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Um conto de France Gripp

A rosa de Santiago


Eu estava saboreando um mote con huesillos na esquina da rua Paseo Puente, e admirava a cidade. Pêssego e grãos de trigo, nunca imaginei que se combinassem tanto. A bebida gelada surpreendeu-me agradavelmente, o que acrescentou mais uma nota de amável expectativa ao passeio. Santiago estava ensolarada, e o calor da tarde tornava ainda mais fervilhante a Plaza de Armas, tomada por turistas estrangeiros. Era minha primeira vez no Chile.

Entrei em um trem urbano e fui conhecer uma vinícola nos arredores. A paisagem de vinhedos, bela e serena, estendia-se como um manto de felpas verdes de comprimentos idênticos. O tempo da colheita estava próximo.

À entrada da vinícola, agreguei-me aos muitos visitantes que lá estavam, e fomos percorrer parte da enorme plantação de vinhas.

Os arbustos baixos, enfileirados a curta distância, estavam carregados de cachos que pendiam entre as folhas como se disputassem entre si, o lugar de dar a face ao sol. As uvas, de coloração vermelha muito escura e arroxeada, exibiam-se. Os bagos estavam intumescidos; não sei por que me lembraram pequeninos mamilos.

Próximo a mim, estava outra turista, uma jovem de uns vinte e poucos anos. Eu a vi abaixar-se rente aos galhos, como muitos de nós o fizeram, e arrancar e pôr na boca dois bagos, três bagos, quatro. Mas, de repente, ela passou a arrancá-los a mãos cheias, com pressa, mesmo aos arrancos, mal saboreando-os, e deixando o caldo escorrer até o queixo. Surpreendida pela cena, não pude evitar um aberto sorriso. Até pensei que ela tivesse se intimidado com minha presença, mas pelo visto, não, pois somente estancou a degustação quando notou que um grupo se afastava, tangido pela voz cadenciada do guia da excursão. Então atirou longe os restos dos cachos destroçados, passou o dorso da mão nos lábios, e lançou-me um olhar de desprezo.


Depois saiu com a cabeça empinada.


Achei curioso aquilo, engraçado. Por que ela devorara às uvas com aquela sofreguidão? Estaria faminta, a moça? Sem dinheiro a esse ponto? Achei pouco provável, mas, de todo modo, tinha sido uma atitude inusitada.

Enquanto percorríamos adegas e salas de degustação, passei a observar a jovem, dissimuladamente. Nada em sua aparência, se destacava. Com certeza, ela não era brasileira; acreditei que pudesse ser de qualquer uma das nacionalidades sul-americanas. Não era feia, nem bonita; era morena, e parecia se esconder debaixo das roupas largas e sobrepostas e sem graça; andava calada o tempo todo. Em resumo, não era um tipo de pessoa sobre quem recairiam suspeitas de que viesse a agir de acordo com um impulso meio selvagem, como o que eu presenciara. Se eu contasse a alguém, provavelmente duvidariam.

Aquele incidente tinha beliscado a minha imaginação, essa era a verdade. A figura me pareceu possuir um quê de personagem, e eu andava precisada de um enigma, por menor que fosse. Coisas estranhas sempre eram boas para render histórias. Enfim, para quem quer mistérios, sempre pode encontrar um, pensei. Ainda mais quando se está vagueando em férias. E segui degustando vinhos e reparando a moça. Outro fato estranho poderia estar para acontecer.

E veio a hora em que a visitação se encerrou. Como eu não estava acompanhada naquele passeio, podia alterar rotas, demorar-me mais, ou menos, até mesmo seguir um grupo de excursão à distância, despistadamente. Descobri que minha candidata a personagem também estava sozinha e, por sorte da minha pretensão, deveríamos usar o mesmo transporte para regressar à cidade.

Entramos no trem, e me fiz de desinteressada de todos. Só que, a caminho, a paisagem da cordilheira dos Andes fisgou por completo meu olhar fascinado, e eu viajei naqueles cumes. Quantas infinitas epopeias poderiam ser escritas por causa deles, suspirei... Realmente, me esqueci da garota, que nem devia ter vida interessante, afinal. E aí me veio a ideia de que era pura tolice, sintoma de tédio, ir atrás dela com a desculpa de buscar inspiração para personagem. Ora, tudo mundo sabe que inspiração não é coisa que se deixa perseguir, muito menos apanhar.

E lá estava a moça, algumas fileiras adiante, com seu descorado chapeuzinho de turista, mochila surrada no colo e cara fechada, tipo não sou deste mundo.


Desembarcamos. Se bem me lembro, estávamos na região de Pirque. O guia fez todos atravessarem algumas ruas. Ela foi também. Despistei e fui atrás, até o local onde ele parou para informar que deveriam se dispersar para fazer o que desejassem, incluindo retornar aos hotéis. Eu a perdi de vista. Apertei os passos e localizei-a pela mochila nas costas, mais à frente do pessoal da excursão. Fiquei atenta para que não me notasse.


O sol ainda estava alto, embora fossem quase 19h. As calçadas estavam repletas de transeuntes. Vendedores ambulantes, a maioria mulheres, acompanhadas de crianças e adolescentes, ofereciam bijuterias, enfeites femininos, ornamentos para casa, especialmente flores artificiais coloridas, armazenadas em grande cestos.

Eram umas rosáceas espetadas sobre finas hastes. De relance pude perceber que eram confeccionadas em papel crepom e tinham diâmetro de quinze a vinte centímetros. Muito grandes e muito vistosas, em suaves tons pasteis. Que lindas flores, pensei, eu quero uma; mas minha suposta personagem caminhava rapidamente e não se interessou em parar para apreciá-las. Pela inspiração sim, ou não, continuei.


As vitrines estavam convidativas, e muitos turistas quase se atropelavam para entrar nas lojas. Aquela aglomeração era boa para me deixar camuflada. Fiquei com vontade de entrar também, mas tinha uma tarefa, e precisava me concentrar. Tarefa é algo que sempre faço questão de cumprir; exceto quando não é possível, é claro. Segui em frente.

A bem da verdade, eu já estava com certa tendência a largar mão de emular a vida alheia. Primeiro, ficcionalizar em meio da ociosidade do turismo, é desanimador. Segundo, a bisbilhotice tinha como propósito, a escrita de meus desalinhos e, como tal, se posta à descoberto, poderia não terminar em boas falas. Teria deixado isso de lado se ela, porém, não me surpreendesse novamente, e muito.


A moça caminhava em direção à estação de metrô, batendo o solado dos tênis como se fossem botas de soldado. Então, de repente, parou. Eu também parei e, mesmo a certa distância, vi que curvara um pouco a cabeça e estava chorando! Agora, ela chorava alto, sacudindo os ombros, deixando escorrerem as lágrimas à vontade, o nariz a se envermelhar...

Ao contrário da figurinha que se atirara às uvas na vinícola e saíra da cena com altivez, era outra pessoa. Nem tentava disfarçar. Que situação...Fiquei constrangida e preocupada, acredite. Dei alguns passos em direção a ela, mas me detive. Ali, estava-se diante de um sofrimento real, não era ficção, coisa cortada e costurada de palavras. Eu não tinha o direito de abordá-la assim.

O que teria acontecido? Briga com o grande amor? Súbita crise existencial? Dispensa do emprego? Perda de um ente querido? Nossa... Tantos eventos poderiam ser a causa. Tomara não fosse trágico, pensei. Posicionei-me de lado, de frente para uma das bancas de ambulantes, de modo que pudesse manter o olho nela.

Intrigadíssima, as perguntas me fervilhavam na cabeça. Por quê? Como as ações se encadearam de modo a produzirem aquela explosão emocional? Certamente, haveria um antagonista, quem? Melhor dizendo, por que a moça personagem sofria? E agora, o que vai acontecer? Eu deverei intervir? Melhor explicando, o narrador deverá participar?

Neste momento borbulhante, reconheci como ridícula, minha pretensão em tratar o caso como se a jovem fosse deveras uma personagem. Afinal, eu não era a autora da cena que assistia.


Além de tudo, não a conheço, pensei; e sou estrangeira; aliás, parece que ambas somos, mas ela fala espanhol, e por isso tem mais afinidades com os da terra, que eu. Bem, isso não teria nada a ver, pois, caso eu pressentisse que ela estivava para se lançar contra as rodas dos automóveis, certamente eu avançaria em sua direção e a seguraria pelos braços! De modo algum deixaria tal coisa acontecer diante de meus olhos. Em seguida, chamaria a polícia, sei lá... Alguém, com certeza, iria me auxiliar nesta hora. Mas isso não ia acontecer, me tranquilizei.


Então, de repente, em questão de segundos, olhei, e minha quase personagem não estava lá, onde estava antes. Botei de volta na mão do rapaz, o pano de copa que ele insistia em me vender, e me arranquei, desculpando-me. Não era possível que, exatamente no momento em que a moça estava imersa em prantos, eu a abandonasse. Entrei com pressa no meio da multidão e logo pude localizá-la, felizmente.

Ela avançava acelerada, prestes a entrar no acesso ao metrô subterrâneo. Parecia não mais chorar. Tivera uma boa notícia? Encontrara a solução para o problema amoroso? Uma placa informava que era a seção de embarque para Las Mercedes, começo da rota para Los Leones.

Entrei logo depois dela. Só assim, indo atrás, eu teria chance de obter mais algum detalhe para compor minha personagem. E talvez até, me aproximar, à parte de qualquer intenção, claro. Já que ela estava tão triste, poderia, quem sabe, aceitar uma amizade.

A escadaria para as plataformas da estação era mais extensa que supus, e estava imersa na sombra escura forjada pelo contraste com a claridade exterior. Agora eu já não me importava se ela me visse; me sentia como hipnotizada. Aliás, certamente ela me vira, pois constatei a expressão dura que ela levava na face congestionada. Ignorou-me, o que não me importou em nada. Ela moderou o passo, e eu fiz o mesmo.

Da escadaria principal, saíam outras escadas, e nos patamares se postavam pequenos grupos de ambulantes, que também vendiam as flores de papel; azul e verde, rosa e amarelo, lilás e cinza. De cima, tinha-se a visão de um pequeno mar de rosas espraiadas, seguras nas mãos de jovens e senhoras de rostos oblongos e cabelos lisos e pretos, que se faziam incansáveis em seu trabalho de oferecê-las.

Tive o ingênuo desejo de que a jovem parasse para admirar algumas; talvez assim, mirando aquela singela beleza, sua sensação desgostosa pudesse se atenuar. Entretanto, conforme o sábio adágio de alguém, coração dos outros é terra que ninguém pisa. Ela se desviou das flores abruptamente, até com certa violência, e prosseguiu marchando para o embarque.

Então, vi que um daqueles rapazes vendedores, ergueu pescoço, olhou-a de novo e sacudiu a cabeça como se tivesse se recordado de algo, repentinamente. Apanhou depressa algumas rosas no cesto, saltou degraus e patamares, e correu atrás dela. Contendo o fôlego, tocou de leve seu braço e, com um gesto de esmero, estendeu-lhe a outra mão com três rosas coloridas, acompanhadas destas palavras:

_ Señorita, Ricardo Eliezer quiere que tome estas flores como prueba de mucha amistad y cariño.


Fiquei atônita, enquanto vi minha candidata a personagem dar um sorriso maravilhoso, abraçar as rosas e entrar no trem, em êxtase. Desapareceu.

Nunca poderia imaginar tal desfecho. Completamente surreal, alguns diriam. Eu deveria tê-la seguido no trem, mas não tive tempo para raciocinar. Quis perguntar ao rapaz das rosas, quem era Ricardo Eliezer, mas ele disparara escadas acima, em correria. Em vão tentei localizá-lo na estação. Eram muitos os vendedores e os passageiros. Foi uma pena.


Consolou-me um pouco, a rosácea feita de papel crepom em dupla face, linda, nas cores azul e violeta, que trouxe de lembrança de Santiago.



France Gripp

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