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Um conto de Péricles Prade

Atualizado: 2 de jan.

PAS DE DEUX

Desde criança revelava profunda paixão pela dança. Precoce, além de dançar com elegância, perturbava os pais, nos finais de semana, para levá-lo assistir aos espetáculos no Teatro Municipal, localizado perto de casa.


No começo, a mãe era compreensiva e carinhosa. Achava essa insistência normal, passageira, tanto que sempre estava disposta para atendê-lo. O pai, no entanto, demonstrava certa irritação com os pedidos reincidentes.


Quando completou dezoito anos, mudaram de postura, comunicando-lhe que, sendo dono do próprio nariz, não iriam mais atendê-lo. Preconceituosos, disseram-lhe, sem cerimônia, que não suportavam os trejeitos comprometedores dos bailarinos.


Diante dessa mudança radical, abandonou a casa, à noite, quando todos dormiam (inclusive Hermann, seu gato de estimação), pondo na bolsa apenas um agasalho para aguentar o frio do inverno tardio.


Como sabia tudo sobre os melhores bailarinos russos (Rudolf Nureyev, Mikhail Baryshnikov, Serguei Diaghiley, Vaslav Nijinski, Vladimir Vassilev, Alexander Godunov, Yuri Grigorovich e outros), além das bailarinas (Anna Pavlova, Natalia Makarova, Maya Plissetskaia, Tamara Karsavina, Natalia Osipova, Svetlana Zakarova etc), assaltou um banco, encapuçado, transportando dinheiro mais do que suficiente para comprar uma passagem rumo a Moscou.


Chegando na capital, de imediato procurou Serguei Pavlovitch Diaghilev (Serge para os íntimos), notável empresário artístico que fundou o Ballets Russes e estimulou muitos pupilos como mecenas.


Sabendo, por informação prestada na pensão onde se instalou, que Serge era homossexual (pública e notória sua amorosa aventura com o célebre Vaslav Nijinskvi), aproveitou-se desse fato para aproximar-se de pessoa tão generosa. Era bonito e achava que poderia agradá-lo.


Não fora informado, porém, que, muito embora tivesse aquela inclinação (várias foram as suas ligações dessa natureza), jamais confundiu os relacionamentos. Colocava a Arte acima das opções sexuais. Para ajudar aqueles que o procuravam, punha sempre o talento em primeiro lugar.


Teria que convencê-lo de outro modo. Admitiu, e com razão, que o melhor caminho seria acompanhar a trajetória de um artista exemplar, aprender com ele, mesmo à distância, sentindo e compreendendo todos os seus movimentos.


Escolheu, como ícone, o maravilhoso Rudolf Nureyev, que, além de extraordinário bailarino, era excepcional coreógrafo. Colou nele até junho de 1961, quando esse gênio da dança, durante a turnê do Balé Kirov, em Paris, pediu asilo no aeroporto de Le Bourget, iludindo os seguranças soviéticos.


Essa atitude, verdade seja dita, não o complicou em hipótese alguma.


Nessa altura, ausente o deus dos palcos no país, sabia o fundamental, assim pensava, para tentar novo encontro com Serguei Diaghilev.


Enorme foi a frustração. Reprovado, no primeiro ensaio, concluiu que não tinha a mínima chance de realizar o seu sonho. Movido pela vingança, mesclada com inveja, mudou totalmente o foco de sua vida. Agora, todos os bailarinos e bailarinas seriam seus inimigos.


Sei que uma pergunta vos aflige. Por quê estou relatando esses fatos? Simples a resposta: porque fui procurado por ele, há poucos dias, para auxiliá-lo nessa sinistra empreitada. O motivo de eu ter sido contatado também é singelo. Havia colocado um anúncio no jornal, colocando-me à disposição para, resguardada a mais absoluta confidencialidade, resolver qualquer problema.


O jovem, impaciente, bateu três vezes na porta do meu escritório (a campainha estava quebrada). Já havia dado meia-volta, ao desistir, quando o chamei pelo nome. Olhou-me, ressabiado, mas entrou na sala como se fosse atraído por uma força irresistível.


Ao notar que o susto passara, falei, para deixá-lo mais à vontade, sobre as últimas notícias veiculadas nos jornais, realçando a publicação do recente livro sobre Rasputin, responsável pela queda do império dos Romanov, segundo alguns desavisados historiadores.


Não tive sucesso na tentativa de agradá-lo, pois o visitante demonstrava evidente desconforto ao ver, sob o porta-chapéus, alguns potes de sangue fresco. Talvez não tenha suportado o cheiro ou receasse que seria obrigado a bebê-lo. Ou, então, não se conformava com as minhas pernas em gancho, imaginando-se capturado por elas.


- Fique tranquilo.


- Estou um pouco nervoso, só isso. Ainda não sei quem é o senhor.


- Sou Kaspar Rudiguer, o penúltimo dos vampiros.


O desmaio foi instantâneo.


Recuperou-se logo, deu dois saltos, e tentou fugir. Atordoado ao ver que eu levitava, quis pular e não conseguiu.


- Não se espante. Nosso encontro não é fruto do acaso. Acompanho-te há tempo, todos os dias, desde que decidiste ser um bailarino famoso.


Voltei ao chão com extrema delicadeza, e lhe disse em tom paternal:


- Foste escolhido para ser o meu discípulo. Estou velho, doente, preciso descansar. Não tenho mais ânsia para representar com dignidade os meus ancestrais. Deves conhecer com urgência o túmulo onde repouso. O lugar é belíssimo. A cripta é muito bem cuidada. Até orquídeas vermelhas nela são lançadas por alguém que me ama. Tens quase todas as virtudes para me honrar. Falta apenas uma delas para consagrá-lo meu filho adotivo.


Não o hipnotizei, asseguro-vos. Veio até mim, com naturalidade, sorrindo. Deu-me um beijo na face direita. Ajoelhou-se, segurou as minhas mãos trêmulas. Puxando-me quase ao chão, estendeu o pescoço com visível afeto, oferecendo-o para a inevitável mordida.


Antes de me despedir, ensinei-lhe tudo que sabia. Por exemplo, como se proteger dos caçadores (sempre surge um em busca de fama), esconder com habilidade os dentes, tratar os necromantes sem reserva mental, conservar bem as mortalhas, repelir os líderes messiânicos, impedir a decomposição, manter-se íncubo, escapar dos raios de sol, consumir também cérebros vegetarianos, aprender a sugar sangue de melhor qualidade, voar quando é absolutamente necessário, sair do caixão sem alarde , confortar mulheres que choram , além de um sem-número de truques desconhecidos dos pobres mortais.


Dei-lhe, depois dessas lições, um abraço afetuoso, aquele do tipo que conforta todas as gerações.


Antes de desaparecer, sussurrei, em seu ouvido esquerdo, com alegria:


- Lembre-se, querido. A vingança compensa. Há muito sangue para ser drenado neste mundo. Os bailarinos te esperam e serás o melhor deles na prazerosa hora do pas de deux.


Não preciso dizer, creio, que, de longe, muito longe, continuei a protegê-lo, aplaudindo o seu universal sucesso.



*


Este conto integra a coletânea inédita do Autor Teia de prodígios, a ser publicada brevemente.

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