonsino cem por cento.
Algum velho da minha geração,
uns pouco doidos mansos, e quem mais?
Onde o poeta assiste, não há cocks
autógrafos, badalos, gravações.
Está cerrado em si mesmo (tel qu’en lui-même
enfin l’éternité le change...)
e descobri-lo é quase um nascimento
do verbo:
cada palavra antiga surge nova
intemporal, sem desgaste vanguardista, lua
nova, na página lunar.
E essa lua eu peço: aquela mesma
barquinha santa, gôndola
rosal cheio de harpas
urna de padre-nossos
pão de trigo da sagrada ceia
lua dupla de Ismália enlouquecida
lua de Alphonsus que ele soube ver
como ninguém mais veria
de seus mineiros altos miradouros.
O poeta faz cem anos no luar.
Carlos Drummond de Andrade
(Rio de Janeiro, 1970
OLHARES CRÍTICOS SOBRE ALPHONSUS
Alphonsus
Em Mariana, a Católica, fui encontrá-lo na escuridade da sua casa de trabalho, sozinho e grande. Escrínio mais profundo que a episcopal cidade não encontrara a sua alma de místico para se guardar. (...) Na cidade de orações silenciosas – tão solitária, que mesmo as pessoas que se juntam têm a impressão de estar sozinhas – com dizê-lo só, digo mal: Dona Mística vive com ele pelas suas noites de poesia, por seus dias de solidão. (...) E foi uma hora de inesquecível sensação a que vivi com ele. Na tristura cinza do aposento, pude dizer-lhe pausadamente, em calma, as lindas coisas que eu sentia sobre a sua arte desacompanhada e incompreendida. (...) Falei-lhe depois do descaso em que o deixavam os nossos. Sorriu, num meigo perdão; e recompensou-me o afeto, dando-me versos. (...) Passaram-me então pela voz grande cópia de versos maravilhosos que a nossa gente não sonha, nem imagina – fortunas de poesia, nababescas, sepultadas numa terra de saudade. Versos encantados, dos mais lindos da língua portuguesa, dos mais comovidos dos nossos dias, dispersos em revistas que os não realçam, fanando num ineditismo pasmado e burguês. (...) Não haverá no Brasil um editor que lhe agasalhe os poemas, tirando-os da escuridão? Não existirá a piedade dum novo bandeirante que vá descobrir nas Minas Gerais essa mina de diamantes castiços e lapidados, e deslumbre os da nossa raça com os tesoiros que Alphonsus guarda junto de si? Onde? Quando o abre-te Sésamos dessa gruta encantada?...
Mário de Andrade
(São Paulo, 18/7/1919)
De questões de arte
Alphonsus de Guimaraens valia sem dúvida todos os poetas juntos da Academia Brasileira. Faleceu em Mariana, pobremente, onde vivia fazendo há vinte anos os melhores versos do seu país. Foi, com dois ou três esquecidos, ao lado do fulgurante e comovido José Severiano de Resende, um lutador da arte nova. (...) Hoje que uma geração paulista quebra nas mãos a urupuca de taquara dos versos medidos, a figura de Alphonsus de Guimaraens assume a sua inteira grandeza no movimento da boa arte nacional. (...) São Paulo presta ao grande morto a homenagem dos novos. A reação por ele iniciada contra a incultura e o atraso dos nossos principais poetas está sendo rigorosamente continuada. (...) Poetas como ele honram não só uma geração como uma pátria.
