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Alphonsus de Guimaraens e o tensionamento dos limites por Francine Fernandes Weiss Ricieri

Atualizado: 10 de nov. de 2021

por Francine Fernandes Weiss Ricieri


Alphonsus de Guimaraens e sua esposa Zenaide


Não parece complicado recuperar a circulação, no pensamento dedicado à poesia no Brasil desde pelo menos o último quartel do século XIX (e ao longo do XX), de formulações, juízos, metáforas críticas ou teorizações remetendo a polarizações (ou dualismos) que apresentarão faces diversas, sem que se desviem de algumas balizas recorrentes. Poderia começar a discutir essas proposições dúplices a partir do volume O momento literário (1909), no qual João do Rio reuniu entrevistas divulgadas originalmente no jornal Gazeta de Notícias entre março e maio de 1905. Silvia Azevedo e Tânia de Luca, em edição recente (2019), apontaram questões de grande relevância quanto ao caráter polêmico daquelas intervenções, assinalando, ainda, as complexas relações entre imprensa e literatura, que se vinham então constituindo.


Um dos entrevistados, Pedro do Couto, jornalista de inclinações positivistas, instado por João do Rio a indicar os autores que mais teriam influenciado sua “formação literária”, recusa filiações, indicando apenas ter apreciado em alguns “o vigor da forma, a elegância do estilo” e, em outros, “o valor da tese estudada e o brilho com que era apresentada”. Em seu depoimento, mostra-se reticente quanto à existência de “escolas” literárias: “notam-se maneiras diversas de fazer, modos diversos de expor o pensamento” (1909; 2019: 160). De todo modo, sistematicamente, seu raciocínio estrutura-se por dualismos, apontando, em diferentes “indivíduos”, rigor ou desleixo formal; crueza de expressão (“como alguns compreenderam o realismo”) ou emaranhado de palavras (“procurando traduzir sentimentos dos chamados [...] nefelibatas”); vigor da forma ou inebriamento pela música verbal (1909; 2019: 160).


Couto nomeia, a certa altura, “entre os contemporâneos brasileiros” aqueles que sintetizariam as tendências indicadas: “Entre os poetas cultivadores da pura forma, ocupam lugares salientes os Srs. Alberto de Oliveira e Olavo Bilac; entre os modernos, salienta-se Cruz e Sousa” (1909; 2019: 160). O livro estrutura-se por meio da alternância de vozes (a voz de João do Rio e a de seus entrevistados; outras vozes recuperadas no espaço de cada depoimento transcrito) e, a propósito das formulações de Pedro do Couto, João do Rio se manifesta, distinguindo-o como “conhecido crítico”, a quem atribui “opiniões sensatas e cheias de discreta reflexão” (1909; 2019: 158).


O mesmo livro, páginas adiante, reportará as respostas de Félix Pacheco, “redator do Jornal do Comércio”, profissão que teria “a propriedade de desenvolver nos seus possuidores a hipertrofia da vaidade e uma altíssima noção dos próprios méritos” (1909; 2019: 196). As páginas dedicadas a Pacheco abrem-se com João do Rio apontando-o (e o tom é duvidoso) como “uma das figuras proeminentes do simbolismo”:


Em tempos que já lá vão, o bizarro poeta foi quase o sacerdote magno de uma igreja que tinha por Deus Cruz e Sousa. Era a época da nevrose. Os literatos andavam pelos jardins dos delírios, surgiam diariamente revistas em que o núcleo nefelibata esgrimia tendo na destra o cacete do desaforo mostrado com orgulho ao vácuo e, afivelado à sinistra, o broquel d’ouro da rima exótica. (1909; 2019: 195)


Que João do Rio polemize com João do Rio não é exatamente uma questão problemática. Parte dos depoimentos saiu progressivamente no jornal e a adesão ou antipatia momentâneas com relação aos entrevistados (ou citados) pode, talvez, justificar as oscilações entre admiração e olhar jocoso. Ainda assim, a aparente valorizaçãopositiva da visão de Cruz e Souza como moderno (e oposto à puraforma), no primeiro caso, parece entrar em alguma contradição com outra que o retrata (e a seus próximos) de modo caricato, situando-o em “jardins dos delírios” e apresentando-o às voltas com o “broquel d’ouro da rima exótica”. No conjunto de O Momento literário, contudo, a atividade literária aparece francamente associada à atuação na imprensa (que incluía tanto os entrevistados quanto o entrevistador e, por fim, a quase totalidade dos demais escritores mencionados) e não parece causar estranheza ao autor do livro o caráter combativo (que ele próprio assinala) das revistas nefelibatas, sua inserção em um espaço público, sua disputa pelo direito à voz formalizada no exercício da polêmica.

