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História e sociedade no relato poético de Drummond

André Dick

Foto: Evandro Teixeira



“tudo em Drummond é palavra”

Décio Pignatari


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A poesia de Carlos Drummond de Andrade tornou-se, sobretudo ao longo da segunda metade do século XX, numa referência evidente a uma pesquisa literária que pretende promover uma relação do homem com a sociedade, do texto poético com a História (a maiúscula, aqui, é indispensável).


Drummond em alguns momentos confirma isso, como numa carta a Cabral, então na Europa, em que fala da necessidade que ele tinha de levar a poesia de qualidade, hermética ou não, ao povo. Instigando Cabral, pergunta: ”Já meditou na fascinante experiência que seria fazer livros de custo ínfimo, com páginas sugestivas, levando a poesia moderna aos operários, aos pequenos funcionários públicos, a toda essa gente atualmente condenada a absorver uma literatura de quarta classe porque se convencionou reservar certos gêneros e tendências para o pessoal dos salões e das universidades?".[1] O que mais parecia querer Drummond, por esse fragmento de sua carta, era ser entendido pelo povo que não tem acesso a ela, e fugir do universo acadêmico, a seu ver, pelo que se entende, elitista. Drummond, nesse sentido, é visto tradicionalmente como o poeta do povo, o poeta que pensa na sociedade, em oposição a Cabral, o poeta intelectualizado, que pensa apenas na própria poesia. Neste ensaio, veremos se Drummond realmente opta por esse caminho



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Uma determinada consideração que José Guilherme Merquior faz é caracterizadora do exagero que perpassa a obra do mineiro: "A história, em Drummond, é história mesmo, história real, e não – como a de Pound ou Eliot – matéria-prima do mito".[2] Porém, como escreve o filósofo italiano Gianni Vattimo, "a história dos eventos – políticos, militares, dos grandes movimentos de ideias – é apenas uma história entre outras", sendo a História muito mais uma "estória", um "relato".[3]


Esse relato implica uma história "dos modos de vida, que caminha muito mais lentamente e se aproxima quase de uma `história natural' dos fatos humanos". [4] Além disso, Vattimo assinala, baseado na leitura de Walter Benjamin: "Quem administra a história são os vencedores que conservam apenas o que se coaduna com a imagem que dela fizeram para legitimar seu poder".[5]


No mesmo sentido, Compagnon avalia que mesmo "a história dos historiadores não é mais uma nem unificada, mas se compõe de uma multiplicidade de histórias parciais, de cronologias heterogêneas e de relatos contraditórios", não tendo o "sentido único que as filosofias totalizantes da história lhe atribuíam desde Hegel".[6] A história, desse modo, passa a ser um "relato que, como tal, põe em cena tanto o presente quanto o passado; seu texto faz parte da literatura".[7]


Diz Drummond em "Mundo grande": "(Na solidão de indivíduo / desaprendi a linguagem / com que homens se comunicam.)".[8] Também em "Notícias": "De ti para mim, apelos, / de mim para ti, silêncio".[9] Ele aponta, pela negação, o curso que deve seguir como homem, pois, desgastado dentro das formas líricas pelas quais atravessa (desde o verso livre, por vezes construído em poemas com quadras e tercetos, das primeiras obras, como José, A rosa do povo e Sentimento do mundo, passando pelos sonetos de Claro enigma, influenciados por Valéry, até poemas livres, com versos rimados ou brancos), parece mais alguém que pretende manter certo distanciamento da sociedade que o cerca, das cidades em que se movimenta, dos períodos em que vive, seguindo a história pessoal dos fatos humanos, muito mais silenciosa.


