ODE À TIPOGRAFIA
Tradução: Guilherme Mansur
Letras largas, severas,
verticais,
feitas
de linha
pura,
erguidas
como o mastro
do navio
no meio
da página
cheia
de confusão e turbulência,
Bodonis
algébricos,
letras
cabais,
finas
como lebréis,
submetidas
ao retângulo branco
da geometria,
vogais
elzevires
cunhadas
no miúdo aço
do ateliê junto à água,
em Flandres, no norte
dos canais,
sinais
da âncora,
caracteres de Aldus,
sólidos como
a estatura
marinha
de Veneza
em cujas águas-mães,
como vela
inclinada,
navega a cursiva
curvando o alfabeto:
o ar
dos descobridores
oceânicos
vergou
para sempre o perfil da escritura.
Das
mãos medievais
avançaram até teus olhos
este
N
este 8
duplo
este
J
este
R
de rei e de rocio.
Ali
se lavraram
como se fossem
dentes, unhas,
martelos metálicos
do idioma.
Golpearam cada letra,
erigiram-na,
pequena estátua negra
na brancura,
pétala
o pé estrelado
do pensamento que tomava forma
de caudaloso rio
e que no mar dos povos navegava
com todo
o alfabeto
iluminando
a desembocadura.
O coração, os olhos
dos homens
se encheram de letras,
de mensagens,
de palavras,
e o vento passageiro
ou permanente
levantou livros
loucos
ou sagrados.
Debaixo
das novas pirâmides escritas
a letra
estava viva,
o alfabeto ardendo,
as vogais,
as consoantes como
flores curvas.
Os olhos
do papel, que olharam
para os homens
buscando
seus presentes,
sua história, seus amores,
estendendo
o tesouro
acumulado,
espalhando de repente
a lentidão da sabedoria
sobre a mesa
como um baralho,
todo
o húmus
secreto
dos séculos,
o canto, a memória,
a revolta,
a parábola cega,
de repente
foram
fecundidade,
celeiro,
letras,
letras
que caminharam
e se acenderam,
letras
que navegaram
e venceram,
letras
que despertaram
e subiram,
letras
que libertaram,
letras
em forma de pomba
que voaram,
letras
vermelhas sobre a neve,
pontuações,
caminhos,
edifícios
de letras
e Villon e Berceo,
trovadores
da memória
apenas
escrita sobre o couro
como sobre o tambor
da batalha,
chegaram
à espaçosa barca
dos livros,
à tipografía
navegante.
Mas
a letra
não foi só beleza,
mas vida,
foi paz para o soldado,
dentro das solidões
da mina
e o mineiro
leu
o panfleto duro
e clandestino,
escondeu-o nas dobras
do secreto
coração
e acima,
sobre a terra,
foi outro
e outra
foi sua palavra.
A letra
foi a mãe
das novas bandeiras,
as letras
procriaram
as estrelas
terrestres
e o canto, o hino ardente
que reúne
os povos,
de
uma
letra
agregada
a outra
letra
e a outra,
de povoado a povoado
foi sobrelevando
sua autoridade sonora
e cresceu na garganta dos homens
até impor a claridade do canto.
Mas,
tipografía,
deixa-me
celebrar-te
na pureza
de teus
puros perfis,
na redoma
da letra
O,
no fresco
vaso
do
Y
grego,
no
Q
de Quevedo
(como poderia passar
minha poesia
em frente a essa letra
sem sentir o antigo calafrio
do sábio moribundo?),
à açucena
multi
multiplicada
do
V
de vitória,
no
E
escalonado
para subir ao céu,
no
Z
com seu rosto de raio,
no
P
alaranjado.
Amor,
amo
as letras
de teu cabelo,
o
U
de teu olhar,
os
S
de tuas curvas.
Nas folhas
da jovem primavera
reluze o alfabeto
diamantino,
as esmeraldas
escrevem teu nome
com iniciais frescas do orvalho.
Meu amor,
tua cabeleira
profunda
como selva ou dicionário
me cobre
com sua totalidade
de idioma
vermelho.
Em tudo,
na esteira
do verme
se lê,
na rosa se lê,
as raízes
estão cheias de letras
retorcidas
pela umidade do bosque
e no céu
de Isla Negra, à noite,
leio,
leio
no firmamento frio
da costa,
intenso,
diáfano de formosura,
desdobrado,
com estrelas capitais
e minúsculas
e exclamações
de diamante gelado,
leio, leio
na noite do Chile
austral, perdido
nas celestes solidões
do céu,
como num livro
leio
todas
as aventuras
e na erva
leio,
leio
a verde, a arenosa
tipografia
da terra agreste,
leio
os navios, os rostos
e as mãos,
leio
em teu coração
onde
vivem
entrelaçados
a inicial
provinciana
de teu nome
e
o arrecife
de meus sobrenomes.
