Borbulhas de peixe
Uma pessoa que escreve poemas
pode se parecer com um pequeno peixe, bem miúdo
peixinho transitando no oceano
Não se dá conta, a princípio
do que é o mar das mil e uma línguas agitadas
Sobe e desce, entre espirais e calmarias
nadadeiras em esforço
por turbulências, turvação
onde persegue
vislumbres cintilantes da poesia
isca e arpão
A princípio, uma pessoa que escreve poemas
e pode se parecer com um pequeno peixe
segue instintos, segue um bando, sem por quês
Com sorte, descobre-se cardume,
a mergulhar entusiasmo e aflição
no oceano dos símbolos, atravessados todos
pelos ímpetos e ganas de lirismo e fantasia
Uma pessoa que escreve poemas pode se parecer
com um peixinho à deriva
chacoalhando-se entre
blocos gigantescos de discursos:
os milenares
os últimos do dia
os perdidos do porto de destino
os que boiam estufados de nada
e os que se afundam como pedras
às vezes brutas, às vezes raras
despejadas
Alimenta-se o pequeno peixe pessoa que escreve
nas espumas das correntes e famílias literárias, faminto
sacudido entre os sais da língua viva e os sedimentos do passado
Até um dia se intoxicar
expelir versos, modos e fraseados indigestos
refutar certas instâncias opinativas que não lhe caem bem
rejeitar léxicos insustentáveis
e tratar de se safar
de goelas enormes que o ameaçam
nas ondas da literatura
Em geral, é quando, estabelecido no pós-tudo
aprende que poemas podem ser apenas borbulhas
de pequenos peixes vivos.
Uma fita para Moebius
E depois, será o pó. E o silêncio. E nada.
Antes, serão despojos, fragmentos, escórias.
Antes, um objeto e outro, um gesto desmedido, as escritas palavras.
As recordações felizes, as detestáveis.
Depois, alguns talvez, irão se haver com teus fantasmas.
O legado de teus bens, ou de teus males.
Em breve, um solene esquecimento proverá
rasuras ao espectro de cores, surdina aos ecos de tua fala.
Mas, o existir é ainda. E é quase nada. Quase silêncio, e quase pó.
Toda ilusão, toda verdade, permanentes partículas provisórias.
Insufla os seres, o sopro inexplicável.
Efeito e causa de um plano sem rascunho, sem destinação exata.
É tempo de viver. Vives agora.
Grão intumescido, à espiral de movimentos, sempre atirado.
E todo o natural em ti sussurra. Vibra e palpita. E se transforma.
Vigor, beleza, esperança: eternos atributos desta hora.
Tarde para a recriação
Desde o dia que olhei para você
pela primeira vez
eu vi a mim
num espelho distorcido
numa distância invertida
o abandono, o desabono, o despreparo
vestido em trapos enrodilhando o corpo, as pernas curtas
o choro acoitado na garganta
o medo e a meiguice nos olhos, 6 anos? 7 anos?
Eu princesa, eu ilustrada, eu a proferir palestra.
No andar de cima tem duas salas, quarto, banheiro, terraço
eu rebelde dissimulada
sabendo de pronto o amansamento
as verdades a que seria você
submergida
Eu e meus cabelos lisos
eu e minha anágua de renda cor de rosa
eu e seus cabelos crespos
vestido em trapos enrodilhando o corpo, as pernas curtas
o choro acoitado na garganta
o medo e a meiguice nos olhos, 6 anos? 7 anos?
Eu e eu e eu e eu e
você, que era quase nada
perdendo-se nos corredores da casa
esvoaçando-se entre as cortinas de voal
espantando-se
encantando-se
evadindo-se
aterrizando
pouco a pouco
E passou a beber e a comer na mão
outra mãe, outro pai, irmãos brancos
que a seus pequenos braços
davam trabalho
trabalho de menino é pouco
quem não o aproveita é louco
já sabia a não sabedoria portuguesa
Cresceu assim
instruída até em regras
que naquela casa ninguém seguia.
Paciência sem sossego
humildade sem tréguas.
Cresceu assim
Expelida da escola
a língua inóspita arranhava no ouvido
o olhar mesquinho doía na pele preta
os donos do saber nada sabiam.
A desterrada do berço
vinda do chão de poeira
brotada no espinheiro da miséria
dada a estranhos
Doação lavrada na beira da cerca da casa vizinha
pode levar a menina, dona
disse o homem dono pai.