Nefelibatas em plena esgrima: na mão direita as armas de intervenção (ainda que chacoteada pela imagem do desaforo que se destina ao vácuo); na esquerda (e, trata-se, também de alusão francamente demeritória), os traços construtivos recorrentes no grupo. O raciocínio é, ainda, dual, mesmo que o conjunto da formulação arraste (sem ambiguidades) Félix Pacheco e afins ao espaço de exclusão que então (e ainda?), sabemos, era o que lhes cabia. A diferença de juízos talvez se deva mais, formulemos a hipótese, às diferenças de prestígio e às posições ocupadas por Pacheco e Couto naquele cenário público de letras.

A polêmica, a atividade na imprensa e outras formas de publicização são, de resto, constitutivas da atividade poética, naquele específico momento literário, em termos a serem explorados na sequência. Um cotejo dos depoimentos comentados com o conjunto composto no inquérito (ou com outras referências) permitiria pensar, ainda, em quais termos a poesia se tornava, por volta de 1905, objeto de discussão pública, admitindo como enunciadores e interlocutores privilegiados alguns poetas, sob mediação da imprensa e da atividade jornalística. O livro de João do Rio (e sua versão na Gazeta de Notícias) inscreve-se em uma prática que se havia tornado, na França, um específico gênero de escrita, como demonstram, entre outros, estudos de Marie-Ève Thérenty sobre a Enquête sur l’évolution littéraire (1891), do jornalista francês Jules Huret. Nesse caso, o título alusivo à idéia de evolução, segundo Daniel Grojnowski, indicaria, ainda, uma concepção do campo literário como espaço de disputas das quais sairiam triunfantes os mais adaptados, os mais fortes, os mais ferozes, em ritmo de darwinismo social (1891; 1984: 11).

Em um artigo publicado em 2016, Thérenty define a Enquête de Huret, como um protótipo que teria consagrado o modelo do gênero e aborda os antagonismos entre “as diferentes correntes literárias ou as diferentes personalidades do campo literário”, como o esboço de um “combate pelo controle da mediação e da comunicação”. Estaríamos diante da “sucessão de uma autoridade” (a literatura), para uma outra (a imprensa), que assumiria “o terreno da comunicação social” atribuindo-se função mediadora. Ao mesmo tempo, “essa comunicação, ao ser analisada em detalhes, e apesar de negá-lo”, apareceria “sempre também literalizada” (2016: 28).

Nesse sentido, tais práticas parecem evidenciar certo modo de mise en media (para recuperar o subtítulo do prefácio de Grojnowski), embates entre formas diferentes de autorização e legitimação, a formação de grupos seja por antagonismo seja por proximidade, a constituição e a interação com algum projeto de público (leitores) e, finalmente, a consideração de um espaço de circulação social do literário (cuja concepção se expande e se torna menos precisa) – espaço esse tornado comum e/ou apresentado como palco de divergências. Em todos esses casos, um sistema de valoração (eventualmente de hierarquização) dos objetos textuais em causa parece se constituir a partir do estabelecimento de uma abordagem polarizada ou dualista de consideração.

Em 2004, organizei um levantamento fragmentário e lacunar da atuação de Alphonsus de Guimaraens na imprensa, fosse como colaborador de jornais de ampla circulação, em São Paulo, fosse como criador e editor (ou também colaborador) de pequenos órgãos locais, espalhados pelas cidades em que o poeta viveu, no interior das Minas Gerais. A contribuição com poemas humorísticos, crônicas ou mesmo poemas, aparecia, naquele texto, indiciando “a necessidade de formação de grupos (de incentivo e confirmação mútuos) e a busca de meios materiais capazes de lhes conferir a presença concreta em um mundo sobre o qual aparentemente desejavam apenas sobrevoar” (2004: 302). Era, ainda, um modo concreto de inserção na vida social, como demonstraram estudos sobre a poesia humorística de Alphonsus (coletada e mantida em recortes por cidadãos comuns décadas após a morte do escritor).