Leio
tua fronte,
leio
tua cabeleira
e no jasmim
as letras
escondidas
elevam
a incessante
primavera
até que eu decifre
a enterrada
pontuação
da papoula
e a letra
escarlate
do estio:
são as exatas flores do meu canto.
Mas,
quando
desdobra
seus rosais
a escritura,
a letra
sua essencial
jardineira,
quando lês
as velhas e as novas
palavras, as verdades
e as explorações,
te peço
um pensamento
para aquele que as ordena
e as levanta,
para aquele que ampara
o tipo,
para o linotipista
com sua lâmpada
como um piloto
sobre
as ondas da linguagem
ordenando
os ventos e a espuma,
a sombra e as estrelas
no livro:
o homem
e o aço
uma vez mais reunidos
contra as asas noturnas
do mistério,
navegando,
perfurando,
compondo.
Tipografia,
sou
só um poeta
e és
o florido
jogo da razão,
o movimento
dos bispos-do-xadrez
da inteligência.
Não descansas
nas noites
nem de inverno,
circulas
nas veias
de nossa
anatomia
e se dormes
voando
durante
alguma noite ou greve
ou fadiga ou ruptura
de linotipia
voltas de novo ao livro
ou ao periódico
como nuvem
de pássaros ao ninho.
Regressas
ao sistema,
à ordem
inapelável
da inteligência.
Letras
continuais caindo
como chuva precisa
em meu caminho.
Letras de tudo
o que vive
e morre,
letras de luz, de lua,
de silêncio,
de água,
amo-vos,
e em vós
recolho
não só o pensamento
e o combate,
mas também vossos vestidos,
sentidos
e sons:
A
de gloriosa aveia,
T
de trigo e de torre
e
M
como teu nome
de maçã.
ODA A LA TIPOGRAFÍA
Pablo Neruda
Letras largas, severas,
verticales,
hechas
de línea
pura,
erguidas
como el mástil
del navío
en medio
de la página
llena
de confusión y turbulencia,
Bodonis
algebraicos,
letras
cabales,
finas
como lebreles,
sometidas
al rectángulo blanco
de la geometría,
vocales
elzeviras
acuñadas
en el menudo acero
del taller junto al agua,
en Flandes, en el norte
acanalado,
cifras
del ancla,
caracteres de Aldus,
firmes como
la estatura
marina
de Venecia
en cuyas aguas madres,
como vela
inclinada,
navega la cursiva
curvando el alfabeto:
el aire
de los descubridores
oceánicos
agachó
para siempre el perfil de la escritura.
Desde
las manos medioevales
avanzó hasta tus ojos
esta
N
este 8
doble
esta
J
esta
R
de rey y de rocío.
Allí
se trabajaron
como si fueran
dientes, uñas,
metálicos martillos
del idioma.
Golpearon cada letra,
la erigieron,
pequeña estatua negra
en la blancura,
pétalo
o pie estrellado
del pensamiento que tomaba forma
del caudaloso río
y que al mar de los pueblos navegaba
con todo
el alfabeto
iluminando
la desembocadura.
El corazón, los ojos
de los hombres
se llenaron de letras,
de mensajes,
de palabras,
y el viento pasajero
o permanente
levantó libros
locos
o sagrados.
Debajo
de las nuevas pirámides escritas
la letra
estaba viva,
el alfabeto ardiendo,
las vocales,
las consonantes como
flores curvas.
Los ojos
del papel, los que miraron
a los hombres
buscando
sus regalos,
su historia, sus amores,
extendiendo
el tesoro
acumulado,
esparciendo de pronto
la lentitud de la sabiduría
sobre la mesa
como una baraja,
todo
el humus
secreto
de los siglos,
el canto, la memoria,
la revuelta,
la parábola ciega,
de pronto
fueron
fecundidad,
granero,
letras,
letras
que caminaron
y encendieron,
letras
que navegaron
y vencieron,
letras
que despertaron
y subieron,
letras
que libertaron,
letras
en forma de paloma
que volaron,
letras
rojas sobre la nieve,
puntuaciones,
caminos,
edificios
de letras
y Villon y Berceo,
trovadores
de la memoria
apenas
escrita sobre el cuero
como sobre el tambor
de la batalla,
llegaron
a la espaciosa nave
de los libros,
a la tipografía
navegante.