Daí também seu desinteresse em discutir poesia, o que chegou a incomodar a Mário Faustino, que, no entanto, afirmou, no artigo "Poeta maior", que a obra drummondiana é "documento crítico de um país e de uma época", e que "no futuro, quem quiser conhecer o Geist brasileiro, pelo menos entre 1930 e 1945, terá que recorrer muito mais a Drummond que a certos historiadores, sociólogos, antropólogos e 'filósofos' nossos".[10] O desejo de Faustino mistura certamente um tom vanguardista e romântico. O poeta, em sua reflexão, passa ao posto de representante de uma história, como aquele capaz de escrever, em seus versos, a verdadeira história, refletir a verdadeira sociedade. Em paralelo a este argumento, pode, sem dúvida, ser dito que a obra foi criada num ambiente histórico, o que é inegável. Mas basta contrapor a este argumento o que Faustino observa: "A linguagem de Carlos Drummond sempre teve momentos indubitavelmente 'poéticos'(i. e., linguagem de criação, e não só de expressão; meio de doação, e não só comunicação; apresentação do objeto, e não apenas alusão ou comentário ao objeto)". E ainda: "Drummond é um renovador da 'linguagem prosaica', um grande verse maker" – "ponto máximo de uma tradição relativamente pobre nesse sentido"[11] – e o autor que colocou "a linguagem retórica em nossa língua [...] em seus devidos termos". Tais observações ajudam a mostrar que a importância de Drummond se dá sobretudo na construção de uma linguagem poética mais moderna, em relação à tradição na qual se inseriu, mas sem anunciar rupturas ou querer revolucionar a discussão literária através de sua inserção na história. Nenhum outro poema me caracteriza mais Drummond do que "Vida menor", de A rosa do povo:


A fuga do real, Ainda mais longe a fuga do féerico, mais longe de tudo, a fuga de si mesmo, a fuga da fuga, o exílio sem água e palavra, de perda voluntária de amor e memória.

[...]

Não o morto nem o eterno ou divino,

apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente e solitário vivo. Isso eu procuro. [12]



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Pode-se ter uma ideia, nesse ensaio, de que o autor ignorou a sua história como inspiração para sua obra, conforme alguns estudiosos, e se concentrou na História. Drummond, na sua fase inicial, procurou desintegrar-se dentro de sua obra, dissociar-se dela por meio de um diálogo ausente com um leitor indefinido – e esta é, porventura, sua posição histórica: uma história dissolvida.


Antonio Candido, num ensaio muito interessante, "Inquietudes na poesia de Drummond" escreve que o "eu" em Drummond "é uma espécie de pecado poético inevitável, em que precisa incorrer para criar, mas que o horroriza à medida que o atrai. O constrangimento (que só poderia tê-lo encurralado no silêncio) só é vencido pela necessidade de tentar a expressão libertadora, através da matéria indesejada".[13]


Embora Candido indique a ideia de que essa representação do poeta quer abarcar uma visão social, daí ele se considerar um gauche, Drummond é bastante individualista, como ele mesmo escreve, e sua função social é, de certo modo, negar o mundo que aí está e não tentar salvá-lo ou representá-lo – não conta a História como ela verdadeiramente seria, como se seguisse o propósito aristotélico, mas faz dela uma estória, um relato. Daí ser talvez não muito interessante separar o "ser" do "mundo", como inscreve Candido.[14] O "mundo", para Candido, seria a História, ou seja, o poeta só estaria inserido nela quando se importasse com o social, como homem dissolvido entre os outros, perdido em meio ao povo. Constata-se, a partir daí, na análise de Candido, uma "polaridade" que, no meu entendimento, não chega a ser tão sólida quando vamos à obra de Drummond, que nos parece mais complexa: de um lado, a preocupação com os problemas sociais, e, de outro, os problemas individuais;[15] de um lado, o "lirismo individualista"; de outro o "lirismo social";[16] de um lado, a "máquina retorcida da alma", de outro, a "relação com o outro, na família, no amor, na sociedade";[17] de um lado, o "eu retorcido"; de outro, o "desentendimento entre os homens";[18] de um lado, o poeta "social"; de outro, o "grande cantar da família como grupo e tradição";[19] de um lado, o "egotismo profundo", de outro "uma espécie de exposição mitológica da personalidade".[20]


Tal dicotomia é prejudicial ao entendimento, à medida que o próprio Candido afirma que "a poesia da família e a poesia social, muito importantes na sua obra, decorriam de um mecanismo tão individual quanto a poesia de confissão e autoanálise, enrolando-se tanto quanto elas num eu absorvente".[21] A história de Drummond traria, implica justamente em reafirmar que o poeta é gauche? Porque o poeta procura sempre, para Candido, alcançar a História, nunca a estória dos pequenos relatos lembrada por Vattimo. Candido constata que elementos subjetivos e mesmo autobiográficos se inserem na procura drummondiana. Querer ser o outro, indica Candido, faz com que o poeta deixe de ser o "eu" e se integre ao público, deixe de ser "estória" e passe a ser "História".