Oswald de Andrade
(In: Jornal do Comércio, São Paulo, 24/7/1921)
Alphonsus de Guimaraens
A princípio baudelairiano, como o foi o Verlaine dos Poèmes Saturniens, isto é, já destacando o seu excepcional temperamento originalíssimo, em seguida, talvez pela força destas evoluções, um tanto verlainiano, sem contudo perder a personalidade própria, Alphonsus desprendeu-se por fim de qualquer influência, clarificou-se, intensificou-se, aprofundou-se, mergulhou na harmonia universal que contém tudo o que vibra e sente e vive e pensa e sofre e ama – e apareceu-nos o poeta primordial e total que se impôs nos primeiros planos, a despeito de sua vida obscura, fechada, torturada, agoniada, nos recessos de Minas, onde um cargo na magistratura o impedia apenas de morrer faminto. E Alphonsus foi poeta sempre e apesar de tudo, essencialmente e fatidicamente poeta. Nenhum governo quis ver e recompensar essa glória imensa, uma das maiores que tenhamos tido, uma das mais serenamente ilibadas, que os alcantis mineiros hajam visto acima dos seus picos alterosos. (...) Quanto a Alphonsus de Guimaraens, sabida a sua morte, quem se lembra aqui na Capital Federal de realizar uma comemoração da sua vida e da sua obra impecável? Eu estava num longínquo e bárbaro recanto da inóspita Inglaterra quando soube que o meu caro Alphonsus não pertencia mais ao número dos vivos. Que não teria feito eu para que me fosse dado vê-lo ainda uma vez, o ótimo, o meigo, o suave Alphonsus, tão espiritual e espirituoso, tão sincero, tão franco, tão alegre e expansivo na vida ingrata? Esta ingrata vida separou-nos, reuniu-nos, tornou a separar-nos e quando o deixei, há seis anos, em Belo Horizonte, onde ele tinha ido encontrar-me, mal pensava eu que nunca mais havia de gozar esse incomparável convívio e que a notícia do seu trespasse iria abalar-me os precórdios no meio das brumas tristes do canal de Bristol? (...) Querido Alphonsus! Ele que amava tanto a vida e não se esquecia da morte, quão tranquila não era a sua alma sonhadora, que já vivia embalada pelas asas dos arcanjos, seus irmãos, e que, de tão sonhadora só via nas cousas temporais o efêmero do qual nos escapamos para a definitiva apoteose das ressurreições! A sua obra, como a sua alma, viverá na eternidade absoluta dos séculos sem fim.
José Severiano de Resende
(In A Notícia, Rio de Janeiro, 24/7/1921)
Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Sousa
É interessante constatar as dissemelhanças existentes entre os dois maiores poetas do nosso movimento simbolista: Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens. (...) Que diferença considerável entre ele e Alphonsus de Guimaraens! Assinalemos, por exemplo, logo de início, atitude que ambos mantêm em face da vida. Nada mais diverso. Não se distingue na poesia mansa e desencantada de Alphonsus nada que se possa assemelhar a esse clamor imenso que se eleva do fundo misterioso da alma sempre em crise do Poeta Negro. O místico do Setenário é criatura essencialmente triste, um elegíaco de olhar cansado, um ser quase angélico. Em Cruz e Sousa, que diferença! A própria tristeza como que se envolve em um subterrâneo clarão de heroísmo. (...) Estudando um e outro, acentuou, certa vez, com bastante penetração, a poetisa Henriqueta Lisboa: – “... que diversidade perfeita! Cruz e Sousa, nascido no litoral, reagia violentamente contra todas as coisas, como que ao influxo das marés bravias. Abrigado pelas montanhas centrais, o espírito de Alphonsus evoluía com serenidade buscando uma nova arte, como quem espreita o nascimento de uma estrela. Se o primeiro traduzia a revolta do inconquistado, o segundo se resignava diante do inelutável. Cruz e Sousa soberbo, descontrolado, ríspido. Alphonsus modesto, equilibrado, insinuante.” Todo o drama íntimo de Cruz e Sousa está em que o poeta não consegue esquecer o estigma com que foi marcado. Este é o pensamento mais vivo das suas vigílias, sempre lancinantes (v. o soneto “Vida obscura”). (...) O poeta sabe que o seu canto é apenas o de mais uma voz que se debate sobre as revoltas águas do dilúvio, o que vale dizer, dentro da solidão.
Se Alphonsus aceita essa solidão e se volta, resignado, para a vida fantasmagórica do seu mundo interior, Cruz e Sousa, por mais que se apegue à fé, que um dia cai sobre ele e não o deixa, há de continuar, contudo, o eterno “emparedado” que sempre foi. Sua poesia há de ser patética, como patética sempre foi a sua trajetória. (...) A obra lírica que deixou, nos aparece assim como qualquer coisa de surpreendente pela sua significação espiritual. Qual é, porém, o sentido dessa mensagem? Seria natural que fosse de amargura e pessimismo, de revolta impotente e desalento irremediável. O que, entretanto, o caracterizava era, ao contrário, a força de uma visceral e ardente vocação para o heroísmo íntimo e tudo em sua alma, – o próprio drama insolúvel em que se debatia, – conseguiu sublimar-se. (...) A poesia de Alphonsus sempre possuiu tom pessoal inconfundível. Sua obra não se parece a rigor com nenhuma outra. Mesmo no que diz respeito ao lado místico de sua inspiração, sem dúvida mais deve ele ao ambiente católico, em que foi criado e em que passou quase a vida toda, do que mesmo a influências propriamente literárias.
