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Foto do escritorRevista Sphera

Desreclusão: a poesia de Maria do Carmo Ferreira finalmente em livro


Maria do Carmo Ferreira, uma das poetas brasileiras mais inventivas da segunda metade do século XX praticamente desconhecida até por especialistas, ganha finalmente edição da sua obra em três volumes. Foto: Divulgação


Todo dia somos apresentados aos livros mais importantes do ano. A questão, nos limites do bom senso, é sempre a mesma: para quem? Para quem realmente não se deixa levar pelas artimanhas do mercado, que ousa pensar com seus próprios sentidos, este aqui é um dos livros mais importantes do ano no âmbito da poesia no país: Poesia reunida 1966-2009, de Maria do Carmo Ferreira, organizado por Fabrício Marques, poeta e jornalista, e Silvana Guimarães, poeta e editora da Revista Germina, publicação da goiana Martelo. Quem é essa poeta? Sphera republica aqui alguns poemas e um ensaio de Silvana Guimarães como convite à leitura. (Anelito de Oliveira)




[Do livro CAVE CARMEN]

 

 

ESTADO RESIDUAL DA DOR

 

 

Aos quarenta e dois anos soo inédita

estrela decadente ao rés do chão.

Erra a maturidade entre as paredes

que ergui aos dezessete. E não ruirão.

Que diria eu de mim que fui vedete

plumas e prêmios em pés de pavão?

Espadanava o espírito nas redes

e eu peixe escorregava-me das mãos.

Pássaro cego dardejei parábolas

que se empalharam num museu de sons.

Tornei-me objeto. Abjeta. Prefixada

à guisa de artefato eu disse NÃO.

Palavras que eu mastigo em pensamento

são malas artes química que intento

como animal que urina para dentro:

gaveta/arquivo morto/armagedom.

Ah não me amei me armei me desmascaro

quero escapar de mim perder meu faro.

Adentrei-me demais no labirinto

e quanto mais me sinto mais me sinto

eu revolvida em livro de memórias

errática ficção fingida história

eu me arrancando páginas de medo

eu recolhida às pressas já no prelo

eu censurada imprópria intransmissível

eu bomba H na hora D eu míssil

em pânico de ser e estar comigo

eu me engolindo em seco em meu degredo

camelo cobra cabra capivara

catatônica ao toque da palavra

desertora de mim. Desativada.


 

ABRACADABRA

 

 

Não abro.

Por vias de quem me aldrabo

marfado e trancafioso

em trava-línguas trevoso

sob onze travos me travo.

 

ABRACADABRA

 

Não abro.

Pela etimologia

cabalo pastoso pasto

em grego e latim proposto

mafioso e trancafiado.

 

ABRACADABRA

 

Não abro.

Desabo mão por meu gosto.

Não roo o osso nem o largo.

Me dolo em fechado jogo.

Meu corpo é um lance de dados.

 

ABRACADABRA

 

Não abro.

Em filtros de amor me escondo

quiromântico amaviado.

Por vias de quem responso

me esfinjo. Me enigmato.

 

ABRACADABRA

 

Não abro.

Minha palavra não rompo

vivo ou morto procurado.

Lacrado em lacromancia

me expio. Me abracadabro.


 

DÍVIDA

 

 

Minha vida em dívida.

Devo, mas não pago.

Mesmo que eu quisesse

com os olhos da cara

apagar o agravo

dessa bofetada:

dívida advinda

vida adivinhada.

Nem com a própria vida

pode ser saldada.

Dívida contrata

vida contratada

por seja quem for

o interlocutor

que com uma palavra

instaurou o espaço

para eu ser quem sou.

Dívida-divisa

de uma integridade

da ordem do desejo

que é mau pagador.

Dívida vertida

convertida em dádiva.

Dívida — e diga-se

a bem da verdade —

que me instituiu

um ser de linguagem.

Mesmo que eu pudesse

não poder poder

dividir meu ser

em dupla palavra

de uma mesma face:

dádiva que é dívida

dívida que é dádiva.

Dívida alvinegra,

mas alvissareira:

meu banco de dados

(contra, a meu favor?)

de matriz arcaica.

Dívida de vida.

Vida endividada.

