
Jardel no no atelier Egas Francisco - foto: rede social do autor
Ser de Exceção
Jardel Dias Cavalcanti é um dos poetas brasileiros em atividade mais férteis e instigantes. Nasceu em Mariana, nas Minas Gerais, e vive em Londrina, onde é Professor na UEL (Universidade Estadual de Londrina). Historiador, pesquisador e ensaísta dedicado às artes modernas e contemporâneas. Tem há alguns anos um trabalho notável de editor gráfico com a Galileu Edições. Sua poesia, ainda inédita em livro, distingue-se pelo alto teor de cultura artística em geral, letrada e poética, em especial. Seu estro é atravessado por referências clássicas, barrocas, românticas, modernistas e contemporâneas fundamentais. Seus poemas “escrevem” Da Vinci, Guido Cavalcanti, Bach, Rembrandt, Rilke, Eliot, Trakl, Murilo etc. O escopo universalizante dessa poesia, cosmopolitano, é um dado que a distingue. Nesse escopo está sua identidade estrangeira em meio a um um cenário poético muito pedestre no país, familiar, vulgar. JDC ocupa um lugar de honra em meio a poetas que compreendem e praticam poesia como arte elevada. Sphera Habitações do Encantado celebra esse Ser de Exceção, como se dizia sobre uma singularidade no tempo de Cruz e Souza. Confira, com exclusividade, 28 poemas totalmente inéditos de sua autoria.
Anelito de Oliveira
A queda do poeta
Quando caiu e foi recolhido
O hospital já não lhe servia para nada
Levaram-no para o necrotério
Ali ninguém lia poesia
O seu nome lhes era desconhecido
Lá ficou, o poeta, como um indigente qualquer
Do seu bolso roubaram a caneta-tinteiro
Apesar de morto, mais do que todos,
Seu rosto espelhava profundos sentimentos humanos
A vivacidade radiante dos que nunca morrem.
Ocaso
Uma flor que fenece
Deixa no ar um perfume fúnebre
O anúncio do fim
Sempre vem junto com uma luz irradiante
Que acaba, por fim, em ocaso.
Depois do fim
O mundo começou sem a raça humana,
E acabará sem ela.
O silêncio das rochas
E a ventania sobre as árvores
Os rios correndo impassíveis
Com folham levadas pelas águas
As montanhas dormentes gigantes
E a rasteira areia dos caminhos
Os frutos maduros que cairão no solo
As cachoeiras com suas águas geladas
Iluminadas por delicados raios solares
A grama saliente e desconexa
Os trovões e tempestades ardendo
Os calmos remansos que seguem em frente
O orvalho como cristal sobre as folhas
Os troncos fortes mortos pelo tempo
O cheiro das plantas exalando sob sol tórrido
As chuvas encharcando a terra
Os desertos abandonados à areia quente
Os oceanos imensos até o horizonte
Um silêncio nunca visto nas noites
A imensa Via Láctea um córrego de luz
Um céu estelar sem deuses
E sem a esperança dos homens
Depois do fim.
Longo é o tempo geológico da terra
O homem um animal recente
Que logo desaparecerá
Como um rosto desenhado na areia.
O papel aceita tudo
Um desenho de Rembrandt
Uma casinha com chaminé feita por uma criança
Os versos de amor de um adolescente
O “soneto de separação” de Vinicius de Moraes
A lista de compras do supermercado
O esboço de um romance de Stendhal
O nome e o número do telefone da nova paquera
O endereço do advogado que cuidará do divórcio
As notas musicais de Beethoven
O dia e o horário de um voo para Europa
A receita de um prato ditada por um amigo
A lista dos livros que gostaria de ler
Uma oração que lhe dará dinheiro
A última canção que você compôs
A anotação de Proust de uma lembrança
Um nome para entregar a um assassino de aluguel
A carta de um suicida antes de saltar pela janela
O óbvio que precisa ser dito
A cópula com a traça que o destruirá
O desenho do mapa da cidade
O projeto da casa nova
As anotações do psicanalista sobre suas neuroses
O parecer de uma tese
As recomendações para a empregada
O telefone de uma boca de fumo
O esboço de um poema que lhe veio à mente
O papel aceita tudo
Até ficar em branco diante da falta de inspiração.
Bandagem
Folhas jogadas pelo vento
Não quebram o silêncio
Caindo e colidindo contra o chão.
