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Foto do escritorRevista Sphera

Versos orfélicos: Raimundo Carvalho traduz Metamorfoses de Ovídio

Representação de Orfeu, o lendário poeta-músico da tradição grega, mito estruturante da ideia ocidental de poeta e poesia. Desenho: Internet

Orfeu, Metamorfoses, X-XI, 66, de Ovídio


TRADUÇÃO RAIMUNDO CARVALHO


Livro X 


Dali, no éter imenso, envolto em cróceo manto,

afasta-se Himeneu e à costa dos Cícones

vai e em vão é chamado pela voz de Orfeu.

Lá esteve; porém, nem palavras solenes

nem rosto alegre, nem feliz augúrio trouxe.                                     5

A tocha em punho estrila ao fumo lacrimoso,

sem fazer fogo algum, mesmo sendo agitada.

O fim foi pior que o auspício. Enquanto a nova esposa

vagava pela relva seguida por Náiades,

morreu picada por serpente no calcanhar.                                         10

Após muito chorá-la, junto à brisa etérea,

o vate Rodopeu ousou descer às trevas

do Estige, pelas portas Tênaro também;

Por entre leves simulacros de sepultos,

chega a Perséfone e ao senhor do reino horrendo                            15

das sombras, e vibrando as cordas, canta assim:

"Numes do mundo situado sob a terra,

para o qual, nós, e tudo que é mortal, descemos,

se é lícito e deixeis que, sem falsos rodeios,

dizer o vero, não desci até aqui                                                         20

pra ver o opaco Tártaro e atar as três goelas

eriçadas de cobras do medúsio monstro;

Venho por minha esposa, em quem calcada víbora

veneno inoculou, abreviando-lhe os anos.

Quis suportar, não negarei tê-lo tentado.                                          25

Venceu  Amor, deus célebre em regiões etéreas

e aqui talvez; auguro que também o seja.

E se a fama do antigo rapto não for falsa,

vos uniu o mesmo Amor. Nestes locais medonhos,

do ingente Caos, por este amplo e silente reino,                               30

retecei, rogo, o fado apressado de Eurídice!

Tudo está em dívida convosco, e logo mais,

cedo ou tarde, chegamos à mesma morada.

Pra cá tendemos todos, nosso último abrigo.

 Tendes reino longuíssimo ao gênero humano.                                 35

Também ela, madura, os anos completando,

será vossa. Só peço o dom de desfrutá-la.

Porque se os fados negam vênia à esposa, é certo

eu não voltar: com a morte dos dois alegrai-vos."

Dizendo tais palavras e movendo as cordas,                                    40

almas exangues choram. Nem Tântalo onda

em fuga alcança, e a roda de Íxion pasmou-se,

Nem aves comem fígado, vagaram urnas

Bélides, em tua pedra repousaste, Sísifo.

É fama que as Eumênides, vencidas pelo                                         45

canto, de pranto o rosto regam. Nem rainha

ou rei das profundezas se negam ao súplice

e Eurídice, que estava entre as sombras recentes, 

chamam. Ferida, em passos lentos ela veio.

Ela e a sentença aceita o Rodopeu Orfeu,                                        50

Não olhar para trás, até que dos Avernos

vales saia: ou inúteis dons não têm futuro.

Em silêncio, percorrem uma via íngreme,

árdua, obscura, densa de caligem opaca,

e não estavam longe da face da terra;                                               55

Temendo a perda e ávido por vê-la, ele,

amante, o olhar volveu; logo ela cai pra trás;

tendendo os braços para pegá-lo e ser pega,

nada a infeliz agarra, exceto o ar arisco.

Já de novo ao morrer, coisa alguma do Cônjuge                              60

queixou. (Queixar de quê? senão de ser amada?

Disse um último adeus, que ele mal pôde ouvir,

e de novo voltou para o mesmo lugar.

Orfeu, com a dupla morte da esposa, aterrou-se

qual quem, temendo, viu as três goelas do cão,                                65

com cadeias ao meio, o medo não deixando-o,

antes de ter o corpo em pedra transformado;

como Óleno, que o crime de outro se imputou,

ou qual tu, confiada em tua formosura,

ó infeliz Letéia, corações outrora                                                      70

tão juntos, hoje pedras sobre o Ida úmido.

Em vão, rogou, querendo atravessar de novo;

o barqueiro afastou-se; sete dias ele,

esquálido, à margem se sentou, sem dons de Ceres;

nutriu-se de paixão, da dor da alma e de lágrimas.                           75

Queixando dos cruéis deuses do Érebo, alçou-se

ao Ródope alto e ao Hemo impelido por Áquilos.

Pela terceira vez, Titã o ano encerrara

sob aquíferos Peixes, recusando Orfeu

toda femínea Vênus, por funestos males                                           80

ou por fidelidade; mas muitas ardiam

por unirem-se ao vate e sofriam repulsas.

Foi ele que ensinou os trácios transferir

a tenro moço o amor, e antes da juventude

colher as flores de sua breve primavera.                                           85

Havia uma colina e no alto dela um campo

planíssimo cobria-se de verde relva.

Faltava sombra, quando ali sentou-se o vate,

filho de deuses, e vibrou sonoras cordas,

trazendo a sombra: vêm árvore da Caônia,                                       90

bosque de Helíades, carvalho de altas frondes

finas tílias, faia e o inupto loureiro,

as frágeis aveleiras, freixos para os dardos,

os abetos sem nós, o azinho assim de frutos,

o plátano festivo, o bordo em cores díspares,                                   95

salgueiros ribeirinhos, e o lótus aquático,

o buxo sempre verde, esbeltos tamarindos,

o mirto bicolor e o louro de azuis bagas.