No entanto, o "cantar" não se torna "geral", em "evento" apenas porque é "profundamente particular"; o "geral" simplesmente inexiste: há, parece-me, mais dispersão e dissolução do eu em Drummond. Do mesmo modo, sob esse ponto de vista, não é um poeta público, como considera Otto Maria Carpeaux, para quem Drummond também representa, em seu individualismo, a sociedade de seu tempo.[22]


Não se questiona aqui a reflexão de Candido de que o sentimento drummondiano pertence também a outros homens, e é feito também pelo sentimento alheio, mas sim a reflexão de que o poeta possa representar o outro, o povo, como se estivesse num patamar superior (essa linha de raciocínio se fortalece com o romantismo crítico de Schlegel e de Novalis). Candido anota, em determinado momento: "[...] a sua poesia social não é devida apenas à convicção, pois decorre sobretudo das inquietudes que o assaltam. O sentimento de insuficiência do eu, entregue a si mesmo, leva-o a querer completar-se pela adesão ao próximo, substituindo os problemas pessoais pelos problemas de todos".[23] Ou no seguinte fragmento: "[...] o eu estrangulado é em parte consequência, produto das circunstâncias; se assim for, o eu torto do poeta é igualmente uma espécie de subjetividade de todos, ou de muitos, no mundo torto";[24] ou "a experiência política permitiu transfigurar o quotidiano através do aprofundamento da consciência do outro".[25]


O ápice da poesia de Drummond é visto no momento em que persegue a sociedade: em A rosa do povo, o poeta vivia a "descoberta e a prática apaixonada da poesia social".[26] A poesia não seria a arte do objeto, mas do "nome do objeto, para constituir uma realidade nova".[27] É a ideia que presta certa tributo ao romantismo: o eu como representante de todos. Como escreve Sérgio Buarque, avaliando a timidez de Drummond (e o contraparte seja visto como poeta "do povo" pelo fato de uma determinada crítica literária, mais dela, que se dá na "autocrítica implacável, espécie de inteligência da sensibilidade"), o poeta é o contrário de um romântico, ou seja, "ele não quer comprazer-se no malogro, nem se lamenta sobre as dores do mundo, nem – salvo por exceção – chega a sonhar com algum paraíso futuro".[28]



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Lembremos do texto referencial de Theodor W. Adorno, "Palestra sobre Lírica e sociedade", que norteia em especial a análise de Candido. Este escrito traz o espírito romântico de que o poeta, mesmo querendo se afastar do mundo, fala, como uma figura rara, escolhida, desse mesmo mundo. Escreve Adorno: "[...] em cada poema lírico devem ser encontrados, no médium do espírito subjetivo que se volta sobre si mesmo, os sedimentos da relação histórica do sujeito com a objetividade, do indivíduo com a sociedade".[29] É uma interpretação do poeta como indivíduo genial. Adorno pretende constatar que mesmo o silêncio do poeta moderno é uma resposta à sociedade. Nas entrelinhas, toda a ação do poeta é exatamente contrária a seu objetivo: ou seja, se ele quer fugir à história, ignorando o diálogo com a sociedade, ele está, nesse movimento, permanecer nela.


