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Cinco poemas viscerais de Carlos Gurgel


SAYONARA PINHEIRO, ARTISTA VISUAL POTIGUAR.

FOTO: GUARACI GABRIEL / AGÊNCIA FOTEC



farfalho


vai víspora

abocanha com sua insólita sordidez

a beleza das dunas que se espalham como um tilintar de pólvora

desses rochedos por onde o povo se ralha

vai verme

rasga os intestinos da nação

e faz das suas veias

uma porção hermética do mal

talha do vento que vem e finda

vai pandemônio

estende no varal das loucas ruas seu troféu

estigma do céu da língua desse sadismo fascista

esticando como um estilete em maresia

o pulso do enorme humilde sonhador anônimo

vai praga

rouba você os seus instintos

para nunca mais fechar seus olhos

cadáver dos milhões dos pensamentos seus

feixe de contêineres pulga do pó

por sobre seus pés que não aterrissam.



trêmulus


aos

que de mim

servem-se

do feno que vagueia pela aldeia sem hora

nua e sem ilhas

como sopro fustigado

que abanas

e sujeito a práticas sem olhos

tão estranho ordeiro

detentor de uma vida sem pés

como refratário

adormecido de lustres, úberes e lupas

pêndulo cão de perdidos sem braços

vela do barco sem proa

tão frio cais

entre o inteiro e o que não serve mais.


subterrânea


mina subterrânea e lúgubre

imerso de fagulhas, suítes de suores

e o sádico que de mim faz-se louco

rou como selvagem pedra

como um fogo desse tempo

suicida e letal

como o abismo que os meus pés espalha

como esse cânhamo da manhã que fabrico

raiz cubículo empalhe tecido

tudo tão roto rasgos ridículos

mofo mulambo asco

noite que vem

eu dentro dessa febre do nada.


húmus


pega teu casaco e adormece como um feno fétido e

ferido

faz dos teus ombros as dobras das sombras das sobras dos teus falidos

sorrisos e silêncios

garimpa teu céu sem ser seu lar recolhe como um

proscrito as abas de um lume sem luar

sem vestígios de um hecatombe terminal

amealhando animais senis parecidos com seus sobrinhos e hastes

suja tua raiz

tuas dobras milenares e tudo que rosna

procura viver de pedaços: de um leito da amante fugidia

do pão mofado e extinto

restaura e replica o condão do seu quintal sem a fútil lembrança de um pássaro passado

espelho sem moldura

e como um ágil senil

abre tuas balsas

e diz para os outros que não tem como fugir de tanta fome

da existência e da torre por onde seus olhos findaram

como morcego cego e sem o múltiplo de tudo vai e some.


espátula


ficaste parado no tempo

como um vento que corrói e retrai

longe

muito longe fostes

mas hoje cruel e foragido

rasga como um senil

o azulejo que te viu crescer

foge agora

procura por teus passos ao largo da montanha

por teus fósseis ossos

por teus ornados vazios

lambe como uma centopeia mofada

a morada das tuas costas

império de tantas palavras paridas

como a crosta dos teus cubículos, esconderijos, reentrâncias

vens de uma manada sem leito

pouca fisionomia como teu defeito

face de um mesmo receptáculo estreito

provoca tua dor

cavalga prepara teu capim

dorme entre fezes e frestas

e como um espadachim

rasga a folha da lua que te viu nascer.




CARLOS GURGEL / FOTO: GIOVANNA HACKRADT RÊGO



Carlos Gurgel é dos nomes fundamentais da cena cultural potiguar contemporânea. Multiartista, a poesia é seu porto inseguro, sua zona movediça de onde se lança a experiências interartísticas inusitadas. Sua obra conta com livros, como Apaixonada poesia louca, discos, como "Labaredasesconderijo", e objetos multimídias, como "Dramática gramática", mescla de livro e camiseta e poster e CD e DVD. A colaboração com artistas de campos diversos é um índice do caráter comunitário de um olhar criador, sua prática abertamente democrática da ideia de arte. Os poemas que Sphera aqui estampa fazem parte do inédito Féretro da febre do fim, livro em vias de publicação.

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