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Cartas a Sherazade: um conto inédito de France Gripp sobre leitura e prazer


Mulheres muçulmanas ainda lutam por direitos fundamentais por toda parte, não só nos países árabes. Foto: https://agenciabrasil.ebc.com.br/

Correspondências com Sherazade, em vigília

 

FRANCE GRIPP

 

 

Carta I


Caríssima Sherazade:


Há quanto tempo! São milênios de memórias de tuas encantadoras histórias entre nós. Centenas de gerações as narram em numerosas línguas, e não há mais limites de alcance para elas, entre o ocidente e o oriente. Ecos, indícios, risos e odores de personagens, episódios impregnam a cultura nos tempos e espaços afora.

Contas aventuras, ilusões, lendas, peripécias, povoadas sempre pelo vozerio de inúmeros narradores, em muitos tons e cores dos mundos orientais. Entre tantos nomes, somente à tua portentosa figura feminina coube conduzi-los como desejavas, e segundo o teu maravilhoso poder de imaginação e fala.  

Admirável, como fizestes o homem - rei, embebido em ódio cego ao feminino, sobrepujar os territórios íntimos, insulados de aridez e loucura, para aceder lentamente à amabilidade, todo ouvidos e olhos para ti.

Além das mil e muitas narrativas de excitação e encantamentos, deixastes-nos tua própria história de ousadia e coragem, inteligência e astúcia, persistência e resiliência e, sobretudo, inesgotável crença no triunfo da humanidade sobre a barbárie.

Estimada Sheherazade - deste vazão a um projeto inafiançável. Fostes surda a todo apelo, pensamento que não fosse em favor do direito à vida de mulheres indefesas. Sobre o gume da navalha caminhastes todas as noites, a sofrer o terror iminente da própria morte. Ciente de que o insucesso em urdir e tramar os fios, faria cair o cutelo com maior sofreguidão, sobre as demais mulheres. 

Tua história é feita de dualidade penosa, irrespirável, e ainda de enredos saborosos e perigos, tecidos pela imaginação, enquanto a ameaça crua de um pátio de execuções estava, e ainda está, à espera.

Ao fim das milhares de noites junto ao sultão, porém, para grande felicidade do reino, todo o terror, toda bruteza e maldade se tornaram brumas esparsadas no horizonte de uma nova manhã sem medos. Assim afirmam todas as lendas. Curaste pelo amor, senhora Sherazade, e com o inexplicável poder do perdão, mas não compreendo como foi possível tal amor.

 

Vigília I


Uma vez mais, para Shariar, a noite de prazer se dissipou. Em seus aposentos, posso ver os adamascados esvoaçando nas janelas e balcões, testemunhas que mal encobrem o belo sol a nascer, impassível e tremendo. Sou um olho que vagueia e uma voz que murmura em surdina. O homem-rei finalmente adormeceu, entre almofadas de seda bordada e exuberantes tapetes reais. Em alguma dobra dos lençóis, também repousa uma adaga em lâmina de prata e nobre punho, ornado em pedrarias. Deitada aos pés do leito, Sherazade tem mais um dia de vida. O que existe, em um dia? O que permanece, em qualquer uma das horas da jornada entre um dia e uma noite sobre o chão? Mais um dia.

Desses aposentos do sultão califa, de suas janelas e balcões, sigo vigilante os destinos de Sherazade. Posso aspirar com ela os humores de coito, impregnados na atmosfera abafada, densa ainda de aromas de incenso e óleos. Daqui também se tem visão das rosas vermelhas e dos galhos de ciprestes que vivem lá adiante, nos jardins. Eles ofertam-nos seus perfumes quando o calor lhes aquece o verde coração, e muito alentam a quem espera um dia mais para viver.

A jovem que conta histórias está só, nesta manhã de sobrevivência. Seus olhos estão nublados pela insônia fatigante. Seus lábios não desejam se abrir, a voz está exausta da prolongada ação de narrar; sua mente necessita de repouso, ao mesmo tempo em que deve se concentrar em devaneios que lhe tragam novos episódios de aventuras e intrigas, para contá-los ao sultão na próxima noite. Sherazade está orgulhosa do triunfo. Estar viva é mérito de seu projeto tão arrojado, quanto um salto noturno sobre o abismo.

A mulher das noites está viva e deseja mais viver; assim como eu, deste lado da história. Sherazade estende a mão por uma tâmara, que mordisca com ar distraído, mas sua fabulação não tem descanso. Agora sentimos outros aromas. Alimentos estão sendo preparados na cozinha, de onde parecem vir também, os sons discretos de passos dos criados atravessando o pátio, e os murmúrios de vozes a despertar, aos poucos, o vai-e-vem nos corredores, nas varandas, nas salas e outras dependências do palácio.

