Orfeu, Metamorfoses, X-XI, 66, de Ovídio
TRADUÇÃO RAIMUNDO CARVALHO
Livro X
Dali, no éter imenso, envolto em cróceo manto,
afasta-se Himeneu e à costa dos Cícones
vai e em vão é chamado pela voz de Orfeu.
Lá esteve; porém, nem palavras solenes
nem rosto alegre, nem feliz augúrio trouxe. 5
A tocha em punho estrila ao fumo lacrimoso,
sem fazer fogo algum, mesmo sendo agitada.
O fim foi pior que o auspício. Enquanto a nova esposa
vagava pela relva seguida por Náiades,
morreu picada por serpente no calcanhar. 10
Após muito chorá-la, junto à brisa etérea,
o vate Rodopeu ousou descer às trevas
do Estige, pelas portas Tênaro também;
Por entre leves simulacros de sepultos,
chega a Perséfone e ao senhor do reino horrendo 15
das sombras, e vibrando as cordas, canta assim:
"Numes do mundo situado sob a terra,
para o qual, nós, e tudo que é mortal, descemos,
se é lícito e deixeis que, sem falsos rodeios,
dizer o vero, não desci até aqui 20
pra ver o opaco Tártaro e atar as três goelas
eriçadas de cobras do medúsio monstro;
Venho por minha esposa, em quem calcada víbora
veneno inoculou, abreviando-lhe os anos.
Quis suportar, não negarei tê-lo tentado. 25
Venceu Amor, deus célebre em regiões etéreas
e aqui talvez; auguro que também o seja.
E se a fama do antigo rapto não for falsa,
vos uniu o mesmo Amor. Nestes locais medonhos,
do ingente Caos, por este amplo e silente reino, 30
retecei, rogo, o fado apressado de Eurídice!
Tudo está em dívida convosco, e logo mais,
cedo ou tarde, chegamos à mesma morada.
Pra cá tendemos todos, nosso último abrigo.
Tendes reino longuíssimo ao gênero humano. 35
Também ela, madura, os anos completando,
será vossa. Só peço o dom de desfrutá-la.
Porque se os fados negam vênia à esposa, é certo
eu não voltar: com a morte dos dois alegrai-vos."
Dizendo tais palavras e movendo as cordas, 40
almas exangues choram. Nem Tântalo onda
em fuga alcança, e a roda de Íxion pasmou-se,
Nem aves comem fígado, vagaram urnas
Bélides, em tua pedra repousaste, Sísifo.
É fama que as Eumênides, vencidas pelo 45
canto, de pranto o rosto regam. Nem rainha
ou rei das profundezas se negam ao súplice
e Eurídice, que estava entre as sombras recentes,
chamam. Ferida, em passos lentos ela veio.
Ela e a sentença aceita o Rodopeu Orfeu, 50
Não olhar para trás, até que dos Avernos
vales saia: ou inúteis dons não têm futuro.
Em silêncio, percorrem uma via íngreme,
árdua, obscura, densa de caligem opaca,
e não estavam longe da face da terra; 55
Temendo a perda e ávido por vê-la, ele,
amante, o olhar volveu; logo ela cai pra trás;
tendendo os braços para pegá-lo e ser pega,
nada a infeliz agarra, exceto o ar arisco.
Já de novo ao morrer, coisa alguma do Cônjuge 60
queixou. (Queixar de quê? senão de ser amada?
Disse um último adeus, que ele mal pôde ouvir,
e de novo voltou para o mesmo lugar.
Orfeu, com a dupla morte da esposa, aterrou-se
qual quem, temendo, viu as três goelas do cão, 65
com cadeias ao meio, o medo não deixando-o,
antes de ter o corpo em pedra transformado;
como Óleno, que o crime de outro se imputou,
ou qual tu, confiada em tua formosura,
ó infeliz Letéia, corações outrora 70
tão juntos, hoje pedras sobre o Ida úmido.
Em vão, rogou, querendo atravessar de novo;
o barqueiro afastou-se; sete dias ele,
esquálido, à margem se sentou, sem dons de Ceres;
nutriu-se de paixão, da dor da alma e de lágrimas. 75
Queixando dos cruéis deuses do Érebo, alçou-se
ao Ródope alto e ao Hemo impelido por Áquilos.
Pela terceira vez, Titã o ano encerrara
sob aquíferos Peixes, recusando Orfeu
toda femínea Vênus, por funestos males 80
ou por fidelidade; mas muitas ardiam
por unirem-se ao vate e sofriam repulsas.
Foi ele que ensinou os trácios transferir
a tenro moço o amor, e antes da juventude
colher as flores de sua breve primavera. 85
Havia uma colina e no alto dela um campo
planíssimo cobria-se de verde relva.
Faltava sombra, quando ali sentou-se o vate,
filho de deuses, e vibrou sonoras cordas,
trazendo a sombra: vêm árvore da Caônia, 90
bosque de Helíades, carvalho de altas frondes
finas tílias, faia e o inupto loureiro,
as frágeis aveleiras, freixos para os dardos,
os abetos sem nós, o azinho assim de frutos,
o plátano festivo, o bordo em cores díspares, 95
salgueiros ribeirinhos, e o lótus aquático,
o buxo sempre verde, esbeltos tamarindos,
o mirto bicolor e o louro de azuis bagas.