O interesse de Drummond pela História talvez seja sublimado em razão do título de um de seus livros – o mais comentado, por sinal –, justamente A rosa do povo. Se virmos atentamente esse livro, chegaremos à ideia de que poucos poemas dele remetem direta e objetivamente a acontecimentos de seu tempo ou do contexto em que foram escritos. Seus poemas potencializam traços de Brejo das almas, Sentimento do mundo e José: uma fuga do eu da sociedade, um sentimento constante e incômodo de solidão e de isolamento (são absolutamente belos poemas como "Carrego comigo", "Anoitecer" e "Nosso tempo") – todos esses elementos não vistos de forma pejorativa, como fez Hugo Friedrich em sua Estrutura da lírica moderna, mas como parte de uma persona melancólica. Alguns versos de "Nosso tempo" mostram que Drummond fala de um sentimento que podemos sentir hoje, em tempos de relações superficiais e de guerras disfarçadas de justiça: "Este é tempo de partido, / tempo de homens partidos / [...] Este é tempo de divisas, / tempo de gente cortada. / De mãos viajando sem braços / obscenos gestos avulsos".[30] Vejamos a solidão de "Passagem da noite", de "Retrato de família" ou de "Uma hora e mais outra", o clima melancólico de "Nos áureos tempos". Há poemas de simples detalhes do cotidiano, como "Ontem", "Episódio" e o excelente "Fragilidade"; a visualização do crescimento da metrópole (em "Edifício São Borja"), o tédio do trabalho ("Noite na repartição"), a sensação de tempo desperdiçado (em "Idade madura"), mas tudo é muito idiossincrático; não se percebe uma voz que represente a todos, e sim simboliza o medo personificado, o ressentimento duro, áspero, em só um homem: Drummond. Lembre-se, nesse sentido, como exemplo maior, o magnífico poema "Desfile", com seus antológicos versos iniciais e finais. Os temas, de qualquer modo, são repetidos em seus livros posteriores, apenas sob uma formalização do verso, como nos poemas de Claro enigma, Fazendeiro do ar e A vida passada a limpo.


O poeta, sob o ponto de vista de ser um possível guia da humanidade, é incapaz de representar a si mesmo, e também ao outro. A subjetividade não é feita somente quando está ligada a um "dentro", ao "individualismo", quando o "fora" é o cotidiano, o movimento diário, a máquina pública. Um poeta individualista não representa o "privado", enquanto lá fora está o "público", ou seja, não é subjetivo apenas quando pensa em si mesmo, não havendo dicotomia na formação de qualquer linguagem, como também entre alta e baixa cultura quando se trata de apropriação poética (no caso de Drummond, Alguma poesia, por representar o cotidiano, seria, para muitos, a baixa cultura, enquanto Claro enigma, por trabalhar com formas clássicas, representaria a alta cultura; o primeiro traria um "sentimento popular"; o segundo, um "sentimento sublime").


Nesse ponto, Sérgio Buarque comenta que o "exercício ocasional de um tipo de poesia militante e contenciosa", vista em Sentimento do mundo, serviu para "purificar ainda mais uma expressão que já alcançara singular limpidez". No entanto, percebe o crítico, o "impulso que o levaria a superar essa poesia militante não chegaria nele a abolir a preocupação constante do mundo finito e das coisas do tempo",[31] como vemos em Claro enigma. Para Sérgio Buarque, Drummond sabe que a depuração não consiste em eliminar todo prosaísmo e este serve para se intensificar o "poético pela própria força do contraste".[32]


Como escreve Davi Arrigucci Jr., essa inadequação – de atrelar a poesia a "fatos históricos efetivos cuja repercussão nas esferas das artes e da cultura em geral parece inarredável" – pode causar equívocos, descuidando-se de que a poesia de Drummond, desde sua origem, "trouxe em si o fermento de superação dos problemas que jamais deixou de incorporar, absorvendo nas camadas profundas a experiência histórica, que não se confunde com os eventos de fora". [33]


Para Davi, o conteúdo da poesia drummondiana é "histórico até o mais fundo e não se separa do problema de sua configuração formal ou da consciência do fazer que sempre o acompanha". Além disso, ressalta o crítico que Drummond não é histórico porque reproduz "fatos históricos", mas porque "revela uma consciência verídica da expressão histórica entranhada profundamente na subjetividade e na própria forma poética que lhe deu expressão".[34]


A obra poética, assim, não se reduz a "documento histórico, embora também o seja; ela é, antes, como historiografia inconsciente, o registro atual do que se passou na interioridade de um homem durante seu tempo vivido e ganhou expressão correspondente".[35]