Também viestes, heras flexípedes, junto

a vides com seus cachos revestindo olmeiros,                                  100

freixos floridos, pinhos, medronho de rubro

fruto e flexíveis palmas, prêmio a vencedor,

e o pinheiro de fronte alta e porte hirsuto,

à mãe dos deuses grato, se é verdade que Átis

amante de Cibele, em tronco endureceu-se.                                     105

Com esta floresta uniu-se o cônico cipreste,

árvore agora, antes jovem favorito

do deus hábil nas cordas do arco e da cítara.

Pois, consagrado às Ninfas de Carteia, havia

um cervo, cujos chifres enormes cobriam                                         110

sua própria cabeça com espessas sombras.

Os chifres refulgiam de ouro e o belo colo

e as espáduas colares de gemas ornavam.

À testa tinha um medalhão de prata preso

a finas fitas, desde que nascera; pérolas                                            115

brilhavam das orelhas sobre as cavas têmporas;

este, livre do medo e natural pavor,

as casas freqüentava e oferecia o colo

às carícias até de mãos desconhecidas.

Contudo, mais que a outros, era grato a ti,                                       120

Ciparisso, o mais belo de Céos; às pastagens

novas e a fontes claras, o cervo levavas;

tu, flores várias, entrançavas-lhe nos chifres,

ou, montado em seu dorso, alegre conduzias

por toda parte, a terna boca em rédeas púrpuras.                              125

Era verão, e o sol, meio-dia, queimava

os braços curvos do costeiro Caranguejo;

cansado, na relvosa terra o corpo pôs

o cervo e se refresca  sob arbórea sombra.

Neste, o imprudente Ciparisso aguda lança                                      130

fixou e, vendo-o morrer com golpe atroz,

quis morrer. Que consolo não lhe disse Febo,

e que sofresse a dor na proporção da perda,

aconselhou! Mas, ele geme e pede aos deuses

o dom supremo de prantear o tempo todo.                                        135

Já o sangue esvaiu-se em torrente de choro,

os membros começaram a ficar verdes

e o cabelo, há pouco sobre nívea fronte,

em hórridas madeixas converteu-se e, rijo,

de fina fronde, o céu estrelado contempla.                                       140

Gemendo triste disse o deus: “pranteado por nós,

prantearás outros e na dor serás presente”.

A tal bosque atraíra o vate e, em meio às feras

e à multidão de aves, estava sentado.

Depois que dedilhou com o polegar as cordas,                                145

e sentiu que, embora soassem diversas,

as notas se afinavam, entoa este canto:

Com Júpiter, mãe Musa, ( tudo cede a Júpiter),

o nosso canto inspira; o poderio de Júpiter

sempre cantei; e, em plectro mais grave, os Gigantes                      150

e os raios vencedores nos campos de Flegra.

Agora em lira mais leve cantemos moços

prediletos de deuses  e moças de impróprias

paixões tomadas e punidas por luxúria.

Outrora o rei dos deuses frígio Ganimedes                                       155

amou e achou-se algo que Júpiter quisesse

ser em lugar do que era:  e em ave alguma digna-se

transformar-se, a não ser na que suporta os raios.

Sem demora, batendo no ar as falsas asas,

raptou o ilíade, que agora em taças serve                                         160

néctar a Júpiter,  a Juno constrangendo.

A ti também, Amíclida, alçava ao céu Febo,

se os tristes fados lhe tivessem dado tempo.

Mas és eterno; quanto a primavera expulsa

o inverno e Aires sobrevém a aquoso Peixe,                                    165

tanto nasces e flores tu na verde relva.

Mais que a todos, meu pai te preferiu, e Delfos,

centro do mundo, careceu de guardião,

enquanto o deus andou pelo Eurotas e Esparta

sem muros; sem cuidar de cítara ou de setas:                                   170

deslembrado de si, levava as tuas redes

e os teus cães, através de montes escarpados

e a longa convivência nutria-lhe a flama.

Já quase ao meio do percurso o Titã ia,

e era igual a distância entre uma noite e outra;                                 175

eles livram de veste o corpo untado de óleo

de oliva e no certame de amplo disco medem-se.

Sopesando-o primeiro, Febo aos altos ares

o lançou e rasgou as nuvens com seu peso.

Longo tempo depois, caiu na terra sólida                                         180

o peso,  evidenciando a arte unida à força.

Logo, imprudente, agindo pelo ardor do jogo,

se apressava o Tenárida em pegar o disco;

que, repelindo, a dura terra relançou

em teu rosto, Jacinto. Iguais empalidecem                                       185

rapaz e o deus que ampara teu corpo caído

e ora te anima, ora seca a triste chaga,

aplicando ervas para reter a alma em fuga.

Nada pôde fazer, a chaga era incurável.

Tal quando alguém esmaga em regado jardim                                 190

violetas, papoula e lírios amarelos,

que, murchos, pendem logo a cabeça incapaz

de se suster e o solo com as corolas miram;

assim, jaz o semblante do moço, e, sem força,

o seu pescoço pesa e tomba sobre o ombro.                                     195

“Morres, ebálida, na flor da juventude”            

Febo diz, “vejo tua chaga, minha culpa.

Tu és minha dor e crime; minha destra a morte

tua inscreveu, sou eu o autor de teu trespasse.

Qual meu crime, porém? a não ser que se possa                                          200

chamar de crime ter brincado e ter amado.

Pudera, bem mereço, em teu lugar morrer,

ou contigo! Mas, já que nos prende o destino,

sempre estarás comigo, honrado por meus lábios.