Também viestes, heras flexípedes, junto
a vides com seus cachos revestindo olmeiros, 100
freixos floridos, pinhos, medronho de rubro
fruto e flexíveis palmas, prêmio a vencedor,
e o pinheiro de fronte alta e porte hirsuto,
à mãe dos deuses grato, se é verdade que Átis
amante de Cibele, em tronco endureceu-se. 105
Com esta floresta uniu-se o cônico cipreste,
árvore agora, antes jovem favorito
do deus hábil nas cordas do arco e da cítara.
Pois, consagrado às Ninfas de Carteia, havia
um cervo, cujos chifres enormes cobriam 110
sua própria cabeça com espessas sombras.
Os chifres refulgiam de ouro e o belo colo
e as espáduas colares de gemas ornavam.
À testa tinha um medalhão de prata preso
a finas fitas, desde que nascera; pérolas 115
brilhavam das orelhas sobre as cavas têmporas;
este, livre do medo e natural pavor,
as casas freqüentava e oferecia o colo
às carícias até de mãos desconhecidas.
Contudo, mais que a outros, era grato a ti, 120
Ciparisso, o mais belo de Céos; às pastagens
novas e a fontes claras, o cervo levavas;
tu, flores várias, entrançavas-lhe nos chifres,
ou, montado em seu dorso, alegre conduzias
por toda parte, a terna boca em rédeas púrpuras. 125
Era verão, e o sol, meio-dia, queimava
os braços curvos do costeiro Caranguejo;
cansado, na relvosa terra o corpo pôs
o cervo e se refresca sob arbórea sombra.
Neste, o imprudente Ciparisso aguda lança 130
fixou e, vendo-o morrer com golpe atroz,
quis morrer. Que consolo não lhe disse Febo,
e que sofresse a dor na proporção da perda,
aconselhou! Mas, ele geme e pede aos deuses
o dom supremo de prantear o tempo todo. 135
Já o sangue esvaiu-se em torrente de choro,
os membros começaram a ficar verdes
e o cabelo, há pouco sobre nívea fronte,
em hórridas madeixas converteu-se e, rijo,
de fina fronde, o céu estrelado contempla. 140
Gemendo triste disse o deus: “pranteado por nós,
prantearás outros e na dor serás presente”.
A tal bosque atraíra o vate e, em meio às feras
e à multidão de aves, estava sentado.
Depois que dedilhou com o polegar as cordas, 145
e sentiu que, embora soassem diversas,
as notas se afinavam, entoa este canto:
Com Júpiter, mãe Musa, ( tudo cede a Júpiter),
o nosso canto inspira; o poderio de Júpiter
sempre cantei; e, em plectro mais grave, os Gigantes 150
e os raios vencedores nos campos de Flegra.
Agora em lira mais leve cantemos moços
prediletos de deuses e moças de impróprias
paixões tomadas e punidas por luxúria.
Outrora o rei dos deuses frígio Ganimedes 155
amou e achou-se algo que Júpiter quisesse
ser em lugar do que era: e em ave alguma digna-se
transformar-se, a não ser na que suporta os raios.
Sem demora, batendo no ar as falsas asas,
raptou o ilíade, que agora em taças serve 160
néctar a Júpiter, a Juno constrangendo.
A ti também, Amíclida, alçava ao céu Febo,
se os tristes fados lhe tivessem dado tempo.
Mas és eterno; quanto a primavera expulsa
o inverno e Aires sobrevém a aquoso Peixe, 165
tanto nasces e flores tu na verde relva.
Mais que a todos, meu pai te preferiu, e Delfos,
centro do mundo, careceu de guardião,
enquanto o deus andou pelo Eurotas e Esparta
sem muros; sem cuidar de cítara ou de setas: 170
deslembrado de si, levava as tuas redes
e os teus cães, através de montes escarpados
e a longa convivência nutria-lhe a flama.
Já quase ao meio do percurso o Titã ia,
e era igual a distância entre uma noite e outra; 175
eles livram de veste o corpo untado de óleo
de oliva e no certame de amplo disco medem-se.
Sopesando-o primeiro, Febo aos altos ares
o lançou e rasgou as nuvens com seu peso.
Longo tempo depois, caiu na terra sólida 180
o peso, evidenciando a arte unida à força.
Logo, imprudente, agindo pelo ardor do jogo,
se apressava o Tenárida em pegar o disco;
que, repelindo, a dura terra relançou
em teu rosto, Jacinto. Iguais empalidecem 185
rapaz e o deus que ampara teu corpo caído
e ora te anima, ora seca a triste chaga,
aplicando ervas para reter a alma em fuga.
Nada pôde fazer, a chaga era incurável.
Tal quando alguém esmaga em regado jardim 190
violetas, papoula e lírios amarelos,
que, murchos, pendem logo a cabeça incapaz
de se suster e o solo com as corolas miram;
assim, jaz o semblante do moço, e, sem força,
o seu pescoço pesa e tomba sobre o ombro. 195
“Morres, ebálida, na flor da juventude”
Febo diz, “vejo tua chaga, minha culpa.
Tu és minha dor e crime; minha destra a morte
tua inscreveu, sou eu o autor de teu trespasse.
Qual meu crime, porém? a não ser que se possa 200
chamar de crime ter brincado e ter amado.
Pudera, bem mereço, em teu lugar morrer,
ou contigo! Mas, já que nos prende o destino,
sempre estarás comigo, honrado por meus lábios.
Lira à mão, para ti soarão os meus cantos 205
e, flor nova , o meu choro imitarás com letras.
