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Anotações para um Jovem Leitor

Mário Alex Rosa


“Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo”.

Drummond


A poesia é muitas vezes reverenciada como a “arte do sentimento”. “É por meio dela que o poeta expressa suas emoções.” “Falar de poesia é falar de sentimento.” Essas afirmações são problemáticas e polêmicas, pois implicam dizer que a existência de sentimentos é o bastante para se escrever poesia. Se isso fosse correto, o mundo estaria repleto de poetas. Todos poderiam ter o “sentimento do mundo” e expressar em poesia o que sentem, veem e sofrem. Certamente, tanto o sentimento como a vida são necessários para a arte. Entretanto, há muita complexidade em como os sentimentos se tornam poesias que, mesmo datadas de uma época distante, são capazes de fazer-nos reconhecer nelas os nossos próprios sentimentos. Uma visão particular torna-se universal, ou melhor, o poeta, partindo de uma visão pessoal, consegue oferecer o retrato de uma época.


Sentimento do mundo, terceiro livro do poeta Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1940, relaciona-se com os acontecimentos históricos que abalaram o mundo naquela época: o fascismo, o nazismo, a guerra espanhola e, por fim, a Segunda Guerra Mundial. Como a poesia lírica, arte tão pessoal, poderia responder a esses fatos? Como reconhecer qualidade estética e sentimento nessa poesia? Certamente são perguntas difíceis de serem respondidas, mas é preciso nos aproximarmos delas para tentarmos respondê-las, ou melhor, compreendê-las. O livro Sentimento do mundo é um excelente começo de conversa e nos ajuda a pensar sobre dois aspectos: alguns fatores históricos ocorridos naquele período e as mudanças no conteúdo da poesia de Drummond.

Na época da publicação desse livro, houve uma cumplicidade na qual muitas pessoas, cada uma a seu modo, tentaram combater solidariamente as atrocidades que assolaram o mundo com a chegada da Segunda Guerra Mundial. Drummond e tantos outros poetas fizeram da poesia, vamos dizer, sua arma de denúncia. Assim, o sentimento de um (poeta) aproximou-se do sentimento de outros. Aos artistas coube, entre várias coisas, expressar suas revoltas por meio da arte, o que custou a muitos o exílio, perseguições e até mesmo assassinatos como foi, por exemplo, o do poeta espanhol García Lorca.


Em linhas gerais, a poesia de Drummond, em seus dois primeiros livros, volta-se praticamente para questões estéticas do modernismo, mas com fortes indícios existenciais, em Alguma Poesia, e por um descontentamento com a vida, em Brejo das Almas. No terceiro livro, o poeta toma uma outra direção escolhendo um título emblemático, audacioso e, sobretudo, sincero: Sentimento do mundo.


Há várias maneiras de se ler a poesia contida nesse terceiro livro. Uma delas, sem dúvida, passa pelo depoimento do poeta ao rever sua obra poética. Drummond disse: “penso ter resolvido as contradições elementares da minha poesia num terceiro volume, Sentimento do mundo (1940)”. Parte dessas contradições refere-se aos dois livros anteriores citados. Se, nos dois primeiros, humor e ironia, vindos da estética modernista, são registros fortes de um sujeito lírico ensimesmado com problemas de ordem psicológica, amorosa e estética, tudo isso, em parte, afasta-se no terceiro livro. A necessidade agora é de uma outra exposição: a abertura para o mundo, o interesse pela “vida presente”. Assim, as atitudes anteriores, em que havia um sujeito praticamente recluso, dão lugar a um outro mais aberto ao diálogo. O poeta quer se comunicar com o mundo, enlaçar suas mãos, como no admirável poema “Mãos dadas”, em que, depois de uma sucessão de nãos, conclui dizendo: “O tempo é a minha matéria, / o tempo presente, / os homens presentes, / a vida presente”.

Ainda que seja em um plano utópico, é interessante perceber que houve uma vontade de sair do drama individual para o drama coletivo. Nesse sentido, poemas como “O operário no mar”, “Menino chorando na noite”, “Morro da Babilônia”, “Os ombros suportam o mundo”, “A noite dissolve os homens” e “Elegia 1938” representam uma vontade de se comunicar e “não ficar torto no seu canto”, como foi em Brejo das Almas. Como bem assinalou Antonio Candido, a consciência social do poeta foi uma forma de sair do “estado de emparedamento” em que vivia. É possível dizer, então, que o livro Sentimento do mundo foi um sentimento para com o mundo.


Não devemos, porém, esquecer que, com toda essa abertura a favor da humanidade, Drummond ainda conservou traços de sua natureza poética e da poesia moderna, ou seja, o discurso criativo parte quase sempre de uma posição negativa para falar do positivo que, sem dúvida, deve ser a vida. Basta atentarmos para o último poema, “Noturno à janela do apartamento”[1], em que um sujeito, naturalmente lírico, na solidão dos seus aposentos, observa a vida, tanto em um plano individual quanto geral, procurando retirar, das próprias contradições dessa algo que possa afirmá-la: “Mas a vida tem tal poder…”


Apenas mais um comentário: se, por um lado, podemos ler o livro pela ótica do diálogo com o mundo, numa preocupação “socializante”, por outro, não podemos deixar de mencionar temas essenciais da poética drummondiana que se distanciam da problemática social e aparecem em dois grandes poemas do livro: a cidade natal, Itabira, representada em “Confidência do itabirano”, e a passagem do tempo em “Dentaduras duplas”. Ambos confirmam as inquietações drummondianas com o tempo, que será, até o final de sua obra, um dos temas mais explorados pelo poeta.


Há muito mais a acrescentar sobre esse grande livro, mas esperamos que as poucas anotações feitas aqui sirvam para despertar o interesse de um jovem leitor em ler o sentimento do mundo, como fizeram os poetas, lutando contra aquela triste época que esperamos nunca mais voltar. O alerta pode começar pelo o que poetas e artistas em geral denunciam, portanto é válido sentir o que a arte denunciou ontem, hoje e amanhã.


[1] Numa análise esclarecedora Murilo Marcondes de Moura, o leitor interessado poderá não só conhecer melhores detalhes desse poema como também certos aspectos do livro SENTIMENTO DO MUNDO. Cf. Inimigo Rumor. Revista de Poesia, nº 1, Editora Sette Letras: Rio de Janeiro, 1997. Em A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond. Ed. José Olympio: Rio de janeiro, 1982, o leitor poderá conhecer os comentários de Mário de Andrade, em uma carta datada de 15/VIII-1942, sobre o livro Sentimento do mundo.

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