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Nota sobre um ato de ver: a poesia de Guilherme Mansur

Atualizado: 2 de jan.

ANELITO DE OLIVEIRA

Parte do poema visual de Guilherme Mansur. Veja completo aqui.



O ato de ver é inseparável do ato de pensar. Esta é a compreensão a que chegou o último Merleau-Ponty do inacabado Le visible et l´invisible. Tudo que vemos já é pensamento, o que coloca o ver em questão. Não se trata da questão da percepção em geral, mas de algo mais específico. O ato de ver está vinculado a uma matéria, a uma superfície, a um plano visível. Isso faz com que esse ato não se processe de modo apriorístico, tampouco resulte em recortes cognitivos estéreis.


A obra criativa de Guilherme Mansur é particularmente fértil no que diz respeito à disposição mesma do ato de ver. Esse ato, como o poema “Atraverssar" o desvela, é um atravessamento difícil. Estimulante, lembremos “nuestro” Lezama Lima da La expresión americana, para quem só o difícil é estimulante. O estímulo neste caso consiste em atravessar por fora de um princípio linear, hierarquizante, de ordenação do pensamento. Atravessar por dentro do objeto aparente, sem a necessidade pragmática de chegar a um outro lugar.


A progressão no pensamento, que pressupõe uma racionalidade instrumental abusiva, separa os lugares segundo preconceitos valorativos. Logo, o sujeito atravessa, vai de um lugar primeiro, uma espécie de primeiro andar, para um lugar segundo, terceiro etc. O poema aqui nos coloca no meio do ato de atravessar, que é um ato de ver, que é um ato de pensar. A palavra é a matéria, a superfície, o plano visível onde se processa esse ato que é orgânico, corpóreo, coisal.


O desmembramento inventivo da palavra “atravessar” é, em si, uma metaforização da organicidade, a disposição de um corpo. Desmembrados, os órgãos-signos desse corpo potencializam o diverso, o estranho, o interditado. Da deformidade, da dissolução morfológica, surgem dois verbos: ver e versar. Mas o movimento semântico da criação não encontra um limite definitivo nesse surgimento, não chega a uma estagnação.


O “r” nos desvia para um vermelho – lembrando o icônico Cildo Meireles – que investe o constructo de uma gravidade, de uma aura perigosa. Em vermelho, o “r” estimula a percepção do verbo “ver” na segunda pessoa do indicativo: tu vês. E, finalmente, em vermelho, o “r” nos leva ao verbo “versar”, mas em chave semântica diversa da costumeira, a do tratar de um determinado assunto, bem como da previsível, fazer versos.


Versar, no sentido desentranhado pelo extraordinário lexicólogo Antônio Houaiss no português quinhentista tão bárbaro e tão belo, como ato material, movimento corpóreo. Assim, atravessando sensivelmente o verbo “atravessar”, Mansur nos leva ao inusitado no nível do enunciado, como os então meninos de “Noigandres” há 70 anos, em 1952, os poemas-notas-cores de Augusto de Campos.


Todavia, o poeta ouro-pretano nos leva antes até, em termos cognitivos, a uma particularidade perceptiva responsável pela potência encantadora que encontramos em Drummond, em Rosa e Milton: a travessia. “Atraverssar" ver-pensa, ressoa, o fundamento estruturante de um real específico, territorializado, no qual a relação com as coisas, com os objetos circundantes, é significativa, é comovente.


O poema nos detém, não deixa que passemos rapidamente por ele, solicita sutilmente que reflitamos sobre o que estamos vendo. Estimula-nos a sair de uma relação indiferente com uma palavra tão presente no cotidiano cibernetizado, nas redes sociais. Estamos vendo – e já pensando – um dos gestos poéticos contemporâneos mais instigantes.

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