Lira à mão, para ti soarão os meus cantos                                        205

e, flor nova , o meu choro imitarás com  letras.

Tempo virá no qual um fortíssimo herói

se tornará tal flor, com nome inscrito em folhas.”

Enquanto Apolo diz isso com veros lábios,

eis que o sangue escorrendo em terra, tinge a relva,                         210

deixa de ser um sangue e nasce flor  mais nítida

que a púrpura de Tiro, qual lírio, se não

purpúrea fosse a sua cor e argêntea a deste.

Isso não basta a Febo, (autor da homenagem);

ele inscreve seu choro em folhas e AI AI,                                        215

funestas letras, tracejou naquela flor.

Nem envergonha Esparta ser pátria a Jacinto,

sua honra perdura e a cada ano voltam

as Jacíntias, cortejo de vetusta pompa.

Mas, se Amatunte, rica em metal, indagares                                    220

se engendrar quis Propétides, renegaria,

como aqueles que outrora com dois chifres àspera

fronte tinham; daí vindo o nome Cerastas.

Havia às portas destes ara a Jove Hospes,

que, ignaro do crime, manchada de sangue,                                     225

o ádvena visse, ali imolados creria

tenros bezerros e cordeiros de Amatunte;

um hóspede sangrou. Com o sacrilégio irada,

alma Vênus, cidade e campos da Ofiúsa

quis deixar. Mas, "que falta meus gratos locais                                230

cometeram? Que crime" disse "há entre eles".

Com exílio essa gente ímpia expie a pena,

ou com a morte ou algo entre a morte e a fuga.

E que tal pena é, senão mudar de forma?"

Enquanto pensa em que os mudar, aos chifres volve                       235

o olhar e concluiu que podia deixá-los;

e os corpanzis transforma  em torvos marruás. 

Porém, ousando, Vênus, obscenas Propétides

negam ser deusa; e, em vista da ira do nume,

Primeiras a vender seus belos corpos, dizem;                                   240

Pudor cessando, o sangue à face endureceu,

E, sem mais, converteram-se em rígida pedra.

  Pigmálion, vendo-as vida de crime levando,

Triste com os muitos vícios que à femínea mente

A natureza deu, vivia em celibato,                                                    245

E há muito carecia de consorte em cama.

Entanto, com admirável arte, em marfim níveo

Esculpiu formosura, com a qual mulher

Nenhuma nasce; e de sua obra enamorou-se.

A face tem de virgem veraz, que crês viva,                                      250

E, se não impedisse o pudor, moveria;

Tanto a arte em arte oculta-se. Admira-a Pigmálion,

Peito haurindo o calor do corpo simulado.

Mãos sempre à obra leva, tateantes, vendo

Se é um corpo ou marfim; marfim não é mais, julga.                       255

Beija e beijado crê-se; fala-lhe, abraça-a,

E acredita que os dedos penetram-lhe a carne

E teme que a pressão lhe provoque livores;

Ora carícias faz, ora lhe traz presente

Caro a meninas, conchas, pedrinhas polidas,                                   260

Passarinhos e flores de mil cores, lírios,

Bolinhas coloridas e  lágrimas  de árvore

Das Helíades; orna os membros com vestidos,

Nos dedos põe anéis e ao pescoço colares;

No peito põe cordões, na orelha leves pérolas.                                 265

Tudo lhe assenta; e nua não é menos bela.

Coloca-a em leito tinto com concha sidônia

E chama-a de sócia de cama, o pescoço dispondo-lhe

Em moles plumas, como se ela as sentisse.

De Vênus o festivo dia em toda Chipre                                            270

Celebravam e reses de chifres dourados

Caíam, golpeadas em nívea cerviz,

E o incenso ardia; oficio cumprido, aos altares

Veio e tímido: “Deuses, se tudo podeis,

Peço-vos” (não ousando “virgem de marfim”                                  275

Dizer) Pigmálion disse: “uma à de marfim símile”.

Vênus áurea que estava em sua festa entendeu

A prece, e, como augúrio de uma deusa amiga,

A chama acesa alçou aos ares por três vezes.

Quando tornou ao simulacro de menina,                                          280

Recurvo em leito a beija; pareceu-lhe tépida.

De novo a boca encosta e o seio as mãos tateiam;

O marfim amolece ao contato e à pressão

Dos dedos cede, como a cera do Himeto

Ao sol derrete e ao polegar assume muitas                                       285

Formas, e com o uso mais útil se torna.

Espanta-se e se alegra dúbio, e o engano teme,

De novo o amante com a mão seu bem tateia;

É corpo; pulsam veias sob o polegar.

Então o herói de Pafos profere pleníssimas                                       290

Palavras, graças dando a Vênus; e enfim boca

Boca não falsa preme, e a virgem os beijos dados

Sentiu, e enrubesceu e, olhar tímido à luz

Alçando, ao mesmo tempo o céu e o amante viu.

A deusa assiste às bodas que fez; e, formando                                 295

Chifres lunares  nove vezes disco pleno,

Aquela gerou Pafos, que à ilha deu nome.

Dela nasceu Ciniras que, não fosse a prole,

entre os felizes poderia ser contado.

Horrores cantarei; pais! filhas! afastai-vos!                                      300

Se meu canto tocar de leve as vossas mentes,

 não me deis fé, nem credes se tratar de um fato,

mas, se credes no fato, crede então na pena.

