Imagem: soldado americano carregando água para um ponto de distribuição em uma base operacional avançada em Port-au-Prince, Haiti. Free U.S. Government.
Até nunca mais, kalanbè
Estou me despedindo de você Aceno meu adeus direto dos escombros de uma terra mastigada Que engoliu-se pela fome com que nos serviu Seu prato de flores era recheado com pus Você, kalanbè, nos transformou em canibais
Sua lição sanguessuga foi fácil de traduzir E sempre soubemos como era sua verdadeira língua Mas tínhamos fome e sede, de sons e de caminhos
Crescemos sem o pai negro, sem a mãe indígena E aceitamos sua esmola Órfãos demais para o passado, idosos demais para o amanhã
Mas, ei, cabeça de vento Estamos falando com você com o idioma da história de nossa terra
Nossos dedos de escravizados aprenderam a cavar fundo, fazendo das migalhas ensanguentadas as sementes para outra época
Uma época em que o espírito da santa luz nos levanta feito árvore sagrada A árvore de frutos estranhos rodeada pela floresta renascida
Veja como nossas mãos são nutritivas Veja nossos dedos balançando sem tremer com o vento ceifador Cada aceno é um adeus e um golpe mortal em sua ceia miserável
Você fica mais desnutrido a cada irmão que se levanta dos escombros Não sabe que o sangue derramado é alimento para os que aprenderam a renascer das sombras
Você não cabe mais aqui No círculo da irmandade onde o sol e a lua brincam livres Em cujo centro arde uma fogueira acesa pelo pai indígena e pela mãe negra
Até nunca mais, Kalanbè Sua pátria agora se desmorona com o levante da terra revolvida pelos nossos pés
Voltamos à mátria e você só terá nossas mãos dizendo adeus para chorar pelo que teria sido se tivesse entendido que era parte de nossa família universal
Adeus
Comerciante sol
Meio dia Levanta o Sol
Micróbio da miséria pela Casa Grande
Para construir suas cidades de beleza
Fedendo a pica, fedendo a pica!
Eu estou falando com você
Metrópole dos micróbios do Sol
Pelado, pelado no umbigo das favelas
É a guerra
Pelo Sol, pelo Sol
Somos todos herdeiros da terra?
Paraíso ou Inferno
Pelo veneno do Estado Nacional
Eu não sou um matador de micróbios
Eu sou um amanhã pelado
Como uma selva
Sol, Sol
Sou o vestido do dia
Para construir pelo Sol
Meio dia levantando
Oi, Selva!
Poemas escritos durante a oficina Fuçando os escombros: jogos de tradução para não-tradutores, ministrada pelos poetas Júlia Raiz (do Brasil) e Rei SEELY (do Haiti). O segundo poema foi escrito com colagem de palavras em haitiano (apresentadas durante a oficina) e foi traduzido e revisado por Rei SEELY.
Andréia Carvalho Gavita é poeta e tem sete livros publicados. Trabalha no Departamento de Ciências Florestais da UFPR e na Editora Donizela. Colabora com a web-produção das revistas Zunái e Sphera e coordena ações culturais no Coletivo Marianas. Portfólio: gavita.com.br
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