Destas janelas e balcões, ouvem-se também os cães que ladram nos canis, ainda presos nas correntes. Em breve estarão a correr em liberdade pelas alamedas, onde já transitam os fornecedores de provisões, os pequenos feirantes das aldeias, vindos de longe. Ouvimos ainda o ranger de carros e de patas de cavalos; talvez eles conduzam os distintos encarregados de negócios do reino. Retornam de países distantes e agora vão prestar contas ao vizir.

É uma bela paisagem, um belo reino. Quisera fossem animados dessa mesma vitalidade, o espírito de Shariar; mas, não. São muitos os homens sombrios como ele.

Membros da guarda palaciana se apresentam agora para a troca de turno. Eles são olhos e punhos do califa, estão à espreita em toda parte. Nada pode ser diverso do que ordena a sua lei. No pátio, sempre estão o algoz e o cutelo; brilha o fio aguçado do alfange.

Estamos nos domínios de Shariar. Sherazade e eu temos mais um dia para contar.

 

Carta II


Estimada Sherazade:


Fizeste um trabalho inacreditável, senhora Sultana, mas, para isso, te subjugaste à lei e ao leito do sanguinário. Sem outra esperança de sucesso, que não a crença em teus saberes e potência de imaginação, negociaste com a própria vida. Assim, fizeste concessões - não somente de tuas noites, mas de teus mil e um dias na contraluz da história.

É admirável como a cultura em que vives, cujas origens se confundem na ancestralidade de tempos e povos milenares, te erigiu - uma mulher - como figura superior de sabedorias e conhecimentos. Tua experiência, porém, jamais deveria ser repetida. Nunca mais.

No entanto, vivemos entre ameaças que parecem perpétuas, cara Sherazade. Por toda parte há quem queira alijar-nos de nossos lugares e de nossas cabeças. As garras cruéis, os braços maciços e a língua farpada continuam nos perseguindo, afligindo, aterrorizando, destruindo. Muitíssimas mulheres andam curvadas sobre a própria impotência e desolação; rostos vincados pelo medo e brutalidade com que são tratadas; e muitas vezes trazem os olhos vazados para não verem o destino cruel de suas filhas e filhos.

Nada parece contentar a esses que rejeitam a existência das mulheres. Assim rejeitam também a tudo que se povoe como cuidados, alegrias, futuro. Na era da inteligência, recrudesce a crueldade enquanto a bondade se torna vã. Os homens que odeiam contaminam a terra toda com seu ódio; matam as possibilidades de trânsito da palavra. E seguem matando-se uns aos outros, pois que têm a guerra como prerrogativa da virilidade. A destruição total emerge como o final desejo. A memória de tempos de paz está apagada. Teria essa existido um dia?

 

 

Vigília II


Outra noite se passou, embalada pelas ondas sonoras dos contos de Sherazade. Fascinado pela voz narradora, ao final, adormeceu Shariar no seio da mulher.

A se olhar sobre o leito, este corpo de máscula beleza, os pelos cobrindo a pele acobreada, a face ainda jovem a ressonar levemente com lábios úmidos entreabertos, não se adivinha o aviltamento e a inclemência de seus atos; ali mora o mal.

O ar da nova madrugada afinal entra pelas janelas e balcões e refresca. Como é belo o amanhecer. A natureza oferta vida e beleza sem medir-se. No jardim, garças brancas e vermelhas estendem as pernas e os bicos no lago a apanhar os peixes, e abrem as asas ao sol nascente.

O corpo feminino é um pássaro aprisionado. Sherazade-pássaro traz penas fustigadas por a noite de refrega na cama do estranho que detém pleno poder de morte sobre as mulheres.

Sigo os olhos de Sherazade a buscar a paisagem que se mira das janelas; ponto de suavidade e inspiração para cada manhã. Das aléias enfolhadas, ainda úmidas da aragem noturna, agora ouvimos o ciciar de cigarras, o zunir de besouros. Mesmo o zumbido de abelhas, que vem da encosta da colina, onde as miúdas trabalhadoras visitam os narcisos amarelos. Os bem-te-vis chamam no arvoredo. Os beija-flores bicam as bromélias, enquanto as araras grasnam, e as águias de olho arguto sobrevoam o campo onde cabras estão balindo à espera do pastor. Os domínios de Shariar são belos; mas ele não os merece.

Lá fora, são abundantes os seguidores do sanguinário, em grotesco cortejo de absurdos. Por toda parte as mulheres seguem assaltadas por flagelos e o terror de ter a vida por um fio.

