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Leia texto de Silviano Santiago ao receber o Prêmio Camões 



SILVIANO SANTIAGO / FOTO: SOUBH

 

Sentimento clínico da história


ANELITO DE OLIVEIRA

 


A cerimônia de entrega do Prêmio Camões 2022 a Silviano Santiago foi o grande acontecimento cultural na República das Letras brasileiras neste 2023. O pronunciamento do autor na manhã de 14 de novembro na Biblioteca Nacional na cidade do Rio de Janeiro, que Sphera aqui publica com sua gentil permissão, dá a precisa dimensão de uma grandeza extraordinária.

Grandeza humana, em primeiro lugar; cidadã, em segundo; e só por isso literária, toda uma atitude insatisfeita, incomodada, perante a história que lhe confere um lugar singular no espaço contemporâneo. O escritor-crítico invulgar, que tanto contribuiu para a delimitação conceitual desse espaço, distingue-se dos apologistas gratuitos do contemporâneo exatamente por um sentimento clínico da história, capaz de apreender suas tensões medulares.

Silviano evoca dois rebeldes modernos, Arthur Rimbaud e Mário de Andrade, ambos afins do horizonte cognitivo deste periódico, como ícones de um mal-estar infindável numa civilização que não pode ser calado em nome de um suposto “walfare state” aportado no país em pleno Estado Novo! Um autor que sempre diz muito com pouco, revolve as entranhas da vida social delicadamente, e seu discurso de justíssima e demorada posse do Camões é mais uma prova disso.

Todo o vivido aqui e alhures, agora como sempre, num criador constelar, toca-lhe profundamente, e sua letra é expressão de uma comovente ética da responsabilidade, rara no país das convicções malandras. Em face dessa ética, nenhuma absolutização se sustenta, a começar por aquelas que animam estados-nações literários, os nacionalismos colonizantes, autoritários, pedras de toques do “mindset” hegemônico.

A comissão do Camões premiou não mais um autor brasileiro, responsável por uma inflexão pós-colonial  sem precedentes no campo literário lusófono em termos metaficcionais, mas uma voz órfã que clama destemidamente no deserto há seis décadas "com" os oprimidos, aquele que, emergindo da montanhosa geografia mineira, logrou desbravar, como poucos, libertários mares semânticos.

 


“Lanço os olhos para a infinita imensidade desse agora"


SILVIANO SANTIAGO

 


Ser contemplado com um prêmio literário da altitude do Prêmio Camões é motivo de autoestima e de grandes alegrias. A vida profissional do escritor, dedicada ao ensino da Literatura em universidades, somada à prática da crítica literária e cultural em periódicos e ainda à variada e expressiva produção artística em livros, estava sendo distinguida. Em Lisboa, o meu trabalho intelectual − disperso no tempo e no espaço − se unifica, em consequência de inesperada decisão de uma comissão de especialistas, aos quais envio os meus sinceros agradecimentos.

O intenso foco de luz camoniano realça, como se já tivesse chegado à condição de um todo, o trabalho do cidadão brasileiro e a sua entrega à educação, ao jornalismo cultural e à arte. Momentaneamente, eu, apologista da diferença desconstrutora, me reconheço indivisível e perco as contradições naturais de experiência existencial singular nos difíceis e complexos tempos, que nos coube viver.

Toda padronização de vida e obra, se explicitada por premiação vinda do alto, significa o minuto de uma avaliação jubilosa.

Mas o que realmente significou receber o Prêmio Camões no segundo semestre do ano de 2022?

A pandemia tinha instaurado o medo e a infelicidade no planeta. Desaparecem as cenas de multidão e se multiplicam as fotos de covas e de retratos de pessoas tristes e ensimesmadas. O silêncio e o caos tomam conta das famílias e das ruas que, no Brasil, padecem o descaso administrativo do Ministério da Saúde e do próprio governo nacional. Não há clima digno para ambientar e encorajar o fluxo da autoestima e da alegria sentido pelo cidadão brasileiro contemplado.

Nosso 2022 não será fácil de ser esquecido. Em todas e todos, da Mongólia à Patagônia, o ano deixou marcas à flor da pele e profundas.

No Brasil, o sofrimento anônimo e comunitário não foi diferente do sentimento íntimo, talvez tenha sido até mais intenso. Não há que nomear hoje todos os desastres mortais por que passaram nossos entes queridos. Os acontecimentos ainda são recentes e queimam nossa sensibilidade fragilizada. Nesta manhã, entre os presentes aqui na Biblioteca Nacional, as vidas humanas de então se assemelham a feridas abertas na memória coletiva e individual.