Dívida indevida:

víbora esmagada


 

[Do livro CORAM POPULO]

 

 

SEQUÊNCIACONSEQUÊNCIA

 

 

Dies irae, dies illa,

nada será como d’antes:

doravantesma só cinzas.

 

Revolve-se a poeira humana.

Por ínvios caminhos, roma.

Na cama, o lot das filhas.

 

A natureza se espanta

com o fogo que prometeu:

libertas quae sera tamen.

 

Bárbaro belo horizonte,

haja sermão nas montanhas

quando ismália enlouqueceu.

 

Marcados com pedras brancas

vão-se os anéis aos diamantes

in albislente festina.

 

Olhai o lírio dos campos:

cui bono? Arcades ambo.

Teste dirceu cum marília.

 

Lacrimosa dies illa,

chora bárbara heliodora

do norte estrela sem guia.

 

Transidos de eterno sono

quem rogaturus patronum?

Tudo será cinza fria.

 

Vivos voco, mortuos plango.

Dormindo profundamente

ab aeterno, aeternum vale,

 

onde eram neves d’antanho

diadorins… dinamenes…

sub rosa (cum grano salis).

 

Vão-se os anéis, fincam os dedos

finos como lã de cágado

limpando as mãos à parede:

 

um no papo, outro no saco,

por baixo, por trás dos panos

tutti son fatti marchesi.

 

Litterae bellorophantis

entre amazonas, quimeras,

cumpro o destino a que vou:

 

res, non verba, hominem quaeso:

no me saques sin razón,

no me embaines sin honor.

 

A césar o que é de césar:

rei da lídia ou rei da lécia,

questão de lana-caprina.

 

Até aí morreu o neves:

que a terra lhe seja leve,

 

Vão-se os anéis de saturno

et campos ubi troja fuit:

cinzas do princípio ao fim.

 

Revertere ad locum tuum.

Não compro mais ave alguma.

Perdi o tempo e o latim.

 

Com suas rosas de malherbe,

com seus beijos-lamourette

e os seus anéis nibelungos,

 

sicut umbra dies nostri:

ubi flores de retórica,

ibi cravos-de-defunto.

 

Dia de todos os santos,

de quebradeira e quebranto,

dia miserere nóbis:

 

num pass-a-nel delirante

entre um anão e um gigante

cavalo e valquíria explodem.

 

Um livro há de ser escrito

e o homem passado a limpo

bem no nariz do patrão:

 

quando o tumor vem a furo

de que servos dedos-duros

os que se vão, s’assoarão?

 

Metendo a mão na cumbuca,

geme e estertora a criatura

numa sinuca de bico.

 

Em represália ante o trono,

ao som de tripas e trompas

todos pedindo penico.

 

Apocalíptico dia!

Dia do tombo, hecatombe,

ingemisco tamquam reus.

 

O que é do homem o bicho come:

vamos que zebra, ou que bode,

quem sabe o bicho que deu’s?

 

Ante diem, sê benigno,

juiz do justo castigo

qui salvandos salvas gratis.

 

Persona rude inter oves,

correm comigo: eu, contíguo,

cost to cost & the day after.


 

PAISAGEM ATLÂNTICA

 

 

Um homem belo.

O cão

não.

 

Um homem sério.

O cão

não.

 

Um homem velho.

O cão

não.

 

Um homem e seu

mistério.

O cão.


 

[Do livro QUANTUM SATIS]

 

 

TUDO & NADA

 

 

O tempora, o mores

não conheci piores

por mais que sobrevenham

ilusões furta-cores

somar-se ao mal

de amores

em vírus e viroses.

 

O tempora, o mores

sem as amoras

pretas

coroando-me

as têmporas

em tempos de

favores.

 

O tempora, o mores

chego a reconhecer

solidária a vocês

que os recebem

nas ventas

antes mesmo dos trinta.

Que será nos setenta?

 

O tempora, o mores

que não me deixam ir

nem contemporizar

o que vem por aí.

Num beco-sem-saída

pane na caixa-preta.

A um clique,

a vida ruindo:

avalanche de letras.


 

PELO SIM PELO NÃO

 

 

Obrigada, Senhor, por mais esta mudança.

Vejo que não poupais esforço em me seguir.