Emílio Moura
(In “Autores e Livros”, Suplemento literário de A Manhã, Rio de Janeiro, 1/11/1942)
Alphonsus de Guimaraens
Nenhum outro poeta brasileiro, nem sequer Cruz e Sousa, foi tratado de maneira tão revoltante pelos “donos da poesia” da época como Alphonsus. Ainda Ronald de Carvalho, revendo em 1934 a 4ª edição de sua Pequena história da literatura brasileira, obra meio oficial, não achou por bem incluir uma única linha sobre Alphonsus, mencionando-lhe o nome só uma vez, ao lado de Félix Pacheco. Só por volta de 1935 os críticos se lembram do esquecido poeta provinciano, primeiro seus conterrâneos (Afonso Arinos e outros), depois Manuel Bandeira, o que significa enfim a reabilitação. Hoje é Alphonsus reconhecido como um dos maiores poetas do Brasil. Infelizmente, o rápido esgotamento da edição das Poesias, publicada em pequena tiragem, tornou o poeta de novo inacessível.
Otto Maria Carpeaux
(In Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, Serviço de Documentação, 1951)
Alphonsus
(...) Os rapazes de hoje não conheceram essa presença que foi tão viva para nós, os de 1920. Muitos de nós nunca pegaram num exemplar de Kiriale ou de Dona Mística, já então introuvables, mas bastava o estribilho da “Catedral”, um verso de poema publicado nas rápidas revistas da época, para sentirmos no espírito toda a voltagem de poesia, incandescendo a nossa substância. O ‘lúgubre responso’ ressoava em nós. E os navios negros, as rosas desfolhadas sobre as amadas mortas (naquele tempo sentíamos previamente as amadas que iam morrer), a ‘medonha carruagem’ que conduz a alma aos solavancos, o cinamomo, o lírio, a lua dupla de Ismália tinham para nós um poder de libertação e afastamento dessa matéria poética tão pobre e tão falsa de 1920. Antes que viesse o Modernismo, já Alphonsus nos preservava dos males da época. E por muito mórbido que fosse o seu reino, foi nele que aprendemos a ter saúde e a coragem das experiências.
Carlos Drummond de Andrade
(1956)
Alphonsus de Guimaraens
De Cruz e Sousa para Alphonsus de Guimaraens sentimos uma descida de tom. Tristão
de Ataíde chamou de “solar” ao primeiro para contrapô-lo ao segundo, “poeta lunar”. De fato, a poesia do autor de Kiriale nos aparece iluminada por uma luz igual e suave, constante no seu nível, quase sem surpresas na sua temática. Alphonsus de Guimaraens foi poeta de um só tema: a morte da amada. Nele centrou as várias esferas do seu universo semântico: a natureza, a arte, a crença religiosa. Mas não devemos cair na tentação de chamá-lo poeta monótono, a não ser que se dê à monotonia o valor positivo que ela assume em poetas maiores, um Petrarca ou um Leopardi, que souberam aprofundar até às raízes o seu motivo inspirador, permanecendo-lhe sempre fiéis. (...) Fica assim delineada a evolução formal de Alphonsus no sentido de romper cadências e de jogar com estrofes melodicamente sinuosas, ricas de encadeamentos, capazes, portanto, de traduzir o abandono sentimental, a confidência, o devaneio.
Alfredo Bosi
(In: História concisa da literatura brasileira, 33ª ed., São Paulo: Editora Cultrix, 1994)
Alphonsus e o Setenário das Dores de Nossa Senhora
(...) Mais ou menos como ocorre em Baudelaire, as referências de Alphonsus ao universo religioso e, mais especificamente, à cultura católica, estão longe de contradizer uma leitura moderna de sua poesia. Ao contrário, a afirmação da fé – no pecado original, em Baudelaire; no mistério das Dores de Maria, em Alphonsus – se dá como um dos elementos fundamentais da tensão poética que ocupa o centro da obra dos dois poetas. Mais uma vez, o que está em jogo, em ambos os casos, é a descoberta da poesia, não tanto mais como veículo de expressão do sagrado, mas como dramatização de sua diferença em relação a ele. Yves Bonnefoy, num texto recente sobre Baudelaire, não hesita em dizer que o poeta das Flores do mal é o descobridor do “pleno da poesia”, isto é, da poesia como linguagem autônoma, em contraste com suas antigas funções religiosas, morais e pedagógicas. Ao eleger o mal como tema principal de sua poesia, Baudelaire se apodera de uma noção teológica em nome de uma questão de todo humana. Penso que o mesmo ocorre em Alphonsus de Guimaraens, que está menos interessado em louvar a figura de Maria que em dramatizar poeticamente a diferença, a distância que separa os homens e sua linguagem do universo dos deuses, de tudo o que é imortal e infinito.
