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Conto de “Sacrifício e outros contos”, coletânea de Francisco de Morais Mendes (Jaguatirica)

Atualizado: 10 de nov. de 2021




O ato de ler


Na penumbra, apenas uma cadeira ao lado de um abajur. O fundo da cena é um painel escuro. É grande a expectativa diante desse espetáculo. Mesmo ignorado pela imprensa e pela crítica, foi divulgado boca a boca e pelas redes sociais. Muitas pessoas enfrentam as filas movidas pela incredulidade, sem saber se caberá a elas um lugar no teatro. A incredulidade logo dará lugar ao arrebatamento – pela leveza da montagem, pela sensibilidade da direção, pelo ritmo preciso da atriz.


O ato de ler vem ganhando público a cada apresentação. Há várias sessões o teatro está inteiramente lotado, tornando remota a memória dos dias de casa vazia. Já nos reconhecemos, os que voltam pela terceira ou quarta vez, na dúvida se a passagem dita em voz alta será a mesma ou uma surpresa.


Invejamos aqueles que vêm pela primeira vez, por causa do impacto da primeira vez, mas podemos nos gabar de certa intimidade com a atriz, com a possibilidade de antecipar suas reações, ainda que se trate de Júnia Hilst, imprevisível mesmo quando segue criteriosamente o texto.


O primeiro dos três sinais provoca pequena agitação, não somente porque faz os acomodados se mexerem e os que aguardam no café buscarem seus assentos, mas porque assinala a proximidade do grande momento. Ao segundo sinal, a inquietação percorre como uma onda a plateia, há uma suspensão coletiva da respiração, por antecipar a entrada de Júnia.


Ao terceiro sinal, nova agitação, dessa vez mais intensa, porque os remanescentes do saguão apressam-se e, enquanto o eco do sinal ainda não se desfez, baixa no recinto um silêncio de templo. A luz da plateia cai aos poucos.


Entrando pela esquerda, Júnia alcançará o abajur antes de chegar à cadeira. Traz na mão direita o livro aberto, como se já o estivesse lendo. Para, acende o abajur que ilumina a cadeira, ao mesmo tempo que a luz da plateia é apagada.


Júnia se senta, cruza as pernas cobertas por um longo vestido e volta à leitura. O livro agora está apoiado apenas na mão esquerda, espalmada. Nos primeiros minutos um incômodo percorre os espectadores, porque o único movimento é o de passar as páginas, com os dedos da mão direita. Lê devagar, saboreando cada palavra. Suspira levemente, para transmitir uma primeira impressão da leitura. Mal se dissipa essa impressão, ela franze a sobrancelha, para retomar a imobilidade que só será quebrada ao virar a página.


Então, nota-se uma diferença: as duas primeiras páginas que virou, ela as tocava pela parte de baixo; a terceira, tomada pelo alto, reluta em se deixar virar. A esse gesto, um pequeno rumor percorre a assistência.


A página seguinte é virada pela parte de baixo, e o texto a faz mudar o semblante duas vezes. É perceptível que a leitura se tornou mais atraente, pois ela chegou mais depressa ao final da página, que vira ansiosa, como quem não quer perder o fio da frase. Estará concluída, talvez pelo meio da página, a cena excitante, pois em seguida a leitura torna-se mais lenta.


Antes de prosseguir, segura o livro com a mão direita – a esquerda o segura por baixo –, o polegar direito não pode ser visto: está dentro do livro. Agora, cabe à mão esquerda sustentar o livro. Assim, a mão direita volta a pousar sobre a coxa. Apenas deixará essa posição para mudar de página, ora bem devagar, erguendo um pouco as sobrancelhas, como quem reflete sobre o que acabou de ler, ora com pressa, arrancando do público sussurros que alteram o respeitoso silêncio requerido numa sala de leitura.


Um leve sorriso brota em seus lábios, e igualmente em nossos lábios.


Júnia vira mais uma página, descruza as pernas e afunda a mão direita entre as coxas, como a aquecê-la numa cena de inverno. Não mantém por muito tempo essa posição, pois é preciso mover o corpo de vez em quando, para não se cansar e transferir o cansaço para a leitura, o que poderia produzir uma falsa impressão sobre o livro.


São necessários, portanto, os movimentos que buscam uma posição mais confortável. Nessa busca, há uma alternância entre as mãos, ela torna a segurar o livro com a mão direita, enquanto a esquerda percorre a nuca, como se ali sentisse uma comichão. Move também os ombros, para aliviar a tensão que se instala e, em seguida, tudo volta a ser como antes, as pernas cruzadas, o livro sustentado pela mão esquerda espalmada, a direita deixando o conforto da coxa apenas para virar as páginas.


A discreta movimentação da atriz tem reflexo sobre o público. Cadeiras rangem ao menor gesto, e um ou outro arremedo de tosse é reprimido. Logo, o silêncio volta a ser tão completo que imaginamos ouvir o dedo deslizando na folha a ser virada.


E sucedem-se a leitura e a virada de página, a leitura e a virada de página, até que, à procura de algo que lhe terá escapado, Júnia precisa voltar no texto. O gesto não pode ser visto em sua totalidade porque é ocultado pelo próprio livro: ela volta as páginas com delicadeza, mas resoluta. Deixa o mindinho marcando talvez a linha onde deteve a leitura e intercala os dedos entre as páginas que move com destreza, fazendo o público irromper num aplauso que se prolonga até ela encontrar o que procurava.


Relê o trecho, dessa vez em voz alta:

“Alfredo entrou em sua bibliotoca de animal em extinção disposto a não pensar em Marina naquele dia. Mas como não pensar em Marina se fora ela quem batizara aquele cômodo?”

Depois de repetir a palavra estranha, olhar pensativa para o alto, voltar o rosto para o livro e percorrer novamente todo o caminho dos gestos em busca do ponto em que parou, a atriz retoma a leitura.


Prosseguirá, ora veloz, ora lentamente, com as expressões correspondentes aos entrechos, melancolia, exaltação, a tristeza que provocará lágrimas, a tensão que nos queimará de desconforto, a lascívia expressa num ligeiro mover de lábios com a língua insinuando-se entre eles, o erotismo que a levará a contrair as coxas, para nosso delírio mudo.


Júnia fecha o livro. Mantendo dentro dele o indicador esquerdo, levanta-se com a expressão de um cansaço agradável, apaga o abajur e deixa o palco pisando levemente.


Todo o sentimento até então contido nos faz levantar numa torrente de aplausos, assovios, gritos de “bravo!” ecoando uns sobre os outros, reverberação e eco do êxtase arrebatando também aqueles que permanecem sentados apenas para bater os pés com força no chão. Somos todos um feixe de satisfação, uma única espinha dorsal numa explosão de contentamento. Nossa manifestação é uma exigência: exigimos que a atriz volte ao palco.


Erguendo o livro cujo título é oculto por vistosa sobrecapa vermelha, ela volta triunfante. Aplaudimos, assoviamos e gritamos “bravo!” com mais vigor, retribuindo assim o silêncio e a paz com que Júnia Hilst nos envolveu no prazer da leitura durante uma hora e rigorosos sete minutos que nem vimos passar.



Francisco de Morais Mendes



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