São como um anjo com asas de seda
Te tocando no outro mundo.
Secas e de cor ocre
O mais sensível cuidado
Que protege a relva
Da lâmina bruta da luz solar.
Finados
Eles não estão lá
Sob a plaquinha com duas datas
É muito pouco para aquelas vidas.
Um estrondo nos meus tímpanos
E não saio do lugar – não arredo o pé –
Pois eles não estão lá
Como estão dentro de mim.
Partiram e me quebraram
Estilhaços por toda parte
Uma criança jogando uma pedra na janela
E o coração de vidro se esfacelando.
Nada do que eu sinto lhes toca
Sob a placa imperiosa do silêncio
Enquanto grito em cada órgão
E músculo triturados
O seu não esquecimento.
Tão vivos em nós hoje – um aperto na alma –
Tanto quanto quando aqui estavam.
Não lhe darei a flor da presença
Hoje que os quero esquecer
Cansado de tanto os lembrar.
O carro e os desordeiros
Os desordeiros respeitam os automóveis lindos.
Você pode ser esfaqueado por um deles
Ou até espancado numa rua escura
Mas seu Mercedes nunca sofrerá um arranhão.
Um carro elegante, máquina trepidante prateada,
Com janelas de vidro inquebrantável.
O teto delicado, sua capota conversível,
Paralamas, capô, portas, faróis, para-brisa
E o requintado emblema do radiador:
Tudo para um design sem igual.
Essa obra de arte impõe respeito.
Diante de um carro de verdade
Os desordeiros não são como ratos
Que fervilham nos armazéns
Dilacerando sacos de farinha
Num estrago endiabrado.
Um carro desses numa rua pública,
Mesmo com todas as táticas de guerrilha
Disseminadas nas grandes cidades,
Uma máquina como essa
Está livre de bastões, martelos ou bombas.
Esse tipo de carro
É como um homem bem-vestido,
Maravilhoso e insinuante.
Quem o arranharia?
As pessoas se encolhem diante da beleza,
Inclusive os bandidos.
Foucault, amato mio
Com correntes e chicotes
Em saunas de São Francisco
Em bares noturnos olhando
Belos troncos masculinos
Foucault viveu livre.
E dizia, diante da ameaça mortal:
“Morrer pelo amor dos rapazes:
O que pode ser mais belo?”
Amava a liberdade
Por isso tentou suicídio.
O discurso médico era poder
Uma das grades da prisão
Do discurso da verdade.
Contaminado pelo vírus mortal
Era ainda visto em saunas e bares
Um ano antes de morrer.
Os braços fortes de jovens
Ardentemente o premiavam
Com a vida que lhe restava.
No tempo de Shakespeare
As águas do Tâmisa eram fétidas, Cheias de excremento e lixo, Alimentando ratos e causando doenças. Esplêndidas embarcações dos ricos, Inclusive a da própria rainha, Cruzavam sua superfície prateada Em época de festas, em meio à músicas E deslumbrantes fogos de artifício. Em Londres viviam 200 mil pessoas Numa confusão de passagens e alamedas. A vida era cosmopolita e colorida Por pessoas refugiadas de perseguições Religiosas de toda a Europa. A maioria vivia em cortiços miseráveis, Cheios de lixo, com ruas emporcalhadas
inundadas de Excremento e urina,
onde proliferaram ratos Negros
e seu parasita letal, a pulga, Transmissora da peste bubônica. Sem sistemas de esgoto, O fedor de Londres era sentido A trinta quilômetros de distância. Foi quando o Fausto de Marlowe foi encenado Que Shakespeare chegou na cidade. Era um ator mediano, mas, como sabemos, Com garra para se tornar o maior dramaturgo De todos os tempos. Foi nessa época, perto de onde hoje Fica a estação de metrô Liverpool Street, Num lugar abandonado, cheio de mato, Ossos e todo tipo de detritos, Que Burbage, jovem ambicioso, Construiu a primeira casa de espetáculos, Que orgulhosamente denominou de Theatre. Uma "casa de peças" era uma ideia original Num tempo em que a arte dramática Era mostrada no pátio das hospedarias.
Recital para surdos, rosas e John Cage
Esse amontoado de surdos
Colhendo palavras para si
No poema que é feito
Para quem não o espera ouvir.
No jardim elas florescem
Ao olhar descuidado dos passantes
O poeta observa suas formas e cores
Se enternece