Eduardo Horta Nassif Veras
(In: O oratório poético de Alphonsus de Guimaraens: uma leitura do Setenário das Dores de Nossa Senhora, Belo Horizonte: Relicário Edições, 2016)
TRÊS POEMAS DEDICADOS A ALPHONSUS DE GUIMARAENS
ALPHONSUS
Corre em meu corpo o sangue de um asceta.
A pulsação de minha artéria tem
O ritmo da poesia deste poeta
Que me gerou cantando a dor e o bem.
Passa em minha alma o espírito do esteta:
Meu sonho altivo e minha mágoa vêm
Da doçura do verso deste poeta
Que me educou cantando a dor e o bem.
Alphonsus, sigo a estrada que me deste.
Meus versos, de tristeza ou de alegria,
De ti provieram para em mim nascer.
São a imagem dos sonhos que tiveste
Quando meu pobre ser ainda vivia
No espírito e na carne do teu ser.
João Alphonsus
RETRATO
Por mais que fosses triste, sempre eras
alguém voltado para iluminantes
manhãs, e as frutas, rosas suavizantes,
e as frescas, recendentes primaveras
que o teu olhar nas coisas distinguia.
Por mais triste que fosses, a esperança
de amar, ou contemplar numa criança
a ingênua luz do mais ingênuo dia,
sempre seria teu refúgio... E agora
que emerges do papel escurecido,
as mãos sobre o espaldar de um cadeira,
no rosto o brilho de uma luz amiga
e o olhar no longe como que perdido,
sinto que em mim renasces, que a poeira
que és de novo ganha a forma antiga...
E que é tua também a minha hora.
Alphonsus de Guimaraens Filho
PARA O AVÔ
escura conversa, farol sem raios
meu avô exposto em cartas e poemas
nos mostruários de vidro, esta amnésia,
sonâmbulo diálogo afogado
no licor da tarde e nos espelhos
grávidos de sinais sem lábios
onde reter a palavra, lunar amor.
por tudo me emociona a tua letra
e em teu rosto leio um riso e uma fábula.
dulcíssima ironia me socorre
entre santos medievos e amadas mortas
rangendo ossos nos imêmores bailados.
avô poeta que me empresta intuição,
raro olfato de ouro, os nervos claros,
nódoas de luz imantadas entre verbos
de onde pinçamos a música do tempo
quanto mais cifrada.
não ouço a tua voz e tudo falas.
vida é tanta morte concentrada.
Afonso Henriques Neto
Cruz e Sousa e Alphonsus
Numa rua central, vão Cruz e Sousa
e Alphonsus. Para conhecer o Cisne Negro
(1895, Rio de Janeiro),
Alphonsus veio da montanha.
Diria mais tarde, no seu jornal Conceição
do Serro, que “teve ocasião de passar
horas magníficas
com este maravilhoso artista”.
Eu os relembro, depois do encontro: Alphonsus esquecido
“em sua heroica e tocante solidão” em Mariana
“onde é mais triste ainda a triste vida humana”,
Cruz e Sousa, o que
“ficou gemendo, mas ficou sonhando!”,
nos seus embates contra a vida áspera,
não raro cruel. Ambos, agora, iluminados
nas paragens da morte.
Sim, eu os vejo agora e para sempre juntos,
irmanados na estranha morada da poesia,
libertos dos sofrimentos, puros
e completos na amplitude
que a morte destina aos que deram à vida,
na grave fidelidade à própria alma,
uma luz para sempre inalterável,
chama que mão nenhuma apagará.
Alphonsus de Guimaraens Filho
ALPHONSUS E MÁRIO ENTRE FRONTEIRAS
Angelo Oswaldo de Araújo Santos
Há cem anos, em 10 de julho de 1919, o poeta Mário de Andrade, então com 26 anos, desembarcou em Mariana para conhecer o poeta Alphonsus de Guimaraens, que o recebeu em sua casa da Rua Direita, hoje transformada em museu. Foi o encontro de dois simbolistas, no momento de grandes transformações na forma e no conteúdo da poesia, da literatura, da música e das artes no Brasil. Mário de Andrade, que três anos depois participaria da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, tornou-se a grande baliza dos caminhos da cultura brasileira. João Alphonsus, filho do simbolista de Mariana, atuando em Belo Horizonte, teve protagonismo fundamental na vertente mineira do movimento modernista. Alphonsus de Guimaraens morreu dois anos depois do encontro, em 15 de julho de 1921, aos 51 anos, vindo a ser consagrado entre os nomes referenciais da poesia de língua portuguesa.