E o que quereis de mim, só vós sabeis, Deus santo.

Sou à vossa mercê, sem suspeitar de mim.

 

Penso criar raízes onde quer que eu me encontre

quando, na realidade, soprais vosso Espírito

além de onde me alcanço, cada vez mais longe

para que em vós somente eu finque pé, e fique.

 

A angústia que me invade, comparai-a aos trancos

com que vivo e convivo sem ondes porquês.

Se de outro mal maior sou poupada, até quando

 

hei de servir-vos, custe-me o nada fazer

a força do silêncio e a secura do canto

com que, perplexa, me avio à vossa mercê?


 

IMITAÇÃO DE CRISTO

 

 

Na queda de braço do amor

é de levar sempre a melhor?

 

Por mais — ou menos — conforto

divaga — ou viaja — na do outro?

 

Pode caminhar sobre as águas

se embarca em canoa furada?

 

Acha que está no mesmo barco

mesmo chovendo no molhado?

 

Com a vida — tem se dado bem?

E o vil metal — sonando, vem?

 

Consulta o horóscopo moreno?

Geme-o? Sui generis? Gênio?

 

Prefere ouvir-se heterônimo

ou a secretária eletrônica?

 

Porco, vampiro, tubarão,

na hora do lobo: rato, polvo?

 

Heterossexual de nascença

ou medo de ser quem pensa?

 

De camarão ou de avestruz

vai de cabeça? E de cruz?

 

Há um cireneu na sua vida

ou madalena — arrependida?

 

Um amador fazendo o cooper?

O cooper feito — maldoror?

 

Sabe que amar sem ser amado

é se abanar sem ter calor?

 

Saca no fundo o palavrão

como um cachorro ao mundo cão?

 

Pensa que Cristo olha pra isto?

Isto é, aquilo? A quilo? É isso

 

ser vencediço — ou vencedor —

na queda de braço do amor


 




Apontamentos sobre um lirismo indiscreto & concreto

 

SILVANA GUIMARÃES

 

 

Primeiro

 

 

O que se sabe e não devo repetir sobre a poesia de Maria do Carmo Ferreira: uma especialista em experimentação/invenção poética. Criou formas próprias para expressar seus embaraços pessoais [e os coletivos]. Soou inédita por mais de 60 anos, insistindo numa vida reclusa. Talvez, a maior crítica de si mesma. O que pode [ou não] explicar o

seu afastamento compulsório do mundo literário.

 

Não ressaltar que ela exercitou a metatextualidade de maneira autorreflexiva e autoconsciente, com o entendimento crítico daqueles que mantêm uma relação afincada com o mundo. E procuram respostas/resultados para os seus desamparos.

 

Não mencionar que — mais que loas alheias — ela buscou a própria aprovação. Incansável & franciscanamente. Foi severa com seus versos & reversos, no embate com a palavra, a “luta mais vã”. Satírica, sarcástica, concreta & lírica, compôs esta coleção de poesia como algo que vai do sublime ao assustador. Entre os 20 e os 70 anos [o último poema, em 2009].

 

Agressiva, moderna, teimosa. Sorte nossa [e da poesia] é que eu também sou [teimosa].

 

 

Segundo

 

 

Poucas pessoas conhecem bem a Carminha. E quem a conhece mais, dela sabe pouco. Tenho essa sorte, um privilégio: ser sua amiga. Durante pouco mais de dez anos [1998-2009], dividimos alegrias, angústias, indignações, poemas, segredos, conversa fiada.

 

Descobrimos muitas coisas comuns. No temperamento, na autoironia, na intimidade com a solidão, no modo de ver a poesia, o mundo, as pessoas. Rimos muito juntas. Sofremos idem. Seja com as trapaças da sorte, seja com as injustiças de toda sorte. Depois, como num passe de mágica, Carminha sumiu do meu mapa.

 

Na primeira vez que desafiei a sua ausência [pelo telefone], ela se revelou dedicada aos ofícios religiosos. Decidira servir a Deus, já que à poesia não serviria mais. E declarou-se “ex-poeta”, palavra que eu sentia da boca para fora.

