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Deslocar, significar, profanar: a arte política de Carlos Barroso

Atualizado: 19 de set. de 2022

por Anelito de Oliveira

Descorpo (Instalação)



Ao refletir sobre a relação entre museu e literatura, Orham Pamuk (2011) destaca o sentido político que preside a escolha e disposição de objetos numa Galeria. Museógrafos compreendem seu gesto como político, ao contrário de muitos escritores, que não lidam bem, quando não a ignoram, com a questão política. O que é essa questão, hoje e sempre, senão o tecer o tecido comum, o lugar da experiência coletiva, de modo mais aprazível, numa operação em que beleza e justiça, estética e ética, amalgamam-se, como Platão (1991) figurou no Político?



Tribo dos Encolhedores de Cabeças - de Cabral a Cabral (Poema visual)



As peças que integram “Deslocamento”, a Mostra de Carlos Barroso na Galeria da Assembleia Legislativa de Minas Gerais aberta ao público neste mês de setembro e acessível até meados de outubro próximo, são um caso de arte política em sintonia clínica com o espaço público brasileiro ainda em ebulição. O que está em ebulição apresenta a informidade, ou a disformidade, como seu fundamento, um fundamento gasoso, uma nebulosidade que solicita uma operação tradutória para que o sentido se instaure.


A diversidade de materiais e procedimentos que o artista nos apresenta é índice notável da dificuldade de que se reveste essa operação, da impossibilidade de traduzir o espaço social em ebulição a partir de uma perspectiva unívoca. Daí a opção pela busca de objetos que possam engendrar processos de significação da vida social, pensando com Stuart Hall (2003) que, no limite, coloquem-nos em face do real, daquilo que, por ser horrendo, evitamos perceber no dia a dia.



Cela (Escultura)



Para colocar, é preciso deslocar, movimento que pressupõe uma dinâmica de tensionamento do local, disso que é referência básica da instabilidade que caracteriza o sujeito contemporâneo. Ao considerarmos a totalidade dessas peças, suas interrelações, vemos que o local, o “locus” irradiador do processo criador, é a cidade, portanto, o espaço habitado, o lugar das relações sociais. Vemo-nos deslocados, assim mesmo, para o lugar que demanda a política, o tecer que na arte extrema, que tem na antiarte de Marcel Duchamp o seu marco, desvela-se torcer.



Ratoeira (Objeto)


Ao se dispor para o público na Galeria do Parlamento mineiro, “Deslocamento” nos coloca no lugar que necessariamente precisamos enfrentar como parte da compreensão, em primeiro lugar, da crise da democracia que atormenta o pais desde 2013 e alimenta o fascismo no país. Peças como “Obscurantismo” e “A ratoeira” têm sua potência crítica, seu arcabouço contra-ideológico, convertido em ato revolucionário, subversivo, em razão do espaço físico onde se dão à recepção pública. Deslocam nosso olhar sobretudo para causas e consequências do fascismo galopante.



Presuntos a Passarinho (poema visual)



A política da ignorância, a negação do “ethos” iluminista, tem um papel fulcral na política da morte, na “necropolitica”, para usar o termo já convencionado de Achille Mbembe (2018). Neste sentido, as peças citadas nos deslocam em direção a outras duas, “Cela” e “Presuntos a passarinho”, nas quais se colocam em relevo o aprisionamento e genocídio de corpos no país – negros, em sua maioria - que têm sido mecanismos recorrentes de manutenção da ordem e do progresso segundo um projeto republicano sanguinário, militarista, escravagista.



Obscurantismo (Tronco de árvore de poda de rua / Instalação)



Esse projeto, tocado pelas elites serviçais do imperialismo estadunidense, constitui o oposto radical da democracia, uma força antidemocratizante, que inviabiliza o próprio desenvolvimento humano, compreensão para a qual desloca o nosso olhar a colagem “Tribo dos encolhedores de cabeças – de Cabral a Cabral”, que apresenta uma seleção corrosiva de personagens que, a pretexto de liderar a nação, são responsáveis pela redução da capacidade cognitiva do povo brasileiro ao longo da história. A liberdade de olhar que aí encontramos é exemplo de uma “profanação”, diria Giorgio Agamben (2007), que só o artista pode produzir da política ao deslocar sua arte da tradição das “beaux arts”, à qual se vincula o esteticismo alienador, como Pierre Bourdieu (1996) se esforçou tanto para elucidar.


A poesia é a fonte dessa liberdade, como podemos ver em vários trabalhos passíveis de serem rotulados de Poesia Concreta, Poesia Semiótica, Poesia Visual, Videopoesia etc. Mais que os rótulos, “Deslocamento” nos coloca em face da produtividade de uma desrotulação: o que interessa, para evocar o poema icônico de Décio Pignatari (2022) recentemente evocado por Antônio Cícero, é o que não está contido no que se apresenta – na poesia interessa o que não é poesia. Interessa na Obra instigante de Carlos Barroso aquilo que está além e aquém da obra, e não tenhamos dúvida que seja a nossa deslocada, “homelessada”, condição humana no inferno neoliberal.



Picho (poema visual)




Referências


Agamben, G. (2007). Profanações. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo, Boitempo.

Bourdieu, P. (1996). As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo, Companhia das Letras.

Hall, S. (2003). Da diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Tradução de Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte, Editora UFMG.

Mbembe, A. (2018). Necropolitica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo, N-1 Edições.

Pamuk, O. (2011). O romancista ingênuo eo sentimental. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo, Companhia das Letras.

Pignatari, D. (2022). Interessere. Disponível em www.antoniocicero.blospot.com Acesso: 18/09/22.

Platão (1991). Político. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo, Nova Cultural.



Anelito de Oliveira é Escritor, Pesquisador e Professor. Doutor em Literatura Brasileira pela USP e Pós-Doutor em Teoria Literária pela Unicamp. Atualmente, é Professor Visitante de Literaturas Africanas na UFMG, Publisher da Revista Sphera e autor de O desgraçado Sr. Humano & Outros poemas anticínicos, entre vários livros. Responde pela Curadoria da exposição “Deslocamento”. E-mail: letrasafricanas@gmail.com Carlos Barroso é poeta, artista e jornalista. Do grupo fundador da revista Cemflores. Publicou: Poetrecos e os livros-objeto: Carimbalas (2008), Sãos, Usura e CunilínguaPátria (2013). E o e-book 41 poemas contra (2020). Participou das mostras: Coletiv4 (UFSJ/2015), Ocupação Poética (UFSJ/2017); Além da Palavra (Biblioteca Pública/BH/2018); Além da Palavra2: Casa dos Contos/Ouro Preto (2018) e Faculdade de Letras UFMG (2019). Repórter político em jornais e TVs; comentarista da Band/Minas, apresentou o programa Cena Política (BHNews). Prêmio Esso Regional de Reportagem (2001).

***

Mostra Deslocamento / Carlos Barroso

Local: Galeria da Assembleia Legislativa de Minas Gerais

Data: De 5 a 23 de setembro de 2022

Horário: segunda à sexta-feira, entre 8 e 18 horas

Endereço: Rua Rodrigues Caldas, 30 – Bairro Santo Agostinho – Belo Horizonte

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