Esta bela expressão – "historiografia inconsciente", baseada numa ideia de Adorno, desta vez, em minha opinião, mais acertada – mostra que o poeta não escreve para, mas apenas escreve. Pode-se lançar uma desconfiança sobre o conceito de "expressão correspondente", como se o poeta incorporasse, numa espécie de mímesis translúcida, a realidade que o cerca, quando sabemos que em literatura não se identifica a realidade, mas esta é apenas referida. Porém, sem dúvida, há, na poesia, como explica Davi, "o teor de verdade humana e histórica imerso" em sua própria dinâmica.[36]


Eu diria que essa história é apenas a "estória" comentada por Vattimo – o poeta, apesar de aludir a fatos históricos, o percebe sob um olhar particular, não representando a humanidade por meio de seus versos. Se as suas ideias se coadunam com as de outros homens é por causa exatamente de sua essência individual, da qual todos dependemos e na qual buscamos manter o instinto de sobrevivência. O poeta, a meu ver, não é um porta-voz, ou mediador, da espécie humana – suas falhas o denunciam, como todas as falhas que vemos no ser humano, de modo geral - e a sua "estória" não é a História da humanidade A sua imprecisão, sim, é fruto da própria historicidade que o compõe.



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Daí a importância do ensaio, breve, mas produtivo, "Silêncio & palavra em Carlos Drummond de Andrade", no qual João Alexandre Barbosa, a propósito da poesia drummondiana, observa que é por meio da linguagem que o poeta mostra como se relaciona com o mundo. O poeta, assim, situa-se entre o silêncio do hermetismo e a comunicação da experiência que "jamais é aquela existente antes de sua realização verbal".[37] Na poesia contemporânea, lembra Barbosa, "a mediação entre uma e outra realidade da poesia se tem feito pelo redimensionamento dos valores herdados da tradição". Nisso, a poesia deixa de ser "arte" da linguagem: "o seu módulo passa a ser anti por excelência"[38]. A marca do poema, assim, é a destruição. Todas as aproximações e recuos ao lírico que se constata na obra de Drummond são, para Barbosa, "crivadas, quase sempre, pela reflexão acerca da própria poesia".[39] Ou seja, o poeta, ao falar na destruição de sua linguagem, está falando da existência na qual esta linguagem se encontra. Barbosa analisa o poema "Nudez", em que entre "o silêncio da experiência vivida (o amor) e a comunicação da experiência possível (o riso, a alegria), o espaço é preenchido pelo nada", no verso: "Minha matéria é o nada".


Poderíamos lembrar o Nada conceituado por Mallarmé, e João Alexandre o aproveita na trajetória do poema rumo ao silêncio, à impossibilidade, à incomunicação, elementos que representariam mais uma tentativa de o poeta se inserir, às avessas, na sociedade. O percalço, breve, conciso, mas muito produtivo, em seu ensaio, mostra um poeta delineado sob uma perspectiva menos fechada, não tão conduzida pela recepção pública ou pela apropriação filosófica.


No ensaio de João Alexandre, temos um Drummond que, antes de responder ao mundo, trabalha o conhecimento a partir da linguagem. Este conhecimento resulta no corpo do poema não pelo diálogo com o social, mas com a linguagem que no indivíduo se desenvolve, mesmo solitário. João Alexandre acaba revelando aquele Drummond que poderia ter sido visto por Faustino: o que demonstra o conhecimento poético por meio de sua matéria: a linguagem, o nada. É um conhecimento não ensaístico, mas poético. Não aparece em forma de divagações mallarmeanas, nem por meio do estudo do sonho cabralino, mas, antes, na filosofia de um pensamento que não procura a verdade – trata-se de poesia e não de um tratado a ser seguido – e sim a dispersão do literário.


Este Drummond fundado pela linguagem – evidente na sua multiplicidade, no seu domínio técnico sobre as mais diversas formas – é um Drummond que desvela o Nada, aquele que, diante do trânsito, não quer transpô-lo para a linguagem, mas antes utilizar esta para destruí-lo, silenciá-lo. Nisso, ele não dá uma resposta ao que o perturba, mas nega a perturbação. Se lhe resta a náusea, é porque sua linguagem é feita por ela.