Sem pretender esgotar a questão, aquele texto sinalizava a possibilidade de consideração dessa atividade na imprensa para uma possível abordagem histórica do percurso rumo à profissionalização das letras, no país. Tocava de passagem, ainda, em um aspecto que, desenvolvido, diria respeito à necessidade de problematização da proposição de um campo literário autônomo, no Brasil, mesmo após 1922 e o Modernismo Paulista, mas em especial no que diz respeito ao espaço de circulação social da escrita literária em fins do século XIX. Tanto Thérenty quanto Grojnowski, referindo-se às teorizações de Bourdieu em seu livro As regras da arte (1996), subscrevem o conceito de campo literário. Nos dois casos, ao me reportar a uma e a outro, o termo foi mantido quando da citação, mas destacado em itálico, para assinalar distanciamento teórico, considerando-se a perspectiva local. No caso exemplar, mas não exclusivo, de Alphonsus Guimaraens, certa dependência inerente aos jornais de província pode ser inferida das condições derivadas, entre outros fatores, do financiamento dos periódicos por políticos ou homens de poder, ao contrário do que estaria implicado naquela noção, que deriva principalmente da leitura que Bourdieu propõe de certa posição de autonomia discernível nas trajetórias de escritores como Flaubert e Baudelaire.

A despeito desse aspecto, Vera Lins (recuperando Luiz Edmundo de O Rio de Janeiro de meu tempo) tem enfatizado essa atuação paralela dos simbolistas: Mário Pederneiras, Lima Campos e Gonzaga Duque fundando Pierrot (1890) e Mercúrio (1898), “folhas pequenas e mais literárias”, depois Fon-Fon! (1907), “revista mais mundana, cheia de fotos, que durou mais tempo” e que anteciparia a revista Klaxon. A revista de 1907, já atualizaria o automóvel, metáfora do moderno, o repórter, chamado de chofer, e o título, que se confundia com o som da buzina” (2008: 60). Em diversos momentos, Lins (entre outros) tem deslocado o pensamento ao menos sobre o moderno (para não entrarmos na discussão do termo modernismo) tanto espacial quanto cronologicamente, vendo nesses poetas um elemento de dissidência e tomando-os como “críticos da razão moderna, a razão da técnica e da ciência”.

O trabalho dessa pesquisadora permite voltar às dualidades anteriormente mencionadas, como aquela que opunha escritor moderno e escritor adepto de arte pura. Na resposta a João do Rio, Pedro Couto indicava Cruz e Souza como associável ao primeiro caso e, ao segundo, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira. O mesmo João do Rio, contudo, páginas adiante enunciava um aparente paradoxo: simbolistas esgrimindo revistas em um palco de batalhas simbólicas, enquanto engastavam, em algum verso, o “broquel d’ouro da rima exótica”. Haveria outros paradoxos implicados na atuação dos simbolistas, como observou ainda Vera Lins no mesmo texto, recuperando Baudelaire (“lido por todos eles”) para abordar sua “crítica ao progresso e à imprensa”. A pesquisadora transcreve excerto do Mon coeur mis à nu (que teve sua primeira edição póstuma em 1887, com outro título) em que o poeta desfia impropérios quanto ao elenco de misérias do progresso e da civilização, finalizando: “Não compreendo que uma mão pura possa tocar num jornal sem uma convulsão de repugnância” (1887; 2010: 32). O mesmo Baudelaire, talvez não seja demais lembrar, que, em outros contextos, recusaria purezas as mais diversas.