Tempo virá no qual um fortíssimo herói
se tornará tal flor, com nome inscrito em folhas.”
Enquanto Apolo diz isso com veros lábios,
eis que o sangue escorrendo em terra, tinge a relva, 210
deixa de ser um sangue e nasce flor mais nítida
que a púrpura de Tiro, qual lírio, se não
purpúrea fosse a sua cor e argêntea a deste.
Isso não basta a Febo, (autor da homenagem);
ele inscreve seu choro em folhas e AI AI, 215
funestas letras, tracejou naquela flor.
Nem envergonha Esparta ser pátria a Jacinto,
sua honra perdura e a cada ano voltam
as Jacíntias, cortejo de vetusta pompa.
Mas, se Amatunte, rica em metal, indagares 220
se engendrar quis Propétides, renegaria,
como aqueles que outrora com dois chifres àspera
fronte tinham; daí vindo o nome Cerastas.
Havia às portas destes ara a Jove Hospes,
que, ignaro do crime, manchada de sangue, 225
o ádvena visse, ali imolados creria
tenros bezerros e cordeiros de Amatunte;
um hóspede sangrou. Com o sacrilégio irada,
alma Vênus, cidade e campos da Ofiúsa
quis deixar. Mas, "que falta meus gratos locais 230
cometeram? Que crime" disse "há entre eles".
Com exílio essa gente ímpia expie a pena,
ou com a morte ou algo entre a morte e a fuga.
E que tal pena é, senão mudar de forma?"
Enquanto pensa em que os mudar, aos chifres volve 235
o olhar e concluiu que podia deixá-los;
e os corpanzis transforma em torvos marruás.
Porém, ousando, Vênus, obscenas Propétides
negam ser deusa; e, em vista da ira do nume,
Primeiras a vender seus belos corpos, dizem; 240
Pudor cessando, o sangue à face endureceu,
E, sem mais, converteram-se em rígida pedra.
Pigmálion, vendo-as vida de crime levando,
Triste com os muitos vícios que à femínea mente
A natureza deu, vivia em celibato, 245
E há muito carecia de consorte em cama.
Entanto, com admirável arte, em marfim níveo
Esculpiu formosura, com a qual mulher
Nenhuma nasce; e de sua obra enamorou-se.
A face tem de virgem veraz, que crês viva, 250
E, se não impedisse o pudor, moveria;
Tanto a arte em arte oculta-se. Admira-a Pigmálion,
Peito haurindo o calor do corpo simulado.
Mãos sempre à obra leva, tateantes, vendo
Se é um corpo ou marfim; marfim não é mais, julga. 255
Beija e beijado crê-se; fala-lhe, abraça-a,
E acredita que os dedos penetram-lhe a carne
E teme que a pressão lhe provoque livores;
Ora carícias faz, ora lhe traz presente
Caro a meninas, conchas, pedrinhas polidas, 260
Passarinhos e flores de mil cores, lírios,
Bolinhas coloridas e lágrimas de árvore
Das Helíades; orna os membros com vestidos,
Nos dedos põe anéis e ao pescoço colares;
No peito põe cordões, na orelha leves pérolas. 265
Tudo lhe assenta; e nua não é menos bela.
Coloca-a em leito tinto com concha sidônia
E chama-a de sócia de cama, o pescoço dispondo-lhe
Em moles plumas, como se ela as sentisse.
De Vênus o festivo dia em toda Chipre 270
Celebravam e reses de chifres dourados
Caíam, golpeadas em nívea cerviz,
E o incenso ardia; oficio cumprido, aos altares
Veio e tímido: “Deuses, se tudo podeis,
Peço-vos” (não ousando “virgem de marfim” 275
Dizer) Pigmálion disse: “uma à de marfim símile”.
Vênus áurea que estava em sua festa entendeu
A prece, e, como augúrio de uma deusa amiga,
A chama acesa alçou aos ares por três vezes.
Quando tornou ao simulacro de menina, 280
Recurvo em leito a beija; pareceu-lhe tépida.
De novo a boca encosta e o seio as mãos tateiam;
O marfim amolece ao contato e à pressão
Dos dedos cede, como a cera do Himeto
Ao sol derrete e ao polegar assume muitas 285
Formas, e com o uso mais útil se torna.
Espanta-se e se alegra dúbio, e o engano teme,
De novo o amante com a mão seu bem tateia;
É corpo; pulsam veias sob o polegar.
Então o herói de Pafos profere pleníssimas 290
Palavras, graças dando a Vênus; e enfim boca
Boca não falsa preme, e a virgem os beijos dados
Sentiu, e enrubesceu e, olhar tímido à luz
Alçando, ao mesmo tempo o céu e o amante viu.
A deusa assiste às bodas que fez; e, formando 295
Chifres lunares nove vezes disco pleno,
Aquela gerou Pafos, que à ilha deu nome.
Dela nasceu Ciniras que, não fosse a prole,
entre os felizes poderia ser contado.
Horrores cantarei; pais! filhas! afastai-vos! 300
Se meu canto tocar de leve as vossas mentes,
não me deis fé, nem credes se tratar de um fato,
mas, se credes no fato, crede então na pena.
E se isso à natureza pareça aceitável,
Com a gente Ísmária, nosso mundo, congratulo-me, 305
e com essta terra, longe daquela região
que tal horror gerou. Seja rica em amomo,
canela, costo, e incenso extraia da madeira,
e, além das outras flores, a terra Pancaia
a mirra extraia. Tanto custou a nova árvore. 310
Negou-te as suas flechas o próprio Cupido,
Mirra, e isenta as suas tochas desse crime.