E se isso à natureza pareça aceitável,

Com a gente Ísmária, nosso mundo, congratulo-me,                        305

e com essta terra, longe daquela região

que tal horror gerou. Seja rica em amomo,

canela, costo, e incenso extraia da madeira,

e, além das outras flores, a terra Pancaia

a mirra extraia. Tanto custou a nova árvore.                                     310

Negou-te as suas flechas o próprio Cupido,

Mirra, e isenta as suas tochas desse crime.

Com estígio tronco e inchadas cobras te insuflou

uma das três irmãs. É crime odiar o pai:

Crime maior que o ódio é este amor. Seletos                                   315

nobres querem-te, e  todos os moços do oriente

disputam o teu tálamo. De todos, um

elege, Mirra, exceto um só dentre esses todos.

Ela sente e repugna, sim, nefando amor,

e pensa: "Aonde a mente me leva? que tramo?                                320

Deuses, rogo, Piedade e as sacras leis dos pais,

proibi esta torpeza e impedi o meu crime,

se for crime. Porém, a condenar se nega

a  Piedade este coito, e os animais se enlaçam

sem distinção. Nem se tem como torpe a rês                                    325

pai suportar no lombo; o potro esposa a filha,

penetra o bode as crias,  e a ave, daquele

de cujo sêmen foi concebida, concebe.

Felizes são quem isso pode! O zelo humano

malignas leis criou e o que é natureza                                              330

leis invejosas negam. Mas há povos, dizem,

em que tanto à mãe filho, como filha ao pai

se unem, e cresce a Piedade em duplo amor.

Mísera sou, pois não me coube ali nascer,

que  azar este lugar! Por que isso revolvo ?                                      335

Esperança interdita, foge! Ele é digno

de ser amado, como pai! Não fora eu filha

do grão Ciniras, com Ciniras dormiria.

E, porque já é meu, não é meu, e é meu mal

essa proximidade:estranha, eu mais podia.                                       340

Queria ir daqui pra bem longe da pátria,

fugindo ao crime; ardor ruim  retém o amante,

pra que, vendo Ciniras, eu lhe fale, toque

e o beije, se mais nada me for concedido.

Algo mais podes esperar, ó virgem ímpia,                                        345

e quantas leis e títulos confundes, sentes?

Serás rival de mãe e adúltera de pai?

e a irmã de teu filho e mãe de teu irmão?

Não temes as irmãs coroadas de atras cobras,

que,  com tochas que aterram os olhos e a face,                               350

os corações maus veem? Enquanto teu corpo

resguardas do nefando, em mente não violes,

com cópula proibida, as leis da natureza.

Pensas querê-lo, isso é vetado. Ele é pio

e puro. Oh! que nele arda o mesmo furor!"                                      355

Disse, e Ciniras, a quem dignos pretendentes

dificultam a escolha, quer saber da mesma,

dentre os nomeados, qual ela quer pra marido.

Ela se cala então,  o olhar paterno encara,

ardente, e os olhos banha de tépido orvalho.                                     360

Crendo Ciniras que isso é  virgíneo temor,

tenta secar-lhe o choro, beijando-lhe a face.                

Mirra demais se alegra com os beijos e instada

sobre que  homem lhe serve, "um igual a ti" disse.

Ele, entendendo mal, a louva e "és tão pia                                       365

sempre" afirma. Ao ouvir o nome da Piedade,

a virgem baixa a fronte, cônscia de seu crime.

Meia-noite, os cuidados e os corpos, o sono

dissolve. E a vígil virgem Ciníria por fogo

indômito e furioso elã é consumida.                                                 370

E desespera, e quer tentar, e tem pudor,

e deseja, e não sabe o que fazer; qual tronco

grande ferido por machado, e ao golpe último,

cambaleia hesitante e  a todos amedronta:

assim  muito ferido o espírito varia,                                                  375

 lá e cá, leve, e move-se  para os dois lados.

Não há termo, nem pausa pro amor, só a morte.

A morte apraz. Ergueu-se e manda atar as fauces

a um nó, atando a cinta na viga mais alta,

"Ciniras caro, adeus, entendes minha morte"                                   380

disse enquanto adaptava o laço ao colo pálido.

O rumor das palavras aos leais ouvidos

da nutriz que vigiava à porta chegou, contam.

A velha abre a porta e, vendo os instrumentos

da morte anunciada, grita ao mesmo instante,                                  385

se fere e rasga o peito e despedaça o laço

arrancado ao pescoço. E, livre pra chorar,

abraçou-a, inquirindo sobre o enforcamento.

Muda a virgem, imóvel olha para o chão,

e dói-lhe a suspensão de sua morte lenta.                                         390

Insiste a veilha, cãs e seio seco à mostra,

pelo berço e primeira mamada suplica

que fale o que lhe dói. Alheia à pergunta,

 ela geme. A nutriz se dispõe a inquirir

até o fim e ser fiel. "Diz-me", insiste, e "me deixa                           395

te ajudar. Não é vã a minha senectude.

Se for furor, sei quem, com erva e encantos, sane-o;

se é feitiço, serás purgada em rito mágico;

se for ira de um deus, ira oferenda aplaca.

Que mais supor? Tua casa e tua fortuma estão                                 400

a salvo e em ordem. Vivem teu pai e tua mãe."

Mirra, pai escutando, suspiros deu do imo

peito. A nutriz ainda não concebe em mente

nada nefando, mas pressente algum amor.

Tenaz suplica que o que quer que seja, diga,                                    405

e em regaço senil a lacrimosa acolhe

e, estreitando-lhe os membros com seus débeis braços,

"eu sei", afirma, "amas, (não temas) terás

meu apoio e jamais teu pai saberá disso."