Em breve, o poderoso Shariar se levantará para as governanças do dia. À noite, desejará o rei ouvir outra longa e interessante história? A incerteza aflige e exaspera a contadora de histórias. Ainda assim, no palácio do sultão, Sherazade e eu temos mais um dia. 

 

Carta III


Sherazade, nobilíssima:


As mulheres necessitamos de teu destemor, persistência, resiliência, e mesmo de tua criadora eloquência, mas, não da submissão de nossos corpos e mentes.

O enredo da sedução feminina trouxe mais desalentos que energias, precisamos dizer-te. O direito à vida nunca pertenceu a homem algum; e o lugar de reféns da sorte serve bem, somente aos homens. É preciso reafirmar isso todos os dias; porque a convivência harmoniosa está tão distante quanto um sonho que nos faz sorrir ao amanhecer.

Na verdade, pesadelos nos assaltam enquanto acordadas; estão povoados de figuras pérfidas que se multiplicam à solta, muito reais. A tirania do macho causou danos a todos os seres, e ainda se estende como erva daninha por toda parte, geração após geração.

Precisamos de esperanças; talvez, de uma Sherazade feliz, e de outras provocações que nos levem adiante. Necessitamos sonhar que, um dia, aqueles que se alinham a Shariar, saberão sorrir com doçura para as mulheres, e para si mesmos. Assim sorrindo, quem sabe sorrirão para os demais, quem sabe assim se entenderão, e nós nos entenderemos também.

Querida Sherazade, enquanto esse dia da fraternidade não chega, que Alá e todos os deuses nos concedam boas histórias! Que elas possam ser refrigério no deserto, abrigos nas tempestades, aconchego entre a multidão indiferente, e solidariedade, quando a hostilidade e o abandono afligirem.

 

Vigília III


Um dia e uma noite; Sherazade ainda vive! Na alcova magnífica, a narradora do sem-fim vela o sono do verdugo, uma vez satisfeita sua sede de histórias e de sexo. Shariar é o mais poderoso sultão, do mais poderoso Império entre a Índia e a Pérsia, entre os mais poderosos impérios sobre a terra. Nesta manhã, é somente o corpo nu de um homem na cama.

Shariar, e sua onipotência sangrenta. Julga possuir esta que está a tecer com afinco e minúcias, a libertação das mulheres de seu jugo monstruoso. Sherazade é esta inteligência que também é um corpo enredado em seu leito.

Vejo mais uma vez a mulher narradora se desvencilhar dos lençóis e se levantar nua. Ainda há sombras para a luz do sol que desponta. Com leveza ela atravessa o grande quarto até as janelas e balcões, que entreabre em busca de ar fresco. Ao mirar o céu, o olhar vagueia como nuvem deslizante ao vento. Reinam as luzes do azul e do amarelo, e tudo se ilumina e se espelha em outras janelas e balcões que se abrem na paisagem, que também se abrem para outras janelas e balcões.

Sherazade se encanta, surpreendida. A visão se lança adiante, em busca de mais – aberturas, frestas, orifícios. O desejo de sentir, vibrar com a vastidão, ir ao mais além. Uma cadeia de alegorias nos enlaça, Sherazade e eu, neste alvorecer de despertares - a liberdade. 

Sherazade se desloca pelos aposentos do homem-rei adormecido. Deixa exalar um suspiro longo e imerge em banho de sais, óleos e ervas. Seu corpo assim ficará acalentado por mais este dia, e a mente terá um breve repouso.

O dia se ergue, e sabemos que há olhos que nos olham sem serem vistos; vozes que nos falam, sem nada nos dizerem. Também miradas e sussurros sibilantes atravessam distâncias entre janelas e balcões.

É preciso mais um dia, para que a narradora possa urdir e tramar os fios das histórias e enfrentar a noite intensa, junto a Shariar. Depois, deverá se preparar para o dia seguinte, e o próximo dia, e o dia depois desse, e mais outro, mais outro, e outro, se quiser viver. Até quando?

Em algum lugar existe um talismã da vida, disseram-nos. O tempo, porém, parece soprar a sorte de viver, para quando e onde quiser, tamanho é o mistério.

Lá fora, centenas, milhares, milhões de cabeças aguardam, em suspense. Temos mais um dia, Sherazade e eu. A felicidade, enfim, está adiada.

 

 

France Gripp é poeta, ficcionista e autora de literatura infanto-juvenil. Publicou, entre outros, Eu que me destilo (Edição da Autora), O rei dos imóveis (Caravana), Coração incendiário (Pragmatha) e Todo instante pulsa todo (Inmensa Editorial).

 

 

 

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