Em texto de 2017, explorei, entre outros aspectos, ambivalências textualizadas por Cruz e Souza quanto à oscilação entre publicações em jornal e em livro (o que implicava algumas reticências quanto à avaliação da relação entre jornal e literatura). O poema em prosa abordado, “Sugestão”, organiza-se em torno da constituição de uma figura pública de poeta, que parece ironizar especificamente o contraditório imbricamento entre o que seriam os elementos formais muito elaborados de seu projeto de escrita e seu embate com os públicos (do público especializado ao leitor de jornal). Cruz e Souza põe em questão, ainda, as tensões entre fama e sobrevivência imediata, consagração e reconhecimento dos contemporâneos. Parece problemático, contudo (como em Baudelaire?), perder de vista certa impossibilidade de fixação destensionada desses elementos.

“Sugestão” se encerra com uma sobreposição algo caótica de vozes (anônimas) que se sucedem sem qualquer marca formal capaz de dissolver certa indecidibilidade quanto a tudo que antes se enunciou. Qual das vozes pode ser tomada a sério? Qual delas “perdeu” a disputa verbal? Houve ironia? O valor de um escritor que morreu será necessariamente deitado pela janela fora no mesmo gesto que expurga o suporte em que seus escritos se publicizaram? Jornais comportam resplandecentes pensamentos? Ainda que trate, no presente parágrafo, de questões não exploradas então, gostaria de aproximar “Sugestão” da reflexão em curso e retomar, ainda, recenseamento feito por Vera Lins da atividade simbolista em revistas. Ao analisar A Atheneida, de Trajano Chacon, ela explicita o que seria o viés da revista, que enfatizaria a arte e a imaginação:

Nela fala-se de arte moderna, do novo, citando Flaubert, Vigny, Gorki, Zola e Daudet, vendo elementos revolucionários da sua arte: desencavaram a alma de seu tempo e formaram a sensibilidade moderna. Que sensibilidade era esta? Diz o artigo de Camerino Rocha que há uma estética diferente: Machado, Bilac, Coelho Neto, Alberto de Oliveira tinham a visão plástica ou humorística da vida. A visão psicológica, apaixonada e comunicativa não era a característica dessas almas de puros artistas. Essa visão é a dos escritores novos. (2010: 23)


Novos, modernos e comunicativos seriam (a sequência do texto especifica ainda melhor) os simbolistas da revista Rosa-Cruz (entre eles, Cruz e Souza), Raul Pompeia, Paulo Barreto (aliás, João do Rio). Puros artistas (com visão plástica ou humorística): Machado, Bilac, Coelho Netto, Alberto de Oliveira. O itálico, ausente na publicação de Vera Lins, permite reincidir no problema em proposição. O raciocínio dúplice se reapresenta (chegando ao século seguinte): nefelibatismo versus parnasianismo; poesia pura versus poesia moderna. Parece curioso, contudo, observar como os mesmos poetas (e poemas ou livros) podem ser situados em um ou em outro desses extremos – o mesmo poeta pode ser absenteísta ou engajado, a depender da lente que o observa. Como Cruz e Souza: moderno em textos do XIX; poeta puro, em abordagens do XX.

Não é verdade que cada um desses polos seja sempre necessariamente valorado positiva ou negativamente (o que equivaleria a pressupor que possam ser imanentemente bons ou ruins): tudo depende dos atores envolvidos e de suas posições no espaço público das discussões em torno de cultura, literatura ou arte. Pode depender também da posição estratégica ocupada por um escritor ou por um projeto de escrita no concerto geral dos projetos poéticos em defesa ou em detração em momentos específicos. A análise das posições desses pares pode ajudar a localizar compromissos e ideários que acompanham (frequentemente em movimentos de ida e vinda) as trajetórias e as buscas ou impasses de um escritor ou grupo.