Saltou do abraço furibunda, e diz, no leito,                                      410

 de bruços, "sai, te peço, e  mísero pudor

poupa"; e rediz " sai, ou desiste de buscar

o que me dói, é crime o que saber laboras"

Horror! A velha ergue, de medo, as mãos trêmulas

e de joelhos suplica aos pés de sua pupila                                        415

e ora a afaga, ora a  aterra, se não contar tudo,

e ameaça denunciar o laço e a tentativa

de morte, prometendo apoio ao seu amor.

Ergue a cabeça Mirra, as lágrimas imundam

o peito da nutriz e tenta confessar,                                                    420

mas prende a voz e a face corada com a veste

cobre e "Oh" diz "Feliz minha mãe com seu cônjuge!"

só isso e geme. Gélido terror penetra

(pois, sentiu) membros e ossos da nutriz e as alvas

cãs eriçam no topo os rígidos cabelos.                                              425

E pra banir, podendo, o horrível amor,

muito diz, mas a virgem vero o aviso sabe,

preferindo morrer, se não fruir esse amor.

"Vive", diz a nutriz, "terás teu...";" pai" não ousa

dizer e, muda, firma a promessa a um nume.                                   430

Festa anual de Ceres pias mães celebravam,

na qual, velando os corpos com níveo vestido,

dão coroas de espigas, primícias dos frutos,

e,  em nove noites,Vênus e o viril contato

têm por proibidos. Conta-se na turba Cêncreis,                                435

mulher do rei, que os sacros arcanos frequenta.

Assim que leito é livre da esposa legítima,

a ardilosa nutriz, vendo Ciniras bêbado

de vinho, expõe com falso nome vero amor,

louvando a bela. À idade indagada da virgem,                                 440

diz, " igual Mirra." Após a ordem de levá-la,

volta pra casa e diz: Alegra-te, pupila,

 vencemos" Infeliz, não sente em todo peito

a virgem alegria, e agouro o peito entrista;

mas se alegra, tanta é a discórdia na mente.                                     445

Era o tempo em que tudo se cala e entre os Triões

curvara o carro, com timão oblíquo, Bootes:

Ao seu crime ela vem. Foge, áurea, do céu

a lua, negras nuvens obscurecem os astros:

É  noite atra; primeiro o rosto encobres, Ícaro,                                 450

e , sacra Erígone, de  pio amor ao pai.

Três vezes tropeçou, voltando atrás, três vezes

piou letal presságio a funérea coruja.

Vai, e as trevas da noite aplacam o pudor;

A sinistra a nutriz segura, a destra a trilha                                        455

cega tateia. Assim que toca o vão do tálamo,

logo a porta abre, logo é levada pra dentro:

Mas seus curvos joelhos tremeram, fugiu-lhe

a cor, e o sangue, e o ânimo perde no avanço.

Quanto mais próximo do crime, mais se aterra                                460

e arrepende, e podendo, voltaria incógnita.

A velha leva-a, hesitante, ao alto leito

 e, como se a entregasse, diz "Ciniras, toma,

"ela é tua!" e os corpos execrandos une.

Aceita o pai no leito obsceno as próprias vísceras,                           465

 o temor virginal alivia e a acalma.

Quiçá até pela idade, chamou-a de "filha",

e ela de "pai", e ao crime os nomes não faltaram.

Prenhe do pai, do tálamo sai, e impio sêmen,

fruto de crime, porta em seu útero horrendo.                                               470

Noite seguinte o crime duplica e não finda,

E Ciniras, querendo conhecer a amante,

Após concubinato, a luz focando, vê

o crime e a filha; a dor as palavras retendo,

retira da bainha a espada reluzente.                                                  475

Mirra foge; nas trevas de uma noite cega,

da morte se livrou. Vagando em amplos campos,

a palmífera Arábia e a Pancaia deixou;

Erra por nove voltas dos cornos da lua,

quando,  esgotada, para em terra de Sabá.                                        480

Ela, indecisa, e mal sustendo o peso do útero,

entre o medo da morte e o cansaço da vida,

prostrou-se em preces: "Numes, se há algum, abri-vos

aos que confessam,  mereci e acato o triste

suplício. E pra que os vivos não viole vivendo,                               485

ou os mortos morrendo; evitai-me os dois reinos

e,  mudando-me,  vida e morte me negai.

Um nume atende a que confessa, pois com ùltimos

votos obteve deuses. Ao falar, às pernas

a terra sobreveio, e através de unhas rotas,                                       490 

pende oblíqua raiz sustendo o alto tronco,

os ossos viram pau, sempre ao centro a medula,

o sangue é seiva, os braços longos ramos tornam-se,

dedos os curtos, vem da pele a dura casca.

Já  árvore crescendo preme o grave útero,                                        495

e o peito encobre, quase a ocultar o colo,

sem tolerar demora, ela adentra o lenho,

abaixa-se e submerge seu rosto na casca.

Mesmo perdendo com o corpo antigos sensos,

ainda chora e tíbias gotas manam da árvore.                                    500

Lágrimas de honra, mirra, exsudada da casca,

o nome tem da dona e nunca há de calar-se.

E em tronco cresce, fruto da infâmia, o infante,

e busca uma via, abandonando a mãe,

pra sair: grávido incha-se na árvore o ventre.                                   505

O peso encurva a mãe: pra dor não tem palavras,

nem, parturiente, voz para invocar Lucina.

Mas, igual a quem dá à luz, recurva, a árvore

dá gemidos frequentes, úmida de lágrimas.

Doce Lucina está junto aos ramos dolentes,                                     510

e, as mãos movendo, disse palavras puérperas.