Ao final do ano de 2022, o resultado das eleições trouxe alento. Trouxe de volta ao povo brasileiro a possibilidade de se concretizarem no dia a dia a esperança e o sonho duma nação mais igualitária e solidária. Era urgente a reconstrução meticulosa de um país da América do Sul que esteve a perigo de desaparecer no caos.

Mas persiste o fato de eu ter recebido o prestigioso Prêmio Camões no segundo semestre de 2022. Ele se confundiu ontem com a parada momentânea da História nacional e universal numa “estação do inferno” (saison en enfer), para lembrar o célebre poema em prosa de Arthur Rimbaud. Tenho de cor as primeiras palavras do poema. Cito-as: “Sentei a Beleza nos joelhos e a achei amarga”.

E, refletindo minimamente, mais amarga me apareceu a Beleza poética no plano da literatura nacional.

A própria atividade profissional, a que o professor, o crítico cultural e o romancista tinham dedicado toda a vida estava sendo finalmente aberta para novas, mais abrangentes e mais esperançosas experiências artísticas que, num clamor por justiça, imputam um sentimento de culpa às gerações passadas, − à minha própria geração.

Desde o Renascimento europeu e as viagens transcontinentais, temos sido e ainda somos coniventes com uma das mais bem acolhidas e mais injustas civilizações implantadas no Sul pelo Ocidente. Uma civilização indígena do Novo Mundo tinha sido contemplada pela notável tradição ocidental e, no ambiente em que cotidianamente circulamos aqui e no estrangeiro, emergia uma dor secular. E havia também uma exigência de muitas e de muitos injustiçados, pouco ouvida. Na história nacional ouvia-se um grito amordaçado de mágoa. Séculos de sofrimento exigem hoje uma reparação urgente.

Repito-me. Aos 86 anos de idade, sentia-me momentaneamente unificado, como se todo o ontem estivesse a se concretizar num agora dionisíaco, e, no entanto, vivia como se a obra tripartida que construíra a tão duras penas, e que justificara a opção pelo meu nome e obra em Lisboa, fosse motivo menor de vaidade pessoal e bem-estar nacional; fosse, na verdade, motivo maior para eu me julgar um cara-pálida, a me somar a um arrependimento coletivo desejado, esperado, mas nunca concretizado.

Sim, a literatura brasileira que eu expressei e continuo a expressar em língua portuguesa está a ponto de passar por abalos sísmicos que serão duradouros. Foram desejados e esperados. Agora, são exigidos e são concretizados.

Bem-vindos sejam os novos protagonistas! Elas e eles ganham o palco pela força também secular da resistência e se representam humana e artisticamente por emoções e sentimentos originários e autênticos.

Sou premiado, mas estou parado nos versos recordados de Rimbaud. Ainda sento a Beleza nos joelhos e a acho amarga.

Piso novamente o chão natal e lanço os olhos para a imensidão do Brasil, enriquecido ao norte pelas águas caudalosas do Amazonas e banhado a leste pelo oceano Atlântico. Não me pergunto, afirmo que é chegado o momento de liberar a literatura brasileira às águas amazônicas e às atlânticas africanas e a todas as correntes diaspóricas.

As naves multiétnicas não ancoraram em Porto Seguro. Mas agora trafegam em liberdade pelas águas democráticas e cidadãs da década que se abriu em janeiro de 2022. Suas tripulações amazônicas, atlânticas e mediterrâneas só recebiam permissão para trafegar como cidadãs plenas se sob o comando dos dedicados etnógrafos (nacionais e estrangeiros), ou se sob a bandeira menor e suplementar de acervo folclórico ou de literatura oral brasileira.

Lanço os olhos para a infinita imensidade desse agora que vivo e vivemos e dedico o Prêmio Camões a Mário de Andrade, meu mestre.

Em 1942, proibido pelo Estado Novo de falar no auditório do Itamaraty, Mário lê, na Casa do Estudante do Brasil, o seu sofrido testamento sobre o legado do Modernismo brasileiro. Ao final, a reflexão ensaística do mestre se torna pessoal e se exprime por palavras que roubo no momento em que agradeço a presença ilustre de todas e de todos neste auditório. Repito as palavras de Mário de Andrade:


"E se agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida trabalhada, não me vejo uma só vez pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito lhe fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, não me satisfaz."


Muito obrigado.

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