Esta leitura de João Alexandre Barbosa nasce, também, de uma leitura feita nas entrelinhas por Candido em seu ensaio já examinado. É quando Candido escreve: "[...] para o poeta tudo existe antes de mais nada como palavra. Para ele, a experiência não é autêntica em si, mas na medida em que pode ser refeita no universo do verbo. A ideia só existe como palavra, porque só recebe vida, isto é, significado, graças à escolha de uma palavra que a designa e à posição desta na estrutura do poema".[40]


No entanto, isso não ocorre do modo que Candido aponta: a de que o poeta transforma o "lugar-comum" em "revelação".[41] O certo é que ele aponta, como Barbosa, que há um traço mallarmeano na poesia de Drummond: a de que sua poesia também se constitui não exatamente "para além das palavras" – traço romântico –, mas na busca por um "equilíbrio precário e maravilhoso" e por um "arranjo da estrutura poética".[42] O nada em Drummond é o cotidiano, como ele escreve na segunda parte de "Canções de alinhavo": "Stéphane Mallarmé esgotou a taça do incognoscível. / Nada sobrou para nós senão cotidiano, que avilta, deprime".[43] O Nada em Drummond é o cotidiano, mas não afastado do de Mallarmé, que era uma releitura do Budismo e de Hegel. Por isso, Candido observa, com muita razão, que a serenidade transmitida pela ordem do poema drummondiano provém de uma "aceitação de nada – de morte progressiva na existência de cada dia; de dissolução do objeto no ato poético até a negação da própria poesia".[44]



6


Como vimos, Candido escreve que há em Drummond um "sentimento de insuficiência do eu", que o faz buscar a completude "pela adesão ao próximo, substituindo os problemas pessoais pelos problemas de todos",[45] havendo uma lacuna em sua interpretação, pois se Drummond é incapaz de perceber saída nele mesmo, como melancólico, ele só verá no outro uma decepção maior ainda, que remete ao sentimento que não foi atendido em seu passado, e não uma saída. Já em "Coração numeroso", de Alguma poesia, ele escrevia: "a cidade sou eu / a cidade sou eu / sou eu a cidade / meu amor". Ele parecia não estar fingindo. Drummond tem consciência, como escreve em "Mundo grande", de que os homens não cabem em seu coração pequeno.[46] Em "A bruxa", poema de José, ele compreende que mesmo numa cidade de dois milhões de habitantes, o Rio de Janeiro, ele está sozinho no quarto e na América: "Estou cercado de olhos, / de mãos, afetos, procuras. / Mas se tento comunicar-me / o que há é apenas noite / e uma espantosa solidão".[47] Quando pergunta: "E agora, José", ele se pergunta: "E agora, Drummond?". Por isso, ele em "Estrambote melancólico", de Fazendeiro do ar, escreve: "Tenho saudade de mim mesmo, sau- / dade sob aparência de remorso, / de tanto que não fui, a sós, a esmo, / e de minha alta ausência em meu redor. / Tenho horror, tenho pena de mim mesmo / e tenho muitos outros sentimentos / violentos. Mas se esquivam no inventário, / e meu amor é triste como é vário, / e sendo vário é um só". [91] Amor por quem? Por si mesmo? Um só? Um sujeito que representa o sentimento de todos? O que Drummond faz é, como indicava Roland Barthes ser a verdadeira responsabilidade do escritor, "suportar a literatura como um engajamento fracassado".[48] É quando o poeta percebe que "a literatura não é uma graça, é o corpo dos projetos e das decisões que levam um homem a se realizar (isto é, de certo modo, a se essencializar) somente na palavra: é escritor aquele que quer ser". Naturalmente, Barthes, autor desta reflexão, já previa: "Naturalmente também, a sociedade, que consome o escritor, transforma o projeto em vocação, o trabalho da linguagem em dom de escrever, e a técnica em arte: é assim que nasceu o mito do bem-escrever",[49] querendo inserir o autor como um mito histórico.


Se há uma influência do ambiente em que se coloca o poeta – influência trespassada –, ela não ganha, de volta, nenhuma resposta. A poesia não representa o mundo, embora se refira a ele. Mas, nesse individualismo, existe a busca constante pelo afeto, que, apesar de não demonstrado, está lá, à espera.