A estreia de Mário de Andrade aconteceu em 1917, com o livro “Há uma gota de sangue em cada poema”. Aos 24 anos, sob o pseudônimo de Mário Sobral, ele construiu seus versos dentro do clima simbolista que então se fazia sentir no Brasil, especialmente cultivado pelos mineiros Alphonsus de Guimaraens e José Severiano de Rezende. O epicentro do simbolismo era a Villa Kyrial, uma mansão nas proximidades da avenida Paulista, na qual o gaúcho Freitas Valle reinava na belle-époque paulistana, praticando um sofisticado e extravagante mecenato burguês.
Partiu do “pobre Alphonsus” a sugestão do nome de Villa Kyrial para a chácara adquirida por Freitas Valle em 1904. O poeta mineiro publicou o livro “Kyriale”, em 1902, reunindo a obra escrita entre 1891 e 95. Aluno da Faculdade de Direito dos Arcos de São Francisco, ele tinha convivido com Freitas Valle e tornaram-se amigos. Até à morte, em 1958, o mecenas se lembraria de Alphonsus, sobre quem realizou várias palestras, no auge dos saraus na Villa Kyrial. No quinto ciclo dessas conferências, em 1924, época em que visitaram as cidades históricas de Minas, Mário de Andrade falou sobre “Cubismo”, enquanto Oswald de Andrade focalizou “Os ambientes intelectuais de Paris” e o poeta suíço-francês Blaise Cendrars, “A literatura negra”. O programa foi encerrado, em junho, com a palavra de Freitas Valle sobre a poesia de Alphonsus de Guimaraens.
“Kyrios” significa Senhor, em grego, no sentido da divindade, de onde veio a invocação inserida no ritual da missa católica “Kyrie eleison”, ou seja, “Senhor, tende piedade”. A epígrafe Kyrial, segundo Márcia Camargos, que escreveu a história desse baluarte da belle-époque, “se ajustaria com perfeição ao espírito de Freitas Valle e do salão por ele animado, espécie de templo dos eleitos, uma vila senhorial”. Freitas Valle escrevia poemas apenas em francês e assinava Jacques d’Avray, incluindo-se entre os cultores do simbolismo, como Alphonsus, Severiano de Rezende e Álvaro Viana. Parece não ter havido maiores referências ao notável Cruz e Sousa (1861-1898), o simbolista negro nascido em Santa Catarina e falecido em Minas Gerais, vítima da tuberculose. Alphonsus era admirador do poeta catarinense. Viajou ao Rio de Janeiro, em 1895, a fim de conhecer o "Cisne Negro". Lembra em poema Alphonsus Filho que seu pai escreveu, no jornal "Conceição do Serro", ter tido "ocasião de passar horas magníficas com este maravilhoso artista".
Em 1921, Mário de Andrade fez conferência na Villa Kyrial sobre “Debussy e o impressionismo”. Em 1922, tratou da poesia modernista, em plena evidência após os acontecimentos da Semana. Já em 1923, traçou um paralelo entre Dante e Beethoven. O contato com Freitas Valle deve ter proporcionado a Mário de Andrade, poeta estreante de 24 anos, a descoberta do verso alphonsiano. Daí terá surgido o desejo de conhecer, pessoalmente, o solitário de Mariana. “Ide a Minas/ de trem/ como os paulistas/ foram/ a pé de ferro”, escreveria Oswald de Andrade, na célebre viagem de 1924. Cinco anos antes do périplo modernista, Mário embarcou na longa aventura, com várias baldeações, até que pudesse alcançar a casa em que Alphonsus, juiz municipal, vivia com a mulher, Zenaide, e os filhos. Sede do primeiro bispado de Minas Gerais, criado em 1745, Mariana era ainda uma cidade inteiramente dominada pelas funções eclesiásticas, a “Roma mineira”, assim chamada por Pedro Nava em suas memórias.
Mário de Andrade registrou o momento: “Em Mariana, a Católica, fui encontrá-lo na escuridade de sua casa de trabalho, sozinho e grande. E foi uma hora de inesquecível sensação a que vivi com ele. Na tristura cinza do aposento, pude dizer-lhe pausadamente, em calma, as lindas coisas que eu sentia sobre a sua arte desacompanhada e incompreendida. Falei-lhe depois do descaso em que deixavam os nossos. Sorriu, num meigo perdão; e recompensou-me o afeto, dando-me versos”.