Com estígio tronco e inchadas cobras te insuflou
uma das três irmãs. É crime odiar o pai:
Crime maior que o ódio é este amor. Seletos 315
nobres querem-te, e todos os moços do oriente
disputam o teu tálamo. De todos, um
elege, Mirra, exceto um só dentre esses todos.
Ela sente e repugna, sim, nefando amor,
e pensa: "Aonde a mente me leva? que tramo? 320
Deuses, rogo, Piedade e as sacras leis dos pais,
proibi esta torpeza e impedi o meu crime,
se for crime. Porém, a condenar se nega
a Piedade este coito, e os animais se enlaçam
sem distinção. Nem se tem como torpe a rês 325
pai suportar no lombo; o potro esposa a filha,
penetra o bode as crias, e a ave, daquele
de cujo sêmen foi concebida, concebe.
Felizes são quem isso pode! O zelo humano
malignas leis criou e o que é natureza 330
leis invejosas negam. Mas há povos, dizem,
em que tanto à mãe filho, como filha ao pai
se unem, e cresce a Piedade em duplo amor.
Mísera sou, pois não me coube ali nascer,
que azar este lugar! Por que isso revolvo ? 335
Esperança interdita, foge! Ele é digno
de ser amado, como pai! Não fora eu filha
do grão Ciniras, com Ciniras dormiria.
E, porque já é meu, não é meu, e é meu mal
essa proximidade:estranha, eu mais podia. 340
Queria ir daqui pra bem longe da pátria,
fugindo ao crime; ardor ruim retém o amante,
pra que, vendo Ciniras, eu lhe fale, toque
e o beije, se mais nada me for concedido.
Algo mais podes esperar, ó virgem ímpia, 345
e quantas leis e títulos confundes, sentes?
Serás rival de mãe e adúltera de pai?
e a irmã de teu filho e mãe de teu irmão?
Não temes as irmãs coroadas de atras cobras,
que, com tochas que aterram os olhos e a face, 350
os corações maus veem? Enquanto teu corpo
resguardas do nefando, em mente não violes,
com cópula proibida, as leis da natureza.
Pensas querê-lo, isso é vetado. Ele é pio
e puro. Oh! que nele arda o mesmo furor!" 355
Disse, e Ciniras, a quem dignos pretendentes
dificultam a escolha, quer saber da mesma,
dentre os nomeados, qual ela quer pra marido.
Ela se cala então, o olhar paterno encara,
ardente, e os olhos banha de tépido orvalho. 360
Crendo Ciniras que isso é virgíneo temor,
tenta secar-lhe o choro, beijando-lhe a face.
Mirra demais se alegra com os beijos e instada
sobre que homem lhe serve, "um igual a ti" disse.
Ele, entendendo mal, a louva e "és tão pia 365
sempre" afirma. Ao ouvir o nome da Piedade,
a virgem baixa a fronte, cônscia de seu crime.
Meia-noite, os cuidados e os corpos, o sono
dissolve. E a vígil virgem Ciníria por fogo
indômito e furioso elã é consumida. 370
E desespera, e quer tentar, e tem pudor,
e deseja, e não sabe o que fazer; qual tronco
grande ferido por machado, e ao golpe último,
cambaleia hesitante e a todos amedronta:
assim muito ferido o espírito varia, 375
lá e cá, leve, e move-se para os dois lados.
Não há termo, nem pausa pro amor, só a morte.
A morte apraz. Ergueu-se e manda atar as fauces
a um nó, atando a cinta na viga mais alta,
"Ciniras caro, adeus, entendes minha morte" 380
disse enquanto adaptava o laço ao colo pálido.
O rumor das palavras aos leais ouvidos
da nutriz que vigiava à porta chegou, contam.
A velha abre a porta e, vendo os instrumentos
da morte anunciada, grita ao mesmo instante, 385
se fere e rasga o peito e despedaça o laço
arrancado ao pescoço. E, livre pra chorar,
abraçou-a, inquirindo sobre o enforcamento.
Muda a virgem, imóvel olha para o chão,
e dói-lhe a suspensão de sua morte lenta. 390
Insiste a veilha, cãs e seio seco à mostra,
pelo berço e primeira mamada suplica
que fale o que lhe dói. Alheia à pergunta,
ela geme. A nutriz se dispõe a inquirir
até o fim e ser fiel. "Diz-me", insiste, e "me deixa 395
te ajudar. Não é vã a minha senectude.
Se for furor, sei quem, com erva e encantos, sane-o;
se é feitiço, serás purgada em rito mágico;
se for ira de um deus, ira oferenda aplaca.
Que mais supor? Tua casa e tua fortuma estão 400
a salvo e em ordem. Vivem teu pai e tua mãe."
Mirra, pai escutando, suspiros deu do imo
peito. A nutriz ainda não concebe em mente
nada nefando, mas pressente algum amor.
Tenaz suplica que o que quer que seja, diga, 405
e em regaço senil a lacrimosa acolhe
e, estreitando-lhe os membros com seus débeis braços,
"eu sei", afirma, "amas, (não temas) terás
meu apoio e jamais teu pai saberá disso."