Pensar tais proposições não como oposições fechadas, mas como movimentos de ida e vinda talvez seja um caminho para a identificação de temporalidades e posicionamento menos estanques. No pensamento de Jacques Rancière, por exemplo, o tensionamento de eventuais dualidades leva à possibilidade alternativa de copresença dos heterogêneos:

A ideia de modernidade é uma noção equívoca que gostaria de produzir um corte na configuração complexa do regime estético das artes, reter as formas de ruptura, os gestos iconoclastas etc., separando-os do contexto que os autoriza: a reprodução generalizada, a interpretação, a história, o museu, o patrimônio... Ela gostaria que houvesse um sentido único, quando a temporalidade própria ao regime estético das artes é a de uma copresença de temporalidades heterogêneas. (2005: 37)


Ainda, para Rancière, duas formas de confusão derivariam de se ignorarem as contradições e copresenças constitutivas do regime estético das artes: uma diria respeito ao paradigma da autonomia; a segunda seria por ele designada como modernitarismo. No primeiro caso, a “revolução antimimética” levaria a um contexto em que cada forma artística afirmaria “a pura potência de arte explorando os poderes próprios de seu médium específico” - a linguagem desviada de seu uso comunicacional, no caso da literatura e, no limite, a noção de “arte pura”. No segundo, haveria a identificação das formas do regime estético das artes “às formas de execução de uma tarefa ou de um destino próprio da modernidade”. Esse paradigma poderia ser associado a Schiller e ao conceito de “educação estética do homem”, que o Romantismo alemão adotou como “programa”, identificando a arte ao projeto de fundar homens capazes de viver em uma comunidade política livre.

Ao pensar a arte como “partilha democrática do sensível”, Rancière o faz a partir da inclusão das dimensões do tempo e do espaço (do uso do tempo e da delimitação de lugares próprios ou impróprios) pelo artesão ou pelo cidadão comum, que passa a sair de seu lugar hierárquico e normativo de trabalho (aquele que lhe seria próprio) e a ocupar o espaço das discussões públicas em que se engaja como parte deliberante. Ou: ao pensar a arte como “partilha democrática do sensível”, Rancière não delimita essa partilha como algo que se atualiza em um tipo adequado de procedimento formal ou em um tipo aceitável de tematização ou assunto, podendo equivaler-se o esteta flaubertiano, as fórmulas românticas de decifração da sociedade, performances e instalações contemporâneas, poéticas simbolistas do sonho, a supressão dadaísta ou construtivista. Todas formas de inserção em um debate público.

As cartas podem ser outra relevante fonte para o pensamento sobre certa ética da escrita como intervenção e atuação em um espaço comum (coletivo e público). A mencionada Ênquete sur l’évolution littéraire (1891) é referida, já em abril de 1893, em uma carta dirigida por Alphonsus de Guimaraens a seu amigo Freitas Valle (Jacques d’Avray). Nessa carta, o poeta se apropria de um trecho da entrevista concedida por Mallarmé, em que o francês toma distância de certo descritivismoparnasiano e propõe uma noção de símbolo que parece fornecer a Guimaraens “a idéia perfeita do Simbolismo” (1983; 2002: 03). A estrutura da carta (que não reproduzo) parece muito eloquente: uma primeira frase é a promessa de levar aos amigos o volume que estaria em seu poder, enquanto as linhas seguintes efetivamente entregam à contemplação dos pares (antes que aquela promessa se cumpra) o trecho que está certamente entre os mais citados do livro (possivelmente o mais citado).

O diálogo com Mallarmé é, simultaneamente, um diálogo com confrades e a encenação de um espaço de disputas simbólicas (em disputa: concepções diferentes de recursos poéticos). É, ainda, a declaração de adesão refletida e ponderada a um ideário comum. Não por acaso, o parágrafo final da mesma carta menciona encontro entre Alphonsus e Coelho Neto (“que veio pelo País”) e uma curiosa tentativa de aliciamento de “aliados”: “Tenho estado com o Raimundo Correia, que é meu apreciador e se deixa estar desanimado a escrever versos, visto a nossa fase de poesia. Venha para o meu lado, disse-lhe eu; imodestamente como um chefe de escola. É esse luxo que vês.” (1893; 2002: 04) É um luxo, de fato, que o jovem poeta de 23 anos circule entre esses nomes: Mallarmé que apresenta sua definição de símbolo, Coelho Neto que representa importante jornal, Raimundo Correia talvez deprimido e oscilante quanto aos recursos de que dispõe. As cartas assinalam relações e indiciam mobilidades: transferências culturais, diálogos, hesitações.