Em carta a João Alphonsus, datada de 15 de julho de 1919, escreveu o poeta: “Vamos indo regularmente de saúde, - eu, Zenaide e a prole. Há cinco dias esteve aqui o Sr. Mário de Morais Andrade, de S. Paulo, que veio apenas para conhecer-me, conforme disse. É doutor em ciências filosóficas. Leu e copiou várias poesias minhas (principalmente as francesas), e admirou o teu soneto oferecido ao Belmiro Braga. É um rapaz de alta cultura, sabendo de cor, em inglês, todo o “Corvo” de Poe. Viaja para fazer futuras conferências, e visitou todos os velhos templos desta cidade. A verdade é que para quem vive, como eu, isolado, - uma visita dessas deixa profunda impressão. A bênção de teus pais. Afonso”.
Carlos Drummond de Andrade, no poema “A visita”, recria o diálogo entre Mário e Alphonsus, no sobrado marianense: “Entre dois homens, objetos, cor/ da hora filtrada no recinto/em partículas de ouro e torvelinho,/ o verso”. Quando Alphonsus morreu, em 1921, Oswald de Andrade traduziu o sentimento dos modernistas, tanto para enaltecer o poeta mineiro quanto para esculhambar os sonetistas e a Academia Brasileira de Letras, que nunca se lembrara do simbolista no seu exílio. Escreveu o autor do Manifesto Antropofágico: “Alphonsus de Guimaraens valia sem dúvida todos os poetas juntos da Academia Brasileira. Faleceu em Mariana, pobremente, onde vivia fazendo há vinte anos os melhores versos do seu país. Hoje que uma estuante geração paulista quebra nas mãos a urupuca de taquara dos versos medidos, a figura de Alphonsus de Guimaraens assume a sua inteira grandeza no movimento da boa arte nacional”.
Estudiosos de Alphonsus, como Francine Fernandes Weiss Ricieri e Eduardo Horta Nassif Veras, iluminam novos caminhos de leitura de sua obra, sendo um dos pontos de interesse a revisão da presença do catolicismo na poesia alphonsiana, até agora julgada determinante. A religião não se apresenta “em termos confessionais, mas em termos de representação estética”, observam os ensaístas. Essa espiritualidade não dogmática era vivida por Mário, que, acreditando em Deus, não aceitava as sanções próprias de qualquer sistema religioso, como sublinha Leandro Garcia Rodrigues, ao analisar a correspondência entre o autor de “Macunaíma” e o católico Alceu Amoroso Lima. Alphonsus e Mário foram crentes da poesia.
Para Mário de Andrade, além do instante de ternura na Rua Direita de Mariana, a viagem de 1919 representou a descoberta do Aleijadinho e da arte colonial de Minas Gerais. Do contato direto com as obras do mestre Antônio Francisco Lisboa, em Mariana e Ouro Preto, ele levou para o eixo central do modernismo a imperiosa necessidade de repensar o Brasil, buscar suas raízes e fontes genuínas e criar uma arte não mais importada e com caráter próprio. Daí a caravana modernista que empreendeu a viagem de abril de 1924 às cidades históricas mineiras, levando Mário, Oswald, Tarsila, Blaise Cendrars, Olívia Guedes Penteado, René Thiollier e Gofredo Silva Telles ao que chamaram de “redescoberta do Brasil”.
De tudo isso resultou o empenho de Mário no sentido da proteção efetiva do patrimônio material e imaterial da cultura brasileira. Ele esteve na linha de frente da criação do IPHAN, entre 1935 e 37, no qual foi em seguida atuar, ao lado de Rodrigo Melo Franco de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Lúcio Costa. Ícone do modernismo, o jovem simbolista de São Paulo acabou por virar símbolo da cultura brasileira. Para Alceu Amoroso Lima, “durante os 25 anos de sua atividade intelectual, (Mário) encarnou realmente o novo espírito das letras brasileiras. Viveu o modernismo com todas as fibras do seu ser. Encarnou o modernismo, como um José de Alencar encarnou o romantismo, como um Aluísio Azevedo encarnou a naturalismo, como um Alphonsus de Guimaraens encarnou o simbolismo. Foi uma era viva. Foi a expressão viva de um momento capital de nossas letras, o da revolução estética modernista. E o foi porque o viveu totalmente”.
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