 

Ainda assim, foi um osso duro de roer. Eu não me conformava com o verbo desistir. E insistia na publicação de seu livro, na importância que ele teria para a poesia, fazia das tripas coração para convencê-la, mas ela permanecia inflexível. Muitas vezes, desligou o telefone na minha cara, pedindo-me que não ligasse mais para falar desse “assunto”.

 

Eu deixava passar um tempo, alguns meses, voltava a telefonar, a “ex-poeta” mal me respondia, desligava. Foram anos assim. Às vezes, eu ligava porque outros poetas, que

conviveram com ela no passado ou que conheceram a sua poesia, vinham me perguntar sobre o seu paradeiro. Lá ia eu: telefone na cara.

 

Até que, em março de 2021, Carminha resolveu falar no “assunto”. Como por encanto.

 

Por isso, este conjunto de poemas organizado por Fabrício Marques e eu.

 

Não delimitamos as fases da sua poesia, em razão de seu esconde-esconde, mas procuramos apresentar uma visão geral de sua atuação poética, plena de incógnitas, códigos e signos, que criam a possibilidade de leituras inesperadas com novos significados. Uma poesia carregada de assombros e reflexões, que oferece itinerários incoerentes ao leitor. Para o céu ou para o inferno. Um trabalho quase secreto, iniciado em meados dos anos de 1960 — com os poemas “Enigmas” e “As posses do papel”, publicados, respectivamente, na revista Mural, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFMG, e no Suplemento Literário de Minas Gerais —, parado desde 2009 e, entanto, espantoso.

Por isso, a minha fala. Muito mais afetiva que especializada. Um exercício de amor dedicado a quem sempre me causou tanta inquietude, tanta perplexidade. Tanta sombra/tanto sol.

 

 

Terceiro

 

 

Vale repetir: como se sabe, a poesia de Maria do Carmo Ferreira, primeiro de tudo, trabalha a linguagem — ainda absurdamente arrojada — que ela ordena/desordena com extrema habilidade, muitas vezes, em composições de construção formal, em meio a uma mistura babélica que atesta a sua formação erudita & eclética.

 

Também envolve seus versos nas angústias do cotidiano — políticas, circunstanciais, humorísticas, existenciais, amorosas, sensuais, metafísicas. Numa orgia de gêneros que

soam como exercícios de estilo e fluxos de consciência e desembocam em uma obra vária: oito e/ou 80.

Um exemplo de sua criatividade [rara]:

 

DESDOBRAMENTO DO NOJO

 

 

acordo e me apalpando estupefata colho em meus dedos roxos

hematomas que o tempo põe a nu e desenfaixa como uma peç

a única um quimono onde floresce o desamor ramagens na tat

uagem-túnica em que nua sob o escalpelo visto a paisagem qu

e vaso a vaso e nervo a nervo estua desde que a carne delirou

miragens e se lanhou o espírito no medo estraçalhando a culp

a urdindo o pânico embaraçando a insânia em meus cabelos até

me expor varada de vexame pejada em asco sacudida em pejo

 

Um poema lírico? Um poema concreto? Mas rearranjados em outro formato, esses versos revelam o que estava bem escondidinho, um bom e velho soneto:

 


DESDOBRAMENTO DO NOJO

 

 

acordo e me apalpando estupefata

colho em meus dedos roxos hematomas

que o tempo põe a nu e desenfaixa

como uma peça única um quimono

 

onde floresce o desamor ramagens

na tatuagem-túnica em que nua

sob o escalpelo visto a paisagem

que vaso a vaso e nervo a nervo estua

 

desde que a carne delirou miragens

e lanhou-se o espírito no medo

estraçalhando a culpa urdindo o pânico

 

embaraçando a insânia em meus cabelos

até me expor varada de vexame

pejada em asco sacudida em pejo

 

Maria do Carmo Ferreira fez da poesia seu modo de vida. Sua “língua do pê: módulo código hobby tv”. Onde seus embates particulares são mascarados/despejados em “misteriosos monólogos interiores”. Entre chamas & flamas. Primorosa & dolorosamente. Na saúde & na doença. No amor & no ardor. No divinal & no mundano. Na espera.

 

Uma longa espera: poesia maior que a vida.

 

 

Belo Horizonte, 31 de dezembro de 2021.

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