Em outra carta, datada de 22 de outubro de 1918, Alphonsus de Guimaraens envia ao amigo Belmiro Braga dois poemas. Acusa, ainda, não ter recebido um item despachado, registrando as irregularidades do correio devidas à gripe espanhola. Em janeiro de 1919, pergunta ao mesmo Belmiro Braga se tem lido suas Crônicas de Guy d’Alvim no Jornal; envia versos franceses destinados a aparecerem na revista Fon-Fon! e a integrarem posteriormente a plaquette então inédita Pauvre lyre. Essa mesma carta elogia a seção Semana em que Braga se ocupara da “espanhola” e outra coluna por ele escrita “a respeito da morte do grande Bilac” (1919; 2002: 24).

Recuperar essas cartas permite abordar, ainda, a dimensão dos endereçamentos e entrelaçamentos que acompanham o gesto poético – quando alcançam e quando não alcançam seu eventual destinatário; quando submergem ou quando se sobrelevam às intempéries e pestes de cada momento. Em uma conhecida reflexão sobre leitura de poesia, Silviano Santiago começava por refutar aquela intransitividade associada por Jakobson à função poética da linguagem, fazendo-o nos seguintes termos: “a linguagem poética existe em estado de contínua travessia para o Outro” (2002: 53). O Outro, em maiúscula, figura naquelas páginas de Santiago como alusivo a um ser um tanto genérico, apanhado no título do ensaio pela expressão “Singular e anônimo”. Esse Outro seria, em primeira análise, o leitor: “O poema, sem ser carta, sem ser carta aberta, abre, no entanto, lugar para um destinatário que, apesar de ser sempre singular, não é pessoal porque necessariamente anônimo”. (2002: 53).

Um poema se enuncia, nesse sentido, como uma voz direcionada a um interlocutor hipotético, singular e anônimo, na expressão de Santiago, previsto como um tu, por sua vez contraparte necessária, no processo de constituição de uma específica ficção, a ficção de um “eu”. No poema “A cabeça de corvo” temos, já na estrofe de saída, a enunciação de uma situação de escrita na qual o leitor, cada um de nós, leitores, implicita-se como acompanhante, testemunha e, de algum modo, partícipe de uma cena em que uma voz se escreve:

“Na mesa, quanto em meio à noite lenta

Escrevo antes que o sono me adormeça,

Tenho o negro tinteiro que a cabeça

De um corpo representa”. (1902; 1960: 54)


A quem se dirige essa figura de um “eu” que flagramos em pleno processo de construção enquanto lemos o poema? Émile Benveniste alertaria para a constituição de um destinatário como inerente à possibilidade mesma de enunciação em primeira pessoa. Nesse poema, em específico, parece haver, ainda, uma certa distribuição dos lugares de alteridade que se vão sucedendo ao longo dos versos. Por um lado, já essa primeira estrofe nos situa, a nós leitores, por sobre o que seriam os ombros do poeta, buscando com os olhos um papel em que a cena do poema se processa - talvez essa imagem singular e anônima que o processo de enunciação, digamos, tecnicamente atualiza, coloca em cena. Por outro lado, esse preciso poema, em sua estrofe final, chama à cena outro procedimento de interlocução, incorpora uma terceira voz, em movimento já de franca hostilidade:

“Dizem-me todos que atirar eu devo

Trevas em fora este agoirento corvo,

Pois dele sangra o desespero torvo

Destes versos que escrevo.” (1902; 1960: 54)


Ao incorporar em seu tecido enunciativo também uma terceira pessoa (nem eu, nem tu, mas uma coletividade designada como “todos”), o poema (que representa uma cena de escrita) insere no processo criativo descrito (aliás, como um elemento de algum modo partícipe desse processo criativo) uma opinião, uma recomendação, uma sugestão (o que seja) que se oferece em contraposição em relação à própria cena que se enuncia. Deveria o poeta atirar trevas em fora os versos que flagramos em pleno processo de enunciação? A sugestão, digamos, emanada dessa terceira voz (de resto, uma voz plural), o que fazer dela? O que fazer com ela?