Saltou do abraço furibunda, e diz, no leito, 410
de bruços, "sai, te peço, e mísero pudor
poupa"; e rediz " sai, ou desiste de buscar
o que me dói, é crime o que saber laboras"
Horror! A velha ergue, de medo, as mãos trêmulas
e de joelhos suplica aos pés de sua pupila 415
e ora a afaga, ora a aterra, se não contar tudo,
e ameaça denunciar o laço e a tentativa
de morte, prometendo apoio ao seu amor.
Ergue a cabeça Mirra, as lágrimas imundam
o peito da nutriz e tenta confessar, 420
mas prende a voz e a face corada com a veste
cobre e "Oh" diz "Feliz minha mãe com seu cônjuge!"
só isso e geme. Gélido terror penetra
(pois, sentiu) membros e ossos da nutriz e as alvas
cãs eriçam no topo os rígidos cabelos. 425
E pra banir, podendo, o horrível amor,
muito diz, mas a virgem vero o aviso sabe,
preferindo morrer, se não fruir esse amor.
"Vive", diz a nutriz, "terás teu...";" pai" não ousa
dizer e, muda, firma a promessa a um nume. 430
Festa anual de Ceres pias mães celebravam,
na qual, velando os corpos com níveo vestido,
dão coroas de espigas, primícias dos frutos,
e, em nove noites,Vênus e o viril contato
têm por proibidos. Conta-se na turba Cêncreis, 435
mulher do rei, que os sacros arcanos frequenta.
Assim que leito é livre da esposa legítima,
a ardilosa nutriz, vendo Ciniras bêbado
de vinho, expõe com falso nome vero amor,
louvando a bela. À idade indagada da virgem, 440
diz, " igual Mirra." Após a ordem de levá-la,
volta pra casa e diz: Alegra-te, pupila,
vencemos" Infeliz, não sente em todo peito
a virgem alegria, e agouro o peito entrista;
mas se alegra, tanta é a discórdia na mente. 445
Era o tempo em que tudo se cala e entre os Triões
curvara o carro, com timão oblíquo, Bootes:
Ao seu crime ela vem. Foge, áurea, do céu
a lua, negras nuvens obscurecem os astros:
É noite atra; primeiro o rosto encobres, Ícaro, 450
e , sacra Erígone, de pio amor ao pai.
Três vezes tropeçou, voltando atrás, três vezes
piou letal presságio a funérea coruja.
Vai, e as trevas da noite aplacam o pudor;
A sinistra a nutriz segura, a destra a trilha 455
cega tateia. Assim que toca o vão do tálamo,
logo a porta abre, logo é levada pra dentro:
Mas seus curvos joelhos tremeram, fugiu-lhe
a cor, e o sangue, e o ânimo perde no avanço.
Quanto mais próximo do crime, mais se aterra 460
e arrepende, e podendo, voltaria incógnita.
A velha leva-a, hesitante, ao alto leito
e, como se a entregasse, diz "Ciniras, toma,
"ela é tua!" e os corpos execrandos une.
Aceita o pai no leito obsceno as próprias vísceras, 465
o temor virginal alivia e a acalma.
Quiçá até pela idade, chamou-a de "filha",
e ela de "pai", e ao crime os nomes não faltaram.
Prenhe do pai, do tálamo sai, e impio sêmen,
fruto de crime, porta em seu útero horrendo. 470
Noite seguinte o crime duplica e não finda,
E Ciniras, querendo conhecer a amante,
Após concubinato, a luz focando, vê
o crime e a filha; a dor as palavras retendo,
retira da bainha a espada reluzente. 475
Mirra foge; nas trevas de uma noite cega,
da morte se livrou. Vagando em amplos campos,
a palmífera Arábia e a Pancaia deixou;
Erra por nove voltas dos cornos da lua,
quando, esgotada, para em terra de Sabá. 480
Ela, indecisa, e mal sustendo o peso do útero,
entre o medo da morte e o cansaço da vida,
prostrou-se em preces: "Numes, se há algum, abri-vos
aos que confessam, mereci e acato o triste
suplício. E pra que os vivos não viole vivendo, 485
ou os mortos morrendo; evitai-me os dois reinos
e, mudando-me, vida e morte me negai.
Um nume atende a que confessa, pois com ùltimos
votos obteve deuses. Ao falar, às pernas
a terra sobreveio, e através de unhas rotas, 490
pende oblíqua raiz sustendo o alto tronco,
os ossos viram pau, sempre ao centro a medula,
o sangue é seiva, os braços longos ramos tornam-se,
dedos os curtos, vem da pele a dura casca.
Já árvore crescendo preme o grave útero, 495
e o peito encobre, quase a ocultar o colo,
sem tolerar demora, ela adentra o lenho,
abaixa-se e submerge seu rosto na casca.
Mesmo perdendo com o corpo antigos sensos,
ainda chora e tíbias gotas manam da árvore. 500
Lágrimas de honra, mirra, exsudada da casca,
o nome tem da dona e nunca há de calar-se.
E em tronco cresce, fruto da infâmia, o infante,
e busca uma via, abandonando a mãe,
pra sair: grávido incha-se na árvore o ventre. 505
O peso encurva a mãe: pra dor não tem palavras,
nem, parturiente, voz para invocar Lucina.
Mas, igual a quem dá à luz, recurva, a árvore
dá gemidos frequentes, úmida de lágrimas.
Doce Lucina está junto aos ramos dolentes, 510
e, as mãos movendo, disse palavras puérperas.