Que se dê, portanto, espaço sempre a Drummond e seus pequenos relatos. Barthes dizia, afinal, que a sacralização do trabalho do escritor permite à sociedade distanciar o conteúdo da própria obra, o conteúdo que pode perturbá-la, convertendo-o em "puro espetáculo, ao qual ela tem o direito de aplicar um julgamento liberal (isto é, indiferente), neutralizar a revolta das paixões, a subversão da crítica (o que obriga o escritor 'engajado' a uma provocação incessante e impotente), em síntese, recuperar o escritor".[50] Que recuperar Drummond não nos leve, portanto, muitas vezes, a esquecê-lo, mas a chegar ao seu conhecimento da tradição.



* André Dick nasceu em Porto Alegre (RS), em 1976. Publicou os livros de poesia Grafias (2002), Papéis de parede (2004), Calendário (2010) e Neste momento (2022). É doutor em Literatura Comparada pela UFRGS.




[1] SÜSSEKIND, Flora (Org.). Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.174. [2] MERQUIOR, José Guilherme. Sobre a doxa literária. In: Crítica (1964-1989). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 364. [3] VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. XVI. [4] VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002 p. XIV. [5] VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. XVI. [6] COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 222. [7] COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 222. [8] ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, op. cit., p. 87. [9] ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 22. [10] FAUSTINO, Mário. Poeta maior. In: De Anchieta aos concretos: poesia brasileira no jornal (Org. Maria Eugenia Boaventura). São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 206. [11] FAUSTINO, Mário. Poeta maior. In: De Anchieta aos concretos: poesia brasileira no jornal (Org. Maria Eugenia Boaventura). São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 212. [12] ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 143-144. [13] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 97. [14] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 95. [15] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 96. Grifos meus. [16] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 100. [17] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 103. [18] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 104. [19] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 110.. [20] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 96. [21] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 96. [22] CARPEAUX, Otto Maria. Fragmento sobre Carlos Drummond de Andrade. In: BRAYNER, Sônia (Org.). Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977, p. 151. [23] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 106. [24] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 108. Grifos meus. [25] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 108. Grifos meus. [26] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 116. [27] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 117. [28] HOLANDA, Sérgio Buarque de. O mineiro Drummond – 1. In: O espírito e a letra: estudos de crítica literária, 1947-1958 – vol. II (Org., introd. e notas de Antonio Arnoni Prado). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 560. [29] ADORNO, Theodor W. Palestra sobre lírica e sociedade. In: Notas de literatura I. Tradução e apresentação de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, p. 72. [30] ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 125-126. [31] HOLANDA, Sérgio Buarque de. O mineiro Drummond – 1. In: O espírito e a letra: estudos de crítica literária, 1947-1958 – vol. II (Org., introd. e notas de Antonio Arnoni Prado). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 502. [32] HOLANDA, Sérgio Buarque de. O mineiro Drummond – 1. In: O espírito e a letra: estudos de crítica literária, 1947-1958 – vol. II (Org., introd. e notas de Antonio Arnoni Prado). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 502. [33] ARRIGUCCI JR., Davi. Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 18. [34] ARRIGUCCI JR., Davi. Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 103. [35] ARRIGUCCI JR., Davi. Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 103. [36] ARRIGUCCI JR., Davi. Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 103. [37] BARBOSA, João Alexandre. Silêncio & palavra em Carlos Drummond de Andrade. In: A metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 108. [38] BARBOSA, João Alexandre. Silêncio & palavra em Carlos Drummond de Andrade. In: A metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 108. [39] BARBOSA, João Alexandre. Silêncio & palavra em Carlos Drummond de Andrade. In: A metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 108. [40] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In:.Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 118. [41] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In:.Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 118. [42]CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In:.Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 119. [43] ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 1256. [44] CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In:.Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970, p. 120-121. [45] Ibidem, p. 106. [46] ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 87. [47] ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 94. [48] BARTHES, Roland. Escritores e escreventes. In: Crítica e verdade. 3. ed. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 35. [49] BARTHES, Roland. Escritores e escreventes. In: Crítica e verdade. 3. ed. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 35. [50] BARTHES, Roland. Escritores e escreventes. In: Crítica e verdade. 3. ed. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 35.

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