A árvore entreabre-se e, rompendo a casca, vivo

expele o peso, e o infante chora; em branda relva,

Náiades o ungiram com maternas lágrimas.

Mesmo Inveja a beleza dele louvaria,                                               515

pois semelhava aos corpos desnudos de Amores

pintados; mas, pra não lhes distinguir o aspecto,

a uns acresce leve aljava, de outros tira.

 Desliza oculta e engana a volátil idade,

e nada é mais veloz que os anos. Ele, filho                                      520

da irmã e do avô, há pouco recôndito em árvore,

Inda há pouco nascido infante formosíssimo,

Já é um jovem, e homem mais formoso que antes:

Já a Vênus apraz, vingando ardores mátrios.

Pois, enquanto o menino arqueiro a mãe beijava,                             525

ínscio, roçou-lhe o peito com saliente flecha.

Ferida, a deusa o filho repeliu com a mão.

A chaga era mais funda do que parecera.

Tomada pelas formas do homem, Citereia

já não cuida de Pafos, cercada de praias,                                          530

nem de Cnido piscosa e amatunte metálica;

Abstém-se até do céu,  e ao céu prefere  Adônis.

Retém-no e segue-o; e habituada sempre à sombra,

a cuidar da  beleza dele, pra aumentá-la,

pelas serras, florestas e sarçais vagueia,                                           535

veste acima do  joelho, ao modo de Diana,

e incita os cães; e os bichos de presa segura,

lépidas lebres, cervo de chifres excelsos

ou corça, encalça: abstém-se dos javalis fortes,

o lobo predador, o urso armado de garras,                                        540

e os leões saciados de rebanho evita.

A ti também, que os temas, adverte-te, Adônis,

se é útil advertir,  "sê forte com quem foge,

contra audazes, audácia", diz,  "não é segura.

Não sejas, jovem, temerário e paz me trazes,                                   545

feras que a natureza armou, não acometas;

tua glória não me custe caro! Idade e face

que agradam Vênus, não agradarão leão,

porco hirsuto, nem olho e coração de feras.

Tem o acre javali raio em aduncos dentes,                                       550

e é  violenta a ira dos fulvos leões,

raça que não me apraz." Causa inquirida, diz:

"Eis prodígio admirável de uma antiga culpa.

Porém labor insólito já me cansou,

e  um choupo nos atrai, propício, à sua sombra,                               555

e em leito de erva apraz-me descansar contigo"

e descansou na grama, inclinada sobre ele,

de costas, a cabeça no colo do jovem,

assim contou, palavra e beijo intercalando:

Talvez ouvistes sobre uma tal, que, em corrida,                               560

varão veloz vencia; e esse rumor fábula

naõ é, pois, os vencia; nem dizer podias

se em dons dos  pés ou da beleza mais brilhava.

Instando um deus por cônjuge, ele diz: "Conjuge

não te serve, Atalanta. Foge de ter cônjuge!                                     565

Porém não fujas, de ti mesma privarás".

Temendo a predição, inupta em selva opaca

vive e a instante turba de procos violentos

afugenta, dizendo: Não serei possuída

por nenhum homem, a não ser por quem me vença

na corrida. Com os pés rivalizai comigo:                                         570

Como prêmio ao veloz se darão noiva e tálamos,

a morte ao lento .  Esta é  a lei do certame.

Ela é cruel, mas a beleza vale tanto,

 que, mesmo assim, a turba temerária veio.

 Sentou-se, olhando, Hipômenes, corrida iniqua,                             575

"Quem através de tais perigos busca cônjuge?"

disse, enjeitando os loucos amores dos jovens.

Quando, deposto o véu, viu o rosto e o corpo dela,

qual meu ou qual teu corpo, se fêmea tornares,

pasmado, ergueu as mãos: "Oh! perdoai-me", disse,                        580

"vós que há pouco culpei. Ainda não notara

o prêmio que buscáveis". Louva e um fogo arde-lhe,

querendo que nenhum rapaz corra tão rápido,

de inveja teme. "E por que naõ tentar a sorte

 também neste certame?" Ele se pergunta.                                       585

"Quem ousa um deus ajuda". Enquanto vem a Hipômenes             

tais ideias, com passo alado, voa a virgem.

Embora mais veloz que uma flecha dos Cítios,

parecesse ao rapaz Aônio, a formosura

mais lhe admirou. Correndo faz-se mais formosa.                           590

A brisa lhe repuxa os laços dos pés rápidos,

e em dorso ebúrneo lhe esvoaçam os cabelos,

também as franjas que lhe adornam os joelhos;

e o seu corpo à candura de moça um rubor

somava, como quando sobre os brancos átrios                                 595

véu purpúreo reveste as sombras simuladas.

Enquanto ele observa tudo,  acabou a corrida,

e atalanta, triunfante, em festa em coroada.

Os vencidos gemendo a pena imposta pagam.

Mas o rapaz não teme o sucedido a eles,                                          600

fica de pé no meio, e o olhar na virgem fixo,

'Por que busca honra fácil superando fracos?

Comigo aposta!' disse. 'Se a sorte potente

me fizer, pejes não, venceu-te um grão varão:

pois, Megareu de Onquesto é meu pai, o avô dele                           605

é Netuno e bisneto sou do rei das águas,

Meu valor vale a estirpe: terás, se venceres

Hipômenes, um grande e memorável nome'.

Ao que falava a Esquênia com semblante amável

olha e hesita se quer vencer ou ser vencida.                                     610

E assim disse 'Que deus iníquo aos belos quer

perdê-lo, e ordena enlace aspirar, perigoso

à cara vida? Julgo que não valho tanto.