A árvore entreabre-se e, rompendo a casca, vivo
expele o peso, e o infante chora; em branda relva,
Náiades o ungiram com maternas lágrimas.
Mesmo Inveja a beleza dele louvaria, 515
pois semelhava aos corpos desnudos de Amores
pintados; mas, pra não lhes distinguir o aspecto,
a uns acresce leve aljava, de outros tira.
Desliza oculta e engana a volátil idade,
e nada é mais veloz que os anos. Ele, filho 520
da irmã e do avô, há pouco recôndito em árvore,
Inda há pouco nascido infante formosíssimo,
Já é um jovem, e homem mais formoso que antes:
Já a Vênus apraz, vingando ardores mátrios.
Pois, enquanto o menino arqueiro a mãe beijava, 525
ínscio, roçou-lhe o peito com saliente flecha.
Ferida, a deusa o filho repeliu com a mão.
A chaga era mais funda do que parecera.
Tomada pelas formas do homem, Citereia
já não cuida de Pafos, cercada de praias, 530
nem de Cnido piscosa e amatunte metálica;
Abstém-se até do céu, e ao céu prefere Adônis.
Retém-no e segue-o; e habituada sempre à sombra,
a cuidar da beleza dele, pra aumentá-la,
pelas serras, florestas e sarçais vagueia, 535
veste acima do joelho, ao modo de Diana,
e incita os cães; e os bichos de presa segura,
lépidas lebres, cervo de chifres excelsos
ou corça, encalça: abstém-se dos javalis fortes,
o lobo predador, o urso armado de garras, 540
e os leões saciados de rebanho evita.
A ti também, que os temas, adverte-te, Adônis,
se é útil advertir, "sê forte com quem foge,
contra audazes, audácia", diz, "não é segura.
Não sejas, jovem, temerário e paz me trazes, 545
feras que a natureza armou, não acometas;
tua glória não me custe caro! Idade e face
que agradam Vênus, não agradarão leão,
porco hirsuto, nem olho e coração de feras.
Tem o acre javali raio em aduncos dentes, 550
e é violenta a ira dos fulvos leões,
raça que não me apraz." Causa inquirida, diz:
"Eis prodígio admirável de uma antiga culpa.
Porém labor insólito já me cansou,
e um choupo nos atrai, propício, à sua sombra, 555
e em leito de erva apraz-me descansar contigo"
e descansou na grama, inclinada sobre ele,
de costas, a cabeça no colo do jovem,
assim contou, palavra e beijo intercalando:
Talvez ouvistes sobre uma tal, que, em corrida, 560
varão veloz vencia; e esse rumor fábula
naõ é, pois, os vencia; nem dizer podias
se em dons dos pés ou da beleza mais brilhava.
Instando um deus por cônjuge, ele diz: "Conjuge
não te serve, Atalanta. Foge de ter cônjuge! 565
Porém não fujas, de ti mesma privarás".
Temendo a predição, inupta em selva opaca
vive e a instante turba de procos violentos
afugenta, dizendo: Não serei possuída
por nenhum homem, a não ser por quem me vença
na corrida. Com os pés rivalizai comigo: 570
Como prêmio ao veloz se darão noiva e tálamos,
a morte ao lento . Esta é a lei do certame.
Ela é cruel, mas a beleza vale tanto,
que, mesmo assim, a turba temerária veio.
Sentou-se, olhando, Hipômenes, corrida iniqua, 575
"Quem através de tais perigos busca cônjuge?"
disse, enjeitando os loucos amores dos jovens.
Quando, deposto o véu, viu o rosto e o corpo dela,
qual meu ou qual teu corpo, se fêmea tornares,
pasmado, ergueu as mãos: "Oh! perdoai-me", disse, 580
"vós que há pouco culpei. Ainda não notara
o prêmio que buscáveis". Louva e um fogo arde-lhe,
querendo que nenhum rapaz corra tão rápido,
de inveja teme. "E por que naõ tentar a sorte
também neste certame?" Ele se pergunta. 585
"Quem ousa um deus ajuda". Enquanto vem a Hipômenes
tais ideias, com passo alado, voa a virgem.
Embora mais veloz que uma flecha dos Cítios,
parecesse ao rapaz Aônio, a formosura
mais lhe admirou. Correndo faz-se mais formosa. 590
A brisa lhe repuxa os laços dos pés rápidos,
e em dorso ebúrneo lhe esvoaçam os cabelos,
também as franjas que lhe adornam os joelhos;
e o seu corpo à candura de moça um rubor
somava, como quando sobre os brancos átrios 595
véu purpúreo reveste as sombras simuladas.
Enquanto ele observa tudo, acabou a corrida,
e atalanta, triunfante, em festa em coroada.
Os vencidos gemendo a pena imposta pagam.
Mas o rapaz não teme o sucedido a eles, 600
fica de pé no meio, e o olhar na virgem fixo,
'Por que busca honra fácil superando fracos?
Comigo aposta!' disse. 'Se a sorte potente
me fizer, pejes não, venceu-te um grão varão:
pois, Megareu de Onquesto é meu pai, o avô dele 605
é Netuno e bisneto sou do rei das águas,
Meu valor vale a estirpe: terás, se venceres
Hipômenes, um grande e memorável nome'.
Ao que falava a Esquênia com semblante amável
olha e hesita se quer vencer ou ser vencida. 610
E assim disse 'Que deus iníquo aos belos quer
perdê-lo, e ordena enlace aspirar, perigoso
à cara vida? Julgo que não valho tanto.