Entrou no carro e partiu
para a vida inteira
a roupa do corpo
para fora de si, para fora do outro
irmã de criação
Cresceu assim
a minha bolsa, o meu sapato, pega pra mim
tornou-se esteio
pegue a menina, ela só quer a você
aprendizagem sem fim do mundo do outro
que dia você vai aprender a fazer isso, hein?
inaugurou talentos
ele está mal
só você..., vai falar com ele
Cresceu assim
irmã de criação
Eu mimada, você, um dia
corpo criança aviltado na escura da noite
calada
A canalhice do macho branco
a canalhice do macho
a canalhice
Tarde para eu saber
tarde para te consolar
Fingiu que resistia
fingiu que superava
fingiu que revidava
fingiu que inexistia
Fingiu tanto, fingiu tanto, tanto
que era feliz o tempo todo
que tonta, tonta de chorar
tonta
que acreditou muito sinceramente que era verdade
tudo que certas gentes lhe disseram
e que você repetia
com uma vida que deveria ser só sua.
O pai e a mãe perdidos no tempo,
não perdoou
amordaçou a dor entre os dentes e foi sufocando até o fundo
a fala macia e manhosa
a boca pintada
o cabelo esticado
o álcool e os embustes da medicina
no copo
largou pra lá os irmãos de cor
Um dia, desejou se casar com um branco de cabelo amarelo
e olho verde feito vidro
onde viu refletir
o mundo poderoso e a hipnose daquela casa grande
que a tomou como sua
sem que você pudesse contestar
sem que você, ao fim, quisesse contestar
Em espelho bipartido, quis o destino, ou a genética assinalar
filha branca, filho preto, que o mundo tratou
de modo desigual.
Agora, quando o pai branco e a mãe branca estão mortos
quando não há quartos e terraço e varandas e cortinas e festas
e crianças a embalar
quando o corriqueiro dos dias não há
Comigo, você chora
vigiada pelas lembranças do que sofreu e do que amou
o passado fundido ao presente
ainda hoje dividida, o medo e a meiguice nos olhos
entre o que foi e o que poderia ter sido a sua história
é tarde para a recriação.
O resgate
I
O meu formoso aporta em sonhos.
Ficamos, dois íntimos estranhos
atravessando a noite linda
até que o dia se rompa.
Suspeito que ele venha pela brisa
soprada por um arcanjo trompetista
fã de grandes harmonias,
apreciador de seus modos de artista.
Ah, o quarto recende a jasmineiro
quando o formoso chega, assobiando
munido de viola e flauta, sorrateiro
a cantarolar feliz a minha sorte.
Sonhar, sonhar, sonhar.
Tudo cambia e se permeia em instantes.
Que coisa é, apanhar a minha mão na sua
volver tão plena, aos dezessete anos.
O peito arfa, ao ritmo de liras.
O sexo crepita, ao signo de brasas.
Formoso meu proseia em línguas
dedilha-me acordes, parolagens.
Eu lhe devolvo espasmos e vertigens
Na madrugada eterna, ah, eu creio
nada é mais belo que miragem
olhos para sempre encantados.
II
Sonhar, sonhar, sonhar
Súbito, estamos em uma mesa de bar
em uma calçada qualquer
fria e espantosa, a noite de luar.
O vento fustiga furioso os frutos verdes da parreira
que se rompem inúteis, a seus pés.
Esmagadas estão, ainda, as violetas roxas,
as rosas brancas, destroçadas.
Uma mulher canta em grande agonia
lamento duro e cristalino, é muito tarde
há algo precioso que se perde ao longe, na areia
é urgente, precisamos, juntos, resgatar.
Instrução para letrado analfabeto em sedução de escritoras
Se a escritora for cientista, diga:
a tese é de grande fôlego
e rigor conceitual admirável
Convide-a para um vinho
em excelente restaurante da cidade
hipóteses indicam:
ela não pagará a sua conta
ainda lhe cobrará juros
e referências bibliográficas
após o estudo da Arte de Mercado
de seu papo furado.
Se a escritora for jornalista, diga:
a matéria é digna de méritos
excelente articulista, e perfeita
contextualização dos fatos.
Convide-a para um chope
em agitado bar da moda
fontes fidedignas informam:
não haverá divisão da nota
depois da entrevista freelance
seus mal apurados fatos
seguramente você, não mais
será notícia para ela.
Se a escritora for de prosa ou verso, diga:
emocionante! vibra no poema
talento original, ou então,
que é romance muito importante
profundo e sem igual!
Convide-a para um café
na lanchonete da padaria ao lado
que você acha o balcão, espaço
suficiente para o gasto
com o desprestigiado ofício.
Daí, espere sentado, pois
está escrito no prefácio:
ela não lhe fará as vontades
não haverá custeio do pastel
Pois a ladainha não cola,
o seu enredo tem clichês,
melodramas enjoados e um personagem
para lá de caricato.
E se ainda assim
você quiser jogar, creia-me
desembaralhe a ordem
das viciadas cartas
desembrulhe-se, crie coragem
para instigante viagem.
Esfume os mandamentos
desta inútil linguagem flácida
E para todo o sempre
simplesmente, pare de mentir.
Maravilhosos poemas. Em particular, fantásticos como Uma Fita para Moebius,Instrução para letrado analfabeto em sedução de escritoras. Abraçoa
Teócrito Abritta