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Coup de balai por Anelito de Oliveira - Editorial Sphera N.1

Atualizado: 21 de dez. de 2021




O ano de 2021 é significativo a partir de perspectivas diversas. Primeiro, a perspectiva do mundo, a de um mundo triste, assolado por uma Pandemia que se arrasta há quase dois anos. Em meio a uma avalanche de dúvidas, a um mar de incertezas, temos um sentimento do mundo bastante desolador, o de sobreviventes de uma tragédia. Tantas vidas perdidas, próximas e distantes, tanto sofrimento, tanta devastação! Tudo isso reconfigurou o rosto do mundo neoliberal, globalizado, como uma instância lutuosa, ostensivamente melancólica. Cuidar do mundo, o gesto ético tão acentuado por Hannah Arendt, talvez nunca tenha sido tão urgente e tão difícil.

Em segundo lugar, o ano de 2021 é significativo a partir da perspectiva do Outro, da alteridade, disso que se configura apenas em termos relacionais. A Pandemia escancarou a insuficiência de um estilo de vida caracterizado pela supremacia de preceitos narcísicos, pelo fechamento dos sujeitos em si mesmos, pela autocomplacência burguesa orgulhosa da sua vaziez. O esquecimento do Outro se impôs como uma verdade genocida capaz de aniquilar o próprio sentido de humanidade. Não temos saída: ou nos agregamos, numa atitude anti-segregacionista, ou nos converteremos nos ogros de um dos “Sonhos” apocalípticos de Kurosawa.


Sphera: Habitações do Encantado se propõe como uma morada agregacionista, um território virtual fundamentado na afetividade, um espaço de partilha da “poetica verdad” lezamiana que tem sua fonte radical nos Simbolistas. A referência fundante deste periódico anual é a Obra de João da Cruz e Souza (1861-1898), nascido em Nossa Senhora do Desterro, que passou a se chamar Florianópolis a partir de 1894, Estado de Santa Catarina, e morto na localidade de Sítio, que passou a se chamar Antônio Carlos a partir de 1948, nos arredores da cidade de Barbacena, Estado de Minas Gerais.

As condições de nascimento, de vida e de morte de Cruz e Souza, cujos 160 anos de imortalidade esta publicação realça, são paradigmáticas de um estatuto de alteridade que transcende o sujeito e abarca toda uma comunidade, para além de classe, raça e gênero como categorias estanques, mas interseccionalmente articuladas. Filho de escravos domesticados, limitados pela dependência dos seus Senhores proprietários; uma vida tumultuada pela sociabilidade racializada no país; uma morte aos 36 anos por tuberculose provocada pela inseguridade alimentar resultante da pobreza, a mesma situação que explica a morte de grande parte dos acometidos pela Covid-19 num país como Brasil.


Uma imagem perturba profundamente a nossa consciência letrada desde 20 de março de 1898: o corpo de Cruz e Souza chega à Cidade do Rio de Janeiro, à então Corte republicana, num vagão de transportar cavalos. O desespero de sua mulher Gavita, que o filme “O poeta do desterro” de Sylvio Back reconstrói com agudeza cinética, dá a medida precisa da via-crucis em que o Outro subsiste, do desamparo em que se vê não por escolha própria, mas por condenação política, pela disposição desigual dos corpos pelo Soberano, o Estado. A morte da própria Gavita três anos depois do poeta, em 1901, aos 27 anos, também de tuberculose, torna essa condenação ainda mais estridente.


O Outro é, para os seus algozes estabelecidos nos espaços de poder, um cavalo! Mas essa zoomorfização diz muito mais, evidentemente, sobre os algozes racistas, sobre o seu desejo tirânico de distinção, do que sobre o próprio Outro, que não se pretende melhor ou pior que outrem, a começar pelos ditos animais irracionais. O lugar do cavalo é o lugar de natureza, de estranhamento, de selvageria, o vagão que coloca em xeque o lugar de cultura, de familiaridade, de civilização. Daquele lugar do cavalo, daquele lugar de desamparo, emana a imagem extrema do Outro como encantado, da experiência do ser Outro como ultrapassamento de limites ideológicos do humano definido segundo uma escala de valores etnocêntricos.


Sphera: Habitações do Encantado se propõe como revista-território, fundindo miradas objetivas e subjetivas de modo a afirmar uma percepção da Obra-Vida de Cruz e Souza – com Z de Zumbi, com o Z da capa das primeiras edições dos livros do Autor, com Z de insubordinação anticolonialista em relação ao “Sousa” português – como real dinâmico, num combate declarado aos revisionismos reificantes impostos pelas forças reacionárias do tempo presente.

O Encantado, bairro suburbano efetivamente habitado pela família Cruz e Souza na cidade do Rio de Janeiro nos idos de 1890, é uma mirada objetiva. Um dos sentidos de Èsù, o Orixá da Comunicação, em Yorubá, por outro lado, é uma mirada subjetiva: esfera, o que não tem começo nem fim, o infinito. Não menos importante é a palavra Sphere no sobrenome de um dos sujeitos mais souzianos no jazz, ao lado de John Coltrane: Thelonious Sphere Monk.

Habitar poeticamente o mundo, na linha do último Heidegger novalisiano poeta-de-poetas, encantar um mundo desencantado, produzir um território, em consonância com o singular Milton Santos, a partir das necessidades de um certo sujeito, no caso, o sujeito souziano. Este é o propósito bastante claro deste periódico neste número inaugural com tantas vozes de tempos e espaços tão diversos.

Valores éticos, morais, étnicos, estéticos, culturais, políticos e humanitários que fazem da Obra de Cruz e Souza um acontecimento avassalador vibram por toda parte na produção aqui estampada. Excesso de vida, apologia da potência do poético, celebração da alteridade, um “coup de balai”, uma vassourada, diria o sarcástico Cruz das campanhas abolicionistas pelo Nordeste, na cara desses dias sujos, intolerantes.

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