Não me toca a beleza de le (até podia),
pois é só um menino, me comove a idade. 615
Quanto valor num peito sem temor à morte?
Que ele descenda em quarto grau do rei dos mares?
Que me ame e valore tanto as nossas núpcias
até a morte, se a dura sorte me negar-lhe?
Enquanto podes, moço, evita cruento tálamo: 620
meu enlace é cruel. Casar contigo muitas
querem, e podes ser opção de sábia moça.
Por que zelo por ti, se tantos já morreram?
Veja e morra! pois, pela matança dos outros
advertido, assim mesmo ruma contra a vida. 625
Portanto, morrerá quem quis viver comigo
e indigna morte tem como preçoo de amor?
Que a vitória,a inveja não atraia a mim.
Mas não é culpa minha. Que desistir queiras,
ou, já que és um demente, que mais veloz sejas. 630
Que virgínio semblante em rosto pueril!
Melhor jamais me visses, ó Mísero Hipômenes
És digno de viver. Se eu fosse mais feliz,
e o fado inoportuno não me obstasse as núpcias,
contigo só o leito eu dividiria. 635
Dissera; quando ingênua, tocada por Cupido,
ignorando o que faz, ama e não sente o amor.
Já pai e o povo exigem a mesma corrida,
quando, em súplice voz, a prole de Netuno,
Hipômenes, me invoca: 'Citerea, assista 640
minha audácia e o fogo que me concebeu".
Brisa amiga me trouxe as suas brandas preces;
Tocada estou, confesso, e sem demora, ajudo:
Existe um campo que os nativos chamam Tâmaso,
o melhor chão de Chipre, que a mim os antigos 645
sagraram e a meus templos este dote deram.
No meio da planície, rebrilha uma árvore,
de fulva copa e ramos crepitantes de ouro.
De lá vindo ao acaso, três frutos dourados,
por mim colhidos, trouxe sem que ninguém visse, 650
só Hipômenes, a quem ensinei como usá-los.
As tubas soaram, e ambos, curvados, a barra
pulam e com pés ágeis, mal triscam a areia;
Pensarias a passo seco o mar roçarem
e alva messe adentrarem sem dano às espigas. 655
Dão ânimos ao jovem o clamor, o aplauso
e as vozes da platéia: agora, agora, apressa-te,
Hipômenes! Agora usa a força toda;
Avante, vencerás! Talvez o herói megário
mais se agrada, ou a esquênia virgem, com tais ditos. 660
Quantas vezes, podendo passá-lo, deteve-se
a olhar seu rosto e, sem querer, pra trás deixou-o!
Árido hálito saia-lhe da boca,
e a meta estava longe; então, um dos três frutos
da árvore o bisneto netúnio lançou. 665
Pasmou-se a virgem e, anelando o fruto nítido,
deixa a corrida e o ouro volúvel recolhe.
Passou-a Hipômenes e aplaude-o a plateia.
Célere, ela corre, sem demora a rota
corrige e o jovem deixa de novo pra trás. 670
E de novo, atrasada por segundo fruto,
alcança e passa o homem. Um último trecho
restava; 'agora' diz ele, 'Deusa, me ajuda-me!'.
e para o lado onde ela mais demorasse
lança obliquo, com jovem vigor, o ouro nítido. 675
A virgem hesitou em buscá-lo, a coagi
a fazê-lo e acresci peso à maçã pegada
e a impedi com o peso da carga e o atraso.
E pra que minha fala não alongue o páreo,
vencida, o vencedor levou de prêmio a virgem. 680
Acaso não fui digna de que o tal me agradecesse
e honrasse com incenso, Adônis? Mas o ingrato
nem incenso me deu. Sou presa de ira súbita;
e fula com o desdém, pra evitar no futuro
exemplo de desprezo, incito-me contra ambos. 685
Por um Templo que à mãe dos deuses ínclito Équion
outrora devotara, oculto em bosque espesso,
passavam; a viagem longa ao pouso induz.
Ali intempestivo desejo erótico,
ocupa Hipômenes, por força do meu nume. 690
Perto do templo havia um vão de exígua luz,
Símile a gruta, em pedra-pomes esculpida,
desde outrora sagrado pelos sacerdotes,
com imagens de madeira dos antigos deuses.
Ele entra e ultraja altares com atos ilícitos. 695
Estátuas olhos torcem, e a torreada Mãe
hesitou mergulhar os culpados no Estígio.
Pareceu leve a pena. Logo as jubas fulvas
os leves colos velam, dedos, garras, curvam-se;
de ombros saem espáduas, nos peitos recai 700
todo o peso, o areal é varrido por caudas.
O semblante é de ira, em vez de falar rugem,
em vez de tálamos, às selvas vão; temíveis,
leões, domados, freios de Cibele mordem.
Foge deles, querido, e de todas as feras 705
que em luta exibem peito e não o lombo em fuga,
pra que tua coragem não dane a nós dois".
Ela o advertiu e, os Cisnes jungindo, nos ares
zarpa: mas a coragem opõe-se a conselhos.
De um javali o rastro seguro seguindo, 710
cães desentocam-no e saindo da floresta,
trespassa-o de trevés, o jovem Cinireu.
Logo, arrancou com curvo focinho o venábulo,
tinto de sangue seu e o medroso que foge
cruel javali persegue e sob o ventre os dentes 715
cravou-lhe e, moribundo, o expôs na fulva areia.
Nos ares indo em leve carro, Citerea
a Chipre ainda não chegara com os cisnes.
Ouviu longe o gemido agônico e as alvas
aves pra ali desviou, Vendo-o do alto Éter, 720
exâmine, e o corpo imerso em próprio sangue,
saltou e, ao mesmo tempo, o regaço e os cabelos
lanhou, batendo o peito com indignas mãos,
e, queixosa do fado, diz "mas em tudo está
sob vossa lei. Meu luto há de ser lembrado 725
sempre, Adônis, e o rito anualmente redito
de tua morte será o sinal do meu pranto.
E o cruor uma flor será. Outrora a ti
femíneos membros converter em menta olente.
Perséfone, foi lícito: o herói cinireu, 730
de inveja, verterei?" Em seguida aspergiu
no olente néctar o cruor, que, ao ser tocado,
intumesce tal qual, da fulva lama, diáfana
bolha costuma advir, nem mais do que uma hora
demora até que flor do sangue, de igual cor, 735
surgisse, tal e qual romã, que oculta os grãos,
sob dúctil casca. Breve é, contudo, o seu prazo:
pois, mal fixa e bem leve, sacudida, cai,
levada pelos mesmos ventos que a nomeiam.
Livro XI
Enquanto com tais cantos as selvas e as feras
e os rochedos em marcha o trácio vate atrai,
eis que do alto de um monte loucas moças cícones,
com os peitos cobertos de pele de feras,
Orfeu avistam a cantar, tangendo cordas. 5
Uma delas, cabelo ao vento leve alçando:
"eis", diz, "aqui está quem nos despreza" e contra
boca cantante do apolínio vate arroja
tirso, que envolto em folhas, toca-o, sem feri-lo.
Outra lança uma pedra, que ainda em pleno ar, 10
a harmonia da voz e da lira refreia,
e, como um súplice por tão ousada fúria,
aos seus pés cai. Porém crescem as temerárias
rixas, esvai-se o senso e reina insana Erínia;
e armas o canto anularia; mas ingente 15
clamor, a flauta berecíntia em curvo tubo,
tímpanos, palmas e alaridos das bacantes
o som da cítara abafaram. E enfim, pedras
não ouvindo se tingem com sangue do vate.
Primeiro, ainda atônitas com a voz que canta, 20
aves sem conta, cobras e o tropel de feras,
glória e triunfo de Orfeu, as Mênades trucidam.
Com mãos ensanguentadas, logo Orfeu perseguem
e unem-se como aves cada vez que avistam
ave noturna voando à luz; ou no anfiteatro, 25
na arena, de manhã, um cervo vai morrer,
presa de cães; o vate atacam com folhados
tirsos, que para este ato não foram feitos.
Com terra, pedras e ramos de árvores alvejam-no;
e pra que não faltassem armas pro furor, 30
bois sulcavam ao léu o solo com arado,
e com muito suor, colonos musculosos
cavavam dura terra, a messe preparando;
fogem, o bando vendo, e abandonam as armas
do seu labor; e jazem, dispersos nos campos, 35
sachos, grandes rastelos e enxadões compridos;
Após pegarem tudo e estraçalharem bois
de chifre em riste, a morte do vate perseguem,
e ele, estendendo as mãos, pela primeira vez,
dizendo vãs palavras, nada a voz movendo, 40
as sacrílegas matam; por tal boca, ó Júpiter,
pelas pedras ouvida e entedida por feras,
sua alma exalou-se, evolando nos ares.
Orfeu, as aves tristes, o tropel das feras,
rijas pedras e, sempre teus cantos seguindo, 45
selvas choraram-te; caíndo as folhas a árvore
tonsa a copa enlutou; até os rios com lágrimas,
dizem, se encheu e ocultas em seus negros véus,
Naides e Dríades soltaram os cabelos.
o corpo se espalhou; cabeça e lira, ó Hebro, 50
acolhes e (milagre!) ao fluir na corrente,
flébil acorde a lira chora e flébil língua
exâmine murmura e ecoa a margem flébil.
E então, ao mar levadas, pátrio rio deixam
e alcançam litorais de Lesbos em Metimna. 55
Aqui cobra feroz ataca na areia
a cabeça e os cabelos úmidos de orvalho.
Enfim, acode Febo e, prestes a morder,
a impede e em pedra a goela aberta da serpente
congela e, como estava, enrija a boca hiante. 60
A sombra desce à terra e, os locais antes vistos
reconhece, e ao buscar pelos campos dos pios,
encontra Eurídice, e a abraça com avidez.
Aqui algumas vezes juntos andam ambos,
ora adiante ela vai, ora ele a precede, 65
e à Eurídice volve o olhar sem medo Orfeu.
Públio Ovídio Naso (Sulmona, Itália, 43 a.C.; Constança, Romênia, 17/18 d.C.), referenciado tradicionalmente apenas como Ovídio, foi um dos principais poetas da antiguidade clássica romana. Metamorfoses, considerada sua obra magna, tem seu contexto de produção situado no ano 8 d. C.
Raimundo Carvalho é poeta, tradutor, ensaísta e autor de literatura infanto-juvenil. Publicou, entre outros, A gruta da inveja: interpretação e tradução de poesia latina clássica (Inmensa Editorial, Coleção Atravessamentos impossíveis, 2022) e Reza mansa (Inmensa Editorial, Coleção Infame Ruído, 2024).
Comments