Esse elemento textual discernível em “A cabeça de corvo” não é excêntrico na poesia de Alphonsus de Guimaraens. Podemos vislumbrá-lo também no poema de abertura do livro Câmara ardente, cujo primeiro terceto edifica uma voz que tenta encontrar sua própria modulação envolta pelos sons de uma coletividade à sua volta. Coletividade dita distante, mas diretamente referida, presentificada, significada no corpo do verso:

“Longe da turbamulta que me cerca,

Eu fortaleça o coração vetusto

Para que nada do meu Ser se Perca (...)” (1899; 1960: 129)


Tanto em Câmara ardente, quanto em “A cabeça de corvo” uma voz se encena no cruzamento entre pelo menos dois tipos de acompanhantes (e já seriam três). Esquecendo o leitor (que poderíamos especificar de muitas formas), o poema linguisticamente prevê um destinatário, digamos, ideal ou amistoso, do qual a imagem de sujeito que o texto edifica se aproxima, talvez em gesto de cumplicidade. Paralelamente, temos a “turbamulta”, ou aquela imagem de um “todos” (que sugere algo como um tipo de renúncia à poesia). A voz que se enuncia, parece fazê-lo (enunciar-se) modelando-se ou modulando-se pela pressuposição de ouvidos cúmplices, mas também precisa se fazer resistindo ou silenciando essa perspectiva da qual se distancia (ou precisa temporariamente se distanciar em seu trabalho de luto).


Minha hipótese, inicialmente, é que o poema possa ser pensado como diálogo e abertura para a alteridade também no sentido segundo o qual uma obsessão pode ser mais firmemente constituída em territórios dissonantes. É certo que a poesia de Alphonsus de Guimaraens (e de outros poetas) convoca uma legião de amigos que operam, desde os procedimentos técnicos, na estruturação de uma escrita da pluralidade (do acúmulo de referências e vozes). Refiro-me (para além das marcas já mencionadas) a dedicatórias e epígrafes como aquelas do Setenário das Dores de Nossa Senhora ou de Câmara ardente, que colocam em cena “meu amigo diletíssimo Padre José Severiano de Resende” e Jacques D’Avray. Ou a Kiriale, em que o poema de abertura é dedicado a Horácio Bernardo Guimarães; o segundo, ao dr. Edmundo Lins e o terceiro, a Joaquim Soares Maciel Junior.

Parece dispensável um levantamento exaustivo para observar que epígrafes e dedicatórias compõem um amplo cenário mais ou menos letrado: somam-se camaradagens de letras ou a elas quase alheias. Jacques D’Avray e Severiano de Rezende, especificamente, são nomes que avultam pela comunhão de interesses e valores literários, ainda que não a eles restrita. Epigrafes e dedicatórias explicitam, ainda, um amplo repertório de mestres (sem qualquer amizade empírica), que se dissemina pelos poemas: nomes como Baudelaire, Mallarmé, Dante, Shakespeare. Essas e as demais alusões fazem-se acompanhar, por outro lado, de presenças como a de Edgar Allan Poe, que fornece a imagem de que se constitui um tinteiro, central à organização imagética do poema de Kiriale – para me referir a um único exemplo.

Mas, se é certo que se convocam amigos e mestres nessas páginas, nelas são também relevantes os movimentos de contraposição e oposição. Quanto a isso, parece elucidativo recuperar o “Padre Severiano de Resende”, um dos interpelados no inquérito elaborado por João do Rio, com o qual iniciamos esse percurso. Alphonsus de Guimaraens não é referido pelo organizador e sequer consta na lista dos que não atenderam à demanda de João do Rio. Severiano de Resende, contudo, lá está e oferece um testemunho performático e espetaculoso que a narração do jornalista se empenha em acentuar, a partir de uma linha muito tênue entre o que pode ser adesão ou um mais provável distanciamento irônico.

Um dos recursos mais eloquentes de O momento literário é o modo como o organizador alterna seus próprios comentários e inserções em discurso direto dos entrevistados. Os excertos em que fala o Padre são histriônicos, palavrosos, belicosos. E compõem uma perspectiva específica da sintaxe literária de então: “Na poesia Alphonsus de Guimaraens é um gênio, Bilac o primeiro, Raimundo e Alberto também primeiros, Luís Delfino é o incomparável nababo da poesia, Cruz e Souza teve influência (...)” (1905; 2019:175). Alphonsus aparecerá em outro momento, filtrado pelo narrador: “De novo, Severiano faz-me o elogio do prodigioso Alphonsus de Guimaraens.” (1905; 2019:176). Estabelecendo contrapontos (possivelmente com o próprio João do Rio) e polêmicas, Severiano confere, assim, precedência ao poeta ausente e enuncia sua própria ordem para a diversidade das peças em litígio.

