Adriana Silveira

João com sua neta Antônia e o cão Marx. Crédito: Arquivo Família JPC.
Foram cerca de 45 anos convivendo com o João, uma honra e uma sorte. Tinha por volta dos 12 quando conheci o vizinho da minha amiga que namorava a prima dela. Era um pouquinho mais velho, o bastante para já estar cursando as faculdades de filosofia e psicologia, e passava algumas tardes treinando ser professor com a garotada disponível. Foi assim que muito cedo recebi dele aulas maravilhosas de literatura, verdadeiras viagens que nos levavam a aprender e a gostar de ler sem esforço algum.
Enquanto a adolescência me levava para a cena “disco”, João fazia outra faculdade, desta vez de história, lia, lia, lia, casou, teve uma filhinha linda chamada Joana. Aos 22, eu já era jornalista e meu amigo havia se separado da Mariana. A gente viajava às vezes nos finais de semana em que ele cuidava da filha. Aliás, por mais que eu viva acho que nunca vou encontrar um pai tão dedicado, amoroso, comprometido com a educação de uma filha como fez o João. Era tocante.
A delicadeza de alma era um selo em tudo que fazia. Na vida pessoal até os textos jornalísticos, sempre fluidos e interessantes. Mesmo quando esculhambava uma pessoa, fazia isso com elegância, citando autores e poetas indiscutíveis. A bordoada vinha e não se sabia exatamente de onde, e todo mundo concordava.
Princípios humanitários, ética, caráter, equanimidade eram inegociáveis. A peneira do João era implacável para quem ousasse olhar para o próprio umbigo antes de ver a dor do outro. Como ele dizia, “a gente tende a ficar do lado de quem está em desvantagem”. E esse tipo de empatia se aplicava à Ucrânia bombardeada, aos sem terra, aos indígenas, a todo tipo de minoria ou quem necessitasse de voz. Ele tava ali, atento e solidário.
Fazia o que estava em suas mãos. Não se furtava de qualquer esforço para ajudar alguém. Às vezes, eu desesperada com a situação política do país corria para o João querendo muito que ele me acalmasse. Não acalmava, mas me ajudava a ver a vida sob uma perspectiva histórica, sem perder a esperança de dias melhores.
Quando se tornou jornalista, acho que encontrou seu lugar. Com o domínio da palavra expressava sem dificuldade sua correção de caráter, dignidade, honradez e nobreza. Foi lindo, quando ao pedir demissão do jornal Estado de Minas por não concordar, por ética e compromisso jornalístico, com a censura imposta ao seu texto, ele deixou a redação sob aplausos e foi homenageado pelos colegas que, no dia seguinte, compareceram ao trabalho vestindo jeans e camiseta branca — marca registrada do figurino de João e de sua simplicidade, apesar de toda a sofisticação intelectual.
Foi rica a nossa trajetória: acompanhamos escola, faculdades, vida profissional, amizades e amores. Eu me casei, ele se casou de novo, com Cibele. Nos apadrinhamos nos casamentos, aprovamos carinhosamente e amamos os cônjuges um do outro, estando sempre em contato por mais que a vida nos levasse por caminhos diversos. Vi sua filha se tornar uma profissional digna de ser sua filha, se casar e ser mãe. Ele esteve nos batismos e festinhas dos meus filhos. Apesar do vazio que ele deixa em mim, foram tantos exemplos, tantas trocas de qualidade, que a toda hora sinto sua presença. Basta lembrar de alguma conversa, de algum texto, de algumas risadas compartilhadas, da boa mesa e dos copos que desfrutamos juntos, que minha alma se nutre pra continuar a caminhada. Salve João! Que esteja encantando em outro lugar.
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