Pero
la letra
no fue sólo belleza,
sino vida,
fue paz para el soldado,
bajo a las soledades
de la mina
y el minero
leyó
el volante duro
y clandestino,
lo ocultó en los repliegues
del secreto
corazón
y arriba,
sobre la tierra,
fue otro
y otra
fue su palabra.
La letra
fue la madre
de las nuevas banderas,
las letras
procrearon
las estrellas
terrestres
y el canto, el himno ardiente
que reúne
a los pueblos,
de
una
letra
agregada
a otra
letra
y a otra,
del pueblo a pueblo
fue sobrellevando
su autoridad sonora
y creció en la garganta de los hombres
hasta imponer la claridad del canto.
Pero,
tipografía,
déjame
celebrarte
en la pureza
de tus
puros perfiles,
en la redoma
de la letra
O,
en el fresco
florero
de la
Y
griega,
en la
Q
de Quevedo
(cómo puede pasar
mí poesía
frente a esa letra
sin sentir el antiguo escalofrío
del sabio moribundo?),
a la azucena
multi
multiplicada
de la
V
de victoria,
en la
E
escalonada
para subir al cielo,
en la
Z
con su rostro de rayo,
en la
P
anaranjada.
Amor,
amo
las letras
de tu pelo,
la
U
de tu mirada,
las
S
de tu talle.
En las hojas
de la joven primavera
relumbra el alfabeto
diamantino,
las esmeraldas
escriben tu nombre
con iniciales frescas del rocío.
Mi amor,
tu cabellera
profunda
como selva o diccionario
me cubre
con su totalidad
de idioma
rojo.
En todo,
en la estela
del gusano
se lee,
en la rosa se lee,
las raíces
están llenas de letras
retorcidas
por la humedad del bosque
y en el cielo
de Isla Negra, en la noche,
leo,
leo
en el firmamento frío
de la costa,
intenso,
diáfano de hermosura,
desplegado,
con estrellas capitales
y minúsculas
y exclamaciones
de diamante helado,
leo, leo
en la noche de Chile
austral, perdido
en las celestes soledades
del cielo,
como en un libro
leo
todas
las aventuras
y en la hierba
leo,
leo
la verde, la arenosa
tipografía
de la tierra agreste,
leo
los navíos, los rostros
y las manos,
leo
en tu corazón
en donde
viven
entrelazados
la inicial
provinciana
de tu nombre
y
el arrecife
de mis apellidos.
Leo
tu frente,
leo
tu cabellera
y en el jazmín
las letras
escondidas
elevan
la incesante
primavera
hasta que yo descifro
la enterrada
puntuación
de la amapola
y la letra
escarlata
del estío:
son las exactas flores de mi canto.
Pero,
cuando
despliega
sus rosales
la escritura,
la letra
su esencial
jardinería,
cuando lees
las viejas y las nuevas
palabras, las verdades
y las exploraciones,
te pido
un pensamiento
para el que las ordena
y las levanta,
para el que para
el tipo,
para el linotipista
con su lámpara
como un piloto
sobre
las olas del lenguaje
ordenando
los vientos y la espuma,
la sombra y las estrellas
en el libro:
el hombre
y el acero
una vez más reunidos
contra el ala nocturna
del misterio,
navegando,
horadando,
componiendo.
Tipografía,
soy
sólo un poeta
y eres
el florido
juego de la razón,
el movimiento
de los alfiles
de la inteligencia.
No descansas
de noche
ni de invierno,
circulas
en las venas
de nuestra
anatomía
y si duermes
volando
durante
alguna noche o huelga
o fatiga o ruptura
de linotipia
bajas de nuevo al libro
o al periódico
como nube
de pájaros al nido.
Regresas
al sistema,
al orden
inapelable
de la inteligencia.
Letras
seguid cayendo
como precisa lluvia
en mi camino.
Letras de todo
lo que vive
y muere,
letras de luz, de luna,
de silencio,
de agua,
os amo,
y en vosotras
recojo
no sólo el pensamiento
y el combate,
sino vuestros vestidos,
sentidos
y sonidos:
A
de gloriosa avena,
T
de trigo y de torre
y
M
como tu nombre
de manzana.
Guilherme Mansur
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