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Foto do escritorRevista Sphera

Quatro poemas de Ronaldo Cagiano


Foto: Ozias Filho



A vida não tem métrica

Matéria inabitada,

o futuro não sabe nada de nós,

assim como reclamamos do passado

aquilo que a memória sabotou

em nossos corações esquivos


Pisamos o presente

como se fosse nossa dízima periódica,


esticamos as cordas para medir os desenganos;


e o resultado é nunca absorver o mínimo

de nossa máxima fugacidade.


Na autópsia do instante,

fósseis de um tempo natimorto

povoam as vísceras do pranto.




Álbum da infância

As palavras são para as ocasiões, o luto é quotidiano.

Manuel de Freitas



Em que cantos da casa

hiberna a furtiva sensação

do que fomos?


Só os mistérios e fantasmas

não dormem:

continuam a habitar

o álbum de família,

sem limites para o desacontecer.


As recordações

são palimpsestos que desvelo


na pátina dos móveis

no mofo que grafita estranhos seres

nas paredes

nos picumãs que resistem

sobre o fogão à lenha

ou no chiqueiro desabitado

que agora disputa com o vazio

os miasmas de tantos segredos.


Na velha Singer adormecida,

a hesitante linha atravessada na agulha

aguarda a tessitura do amanhã,

mas as mortes chegaram primeiro

farejando-nos com seu rumor de asas.

Todos partiram,

o cansaço visita os quartos

e digere a vida

e desse silêncio resta

inútil espólio:

os varais estão inertes,

a horta desidratada,

o pomar atacado pelo exército de bactérias,

não encontro palavras para descrever a tirania dessa hora

e nenhum alfaiate consegue amoldar a roupa para o meu luto feroz.


Entre o que vejo e sinto,

as teias de aranha,

testemunhas das estações,

denunciam o que já não me pertence.




Assimetria

A rosa insuspeita

(não importa se nascida da fatalidade

ou do arbítrio)

em sua fuga do caos

agride o desaforo do asfalto

e proclama seu lugar no mundo

em meio à coleção de esquifes


Os sombrios tempos

têm vergonha de sua exaurida verdade

diante da primavera

e suas flores subversivas

que derrotam a escuridão

afrontando a regência do medo


Entre cismas e cinzas

um pássaro irrompe ao longe

cativado pela inóspita floração

e esteriliza, com seu aparato veloz,

o desequilíbrio desse tempo

& implode

as redomas do caos




Antagonista

A palavra é a fogueira

que queima todos os horrores

nessa paisagem sem piedade

nem remorsos.


Atravessando desertos

& blasfêmias,

o poema não se submete

ao engano das miragens:


rio que atravessa

o mais fundo exílio,

espera o estuário,

para libertar-se

das margens opressoras,


interroga o insondável

que o espera,


seta antagonista

com sua atroz verdade,


arremesso contra a ferrugem

do tempo.


O

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