No início desse texto, Pedro do Couto, inquirido pelo mesmo João do Rio, pensava a multiplicidade das práticas de escrita naquele momento como “maneiras diversas de fazer, modos diversos de expor o pensamento”. E João do Rio veiculava essa proposição apropriando-se temporalmente do espaço público do jornal e, depois, do espaço público do livro. Ainda Severiano de Resende, indagado sobre ser o jornalismo bom ou mau para as letras, lembrava “o estado atual da nossa cultura”, em que “é o jornal que se lê mais, e não o livro”:


Quem quiser, pois, fazer alguma coisa pela arte – extensivamente considerada – tem que ter um jornal em que escrever. Nem a revista nem o folheto preenchem a função do jornal, que é o que todos leem. O poeta ou o prosador que quiser ver a sua arte passar de coisa escrita a coisa impressa tem que se submeter ao jornal. O jornal é inevitável, precisamos sofrê-lo.

É ele que abrirá caminho ao livro, ou melhor, é ele que tem aberto caminho ao livro. Entretanto, para quem vive disto, de escrever para a imprensa, não há nada pior, como meio esterilizante e dispersivo. (1905; 2019:178)


Como Cruz e Souza, Severiano percebe o elemento paradoxal (já apontado, por exemplo, por um filósofo como Nietzsche) discernível no nexo entre a vida intelectual e as demandas específicas a certas formas de publicização do pensamento. Em consonância com essa percepção, a tentativa de fugir ao recorte fácil do pensamento dicotômico, parece implicar a possibilidade (poética ou crítica) de se postular o exercício público da prática poética como a participação em uma tribuna. Do puro ao impuro, do poema ao poema em prosa, da carta à polêmica em periódicos, do projeto coletivo de revista ao reclame antecipado de um livro, indissociando-se formas e normas, a proposta seria observar o puro no impuro, a mistura e o deslizamento, o escritor empírico e a cenografia autoral, o poeta que é crítico e o crítico que poetiza. Seja de uma perspectiva política, seja de uma perspectiva estética, seja do inevitável imbricamento entre ambas, o que se encena são instâncias concebidas em relação. Ancoradas, ainda, no objetivo de tensionar dicotomias, em busca de algum pensamento complexo.

Ler Alphonsus de Guimaraens, portanto, como ler qualquer poeta, pode (segundo projetos peculiares de leitura) significar mais ou menos do que ler seus livros de poemas. Ou do que ler principalmente seus livros de poemas. O que se tentou ler, neste texto, foi o delineamento de certa ética da intervenção da escrita, permeando poemas, opções midiáticas, escritos paralelos. Nesse contexto, Alphonsus, bem como alguns de seus contemporâneos, em sua paradoxal atividade em revistas ou periódicos (mais ou menos) literários pareceu de algum modo participante de um sonho assim enunciado por Severiano de Resende naquela entrevista: “Que belo não seria haver aqui no Rio um jornal em que um grupo de artistas mostrasse que é ainda pelo jornalismo que, entre nós, poderia um esteta viver e trabalhar, iluminando almas e arejando espíritos. É o meu sonho em breve realizável.” (1905; 2019:179).



Referências


Bourdieu, P. (1996). As regras da arte. São Paulo, Companhia das letras.

Grojnowski, D. (1984). Préface: l’évolution littéraire et sa mise en media. In Jules Huret, Enquêt sur l’évolution littéraire. Vances, Les Éditions Thot.

Guimaraens, A. (1960). Obra completa. Organização Alphonsus de Guimaraens Filho. Rio de Janeiro, Aguilar.

Lins, V. (2008). Em revistas, o simbolismo e a virada de século. In Fon-Fon! Buzinando a modernidade.Organização Eliane Corti Basso.Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa.

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