Não me toca a beleza de le (até podia),

pois é só um menino, me comove a idade.                                       615

Quanto valor num peito sem temor à morte?

Que ele descenda em quarto grau do rei dos mares?

Que me ame e valore tanto as nossas núpcias

até a morte, se a dura sorte me negar-lhe?

Enquanto podes, moço, evita cruento tálamo:                                  620

meu enlace é cruel. Casar contigo muitas

querem, e podes ser opção de  sábia moça.

Por que zelo por ti, se tantos já morreram?

Veja e morra! pois, pela matança dos outros

advertido, assim mesmo ruma contra a vida.                                    625

Portanto, morrerá quem quis viver comigo

e indigna morte tem como preçoo de amor?

Que a vitória,a inveja não atraia a mim.

Mas não é culpa minha. Que desistir queiras,

ou, já que és um demente, que mais veloz sejas.                              630

Que virgínio semblante em rosto pueril!

Melhor jamais me visses, ó Mísero Hipômenes

És digno de viver. Se eu fosse mais feliz,

e o fado inoportuno não me obstasse as núpcias,

contigo só o leito eu dividiria.                                                          635

Dissera; quando ingênua, tocada por Cupido,

ignorando o que faz, ama e não sente o amor.

Já  pai e o povo exigem a mesma corrida,

quando, em súplice voz, a prole de Netuno,

Hipômenes, me invoca: 'Citerea, assista                                           640

minha audácia e o fogo que me concebeu".

Brisa amiga me trouxe as suas brandas preces;  

Tocada estou, confesso, e sem demora, ajudo:

Existe um campo que os nativos chamam Tâmaso,

o melhor chão de Chipre, que a mim os antigos                               645

sagraram e a meus templos este dote deram.

No meio da planície, rebrilha uma árvore,

de fulva copa e ramos crepitantes de ouro.

De lá vindo ao acaso, três frutos dourados,

por mim colhidos, trouxe sem que ninguém visse,                           650

só Hipômenes, a quem ensinei como usá-los.

As tubas soaram, e ambos, curvados, a barra

pulam e com pés ágeis, mal triscam a areia;

Pensarias a passo seco o mar roçarem

e alva messe adentrarem sem dano às espigas.                                 655

Dão ânimos ao jovem o clamor, o aplauso

e as vozes da platéia: agora, agora, apressa-te,

Hipômenes! Agora usa a força toda;

Avante, vencerás! Talvez o herói megário               

mais se agrada, ou a esquênia virgem, com tais ditos.                     660

Quantas vezes, podendo passá-lo, deteve-se

a olhar seu rosto e, sem querer, pra trás deixou-o!

Árido hálito saia-lhe da boca,

e a meta estava longe; então, um dos três frutos

da árvore o bisneto netúnio lançou.                                                  665

Pasmou-se a virgem e, anelando o fruto nítido,

deixa a corrida e o ouro volúvel recolhe.

Passou-a Hipômenes e aplaude-o a plateia.

Célere, ela corre, sem demora a rota

corrige e o jovem deixa de novo pra trás.                                         670

E de  novo, atrasada por segundo fruto,

alcança e passa o homem. Um último trecho

restava; 'agora' diz ele, 'Deusa, me ajuda-me!'.

e para o lado onde ela mais demorasse

lança obliquo, com jovem vigor, o ouro nítido.                               675

A virgem hesitou em buscá-lo, a coagi

a fazê-lo e acresci peso à maçã pegada

e a impedi com o peso da carga e o atraso.

E pra que minha fala não alongue o páreo,

vencida, o vencedor levou de prêmio a virgem.                               680

Acaso não fui digna de que o tal me agradecesse

e honrasse com incenso, Adônis? Mas o ingrato

nem incenso me deu. Sou presa de ira súbita;

e fula com o desdém, pra evitar no futuro

exemplo de desprezo, incito-me contra ambos.                                685

Por um Templo que à mãe dos deuses ínclito Équion

outrora devotara, oculto em bosque espesso,

passavam; a viagem longa ao pouso induz.

Ali intempestivo desejo erótico,

ocupa Hipômenes, por força do meu nume.                                     690

Perto do templo havia um vão de exígua luz,

Símile a gruta, em pedra-pomes esculpida,

desde outrora sagrado pelos sacerdotes,

com imagens de madeira dos antigos deuses.

Ele entra e  ultraja altares com atos ilícitos.                                      695

Estátuas olhos torcem, e a torreada Mãe

hesitou mergulhar os culpados no Estígio.

Pareceu leve a pena. Logo as jubas fulvas

os leves colos velam, dedos, garras, curvam-se;

de ombros saem espáduas, nos peitos recai                                      700

todo o peso, o areal é varrido por caudas.

O semblante é de ira, em vez de falar rugem,

em vez de tálamos, às selvas vão; temíveis,

leões, domados, freios de Cibele mordem.

Foge deles, querido, e de todas as feras                                            705

que em luta exibem peito e não o lombo em fuga,

pra que tua coragem não dane a nós dois".

Ela o advertiu e, os Cisnes jungindo, nos ares

zarpa: mas a coragem opõe-se a conselhos.

De um javali o rastro seguro seguindo,                                            710

cães desentocam-no e saindo da floresta,

trespassa-o de trevés, o jovem Cinireu. 

Logo, arrancou com curvo focinho o venábulo,

tinto de sangue seu e o medroso que foge

cruel javali persegue e sob o ventre os dentes                                  715

cravou-lhe e, moribundo, o expôs na fulva areia.

Nos ares indo em leve carro, Citerea

a Chipre ainda não chegara com os cisnes.

Ouviu  longe o gemido agônico e as alvas

aves pra ali desviou, Vendo-o do alto Éter,                                      720

exâmine, e o corpo imerso em próprio sangue,

saltou e, ao mesmo tempo, o regaço e os cabelos

lanhou, batendo o peito com indignas mãos,

e, queixosa do fado,  diz  "mas em tudo está

 sob vossa lei. Meu luto há de ser lembrado                                     725

sempre, Adônis, e o rito anualmente redito

de tua morte será o sinal do meu pranto.

E o cruor uma flor será. Outrora a ti

femíneos membros converter em menta olente.

Perséfone, foi lícito: o herói cinireu,                                                 730

de inveja, verterei?" Em seguida aspergiu

no olente néctar o cruor, que, ao ser tocado,

intumesce tal qual, da fulva lama, diáfana

bolha costuma advir, nem mais do que uma hora

demora até que flor do sangue, de igual cor,                                    735

surgisse, tal e qual romã, que oculta os grãos,

sob dúctil casca. Breve é, contudo, o seu prazo:

pois, mal fixa e bem leve, sacudida, cai,

levada pelos mesmos ventos que a  nomeiam.

 

  

Livro XI

 


Enquanto com tais cantos as selvas e as feras

e os rochedos em marcha o trácio vate atrai,

eis que do alto de um monte loucas moças cícones,

com os peitos cobertos de pele de feras,

Orfeu avistam a cantar, tangendo cordas.                                                    5

Uma delas, cabelo ao vento leve alçando:

"eis", diz, "aqui está quem nos despreza" e contra

boca cantante do apolínio vate arroja

tirso, que envolto em folhas, toca-o, sem feri-lo.

 Outra lança uma pedra, que ainda em pleno ar,                                          10

a harmonia da voz e da lira refreia,

e, como um súplice por tão ousada fúria,

aos seus pés cai. Porém crescem as temerárias

rixas, esvai-se o senso e reina insana Erínia;

e armas o canto anularia; mas ingente                                                          15

clamor, a flauta berecíntia em curvo tubo,

tímpanos, palmas e alaridos das bacantes

o som da cítara abafaram. E enfim, pedras

não ouvindo se tingem com sangue do vate.

Primeiro, ainda atônitas com a voz que canta,                                             20

aves sem conta, cobras e o tropel de feras,

glória e triunfo de Orfeu, as Mênades trucidam.

Com mãos ensanguentadas, logo Orfeu perseguem

e unem-se como aves cada vez que avistam

ave noturna voando à luz; ou no anfiteatro,                                                 25

na arena, de manhã, um cervo vai morrer,

presa de cães; o vate atacam com folhados

tirsos, que para este ato não foram feitos.

Com terra, pedras e ramos de árvores alvejam-no;

e pra que não faltassem armas pro furor,                                                      30

bois sulcavam ao léu o solo com arado,

e com muito suor, colonos musculosos

cavavam dura terra, a messe preparando;

fogem, o bando vendo, e abandonam as armas

do seu labor; e jazem, dispersos nos campos,                                              35

sachos, grandes rastelos e enxadões compridos;

Após pegarem tudo e estraçalharem bois

de chifre em riste, a morte do vate perseguem,

e ele, estendendo as mãos, pela primeira vez,

dizendo vãs palavras, nada a voz movendo,                                                 40

as sacrílegas matam; por tal boca, ó Júpiter,

pelas pedras ouvida e entedida por feras,

sua alma exalou-se, evolando nos ares.

Orfeu, as aves tristes, o tropel das feras,

rijas pedras e, sempre teus cantos seguindo,                                                45

selvas choraram-te; caíndo as folhas a árvore

tonsa a copa enlutou; até os rios com lágrimas,

dizem, se encheu e ocultas em seus negros véus,

Naides e Dríades soltaram os cabelos.

o corpo se espalhou; cabeça e lira, ó Hebro,                                                50

acolhes e (milagre!) ao fluir na corrente,

flébil acorde a lira chora e  flébil língua   

exâmine murmura e ecoa a margem flébil.

E então, ao mar levadas, pátrio rio deixam

e  alcançam litorais de Lesbos em Metimna.                                                55

Aqui cobra feroz ataca na areia

a cabeça e os cabelos úmidos de orvalho.

Enfim, acode Febo e, prestes a morder,

a impede e em pedra a goela aberta da serpente

congela e, como estava, enrija a boca hiante.                                               60

A sombra desce à terra e, os locais antes vistos

reconhece, e ao buscar pelos campos dos pios,

encontra Eurídice, e a abraça com avidez.

Aqui algumas vezes juntos andam ambos,

ora adiante ela vai, ora ele a precede,                                                           65

e à Eurídice volve o olhar sem medo Orfeu.

 


Públio Ovídio Naso (Sulmona, Itália, 43 a.C.; Constança, Romênia, 17/18 d.C.), referenciado tradicionalmente apenas como Ovídio, foi um dos principais poetas da antiguidade clássica romana. Metamorfoses, considerada sua obra magna, tem seu contexto de produção situado no ano 8 d. C.


Raimundo Carvalho é poeta, tradutor, ensaísta e autor de literatura infanto-juvenil. Publicou, entre outros, A gruta da inveja: interpretação e tradução de poesia latina clássica (Inmensa Editorial, Coleção Atravessamentos impossíveis, 2022) e Reza mansa (Inmensa Editorial, Coleção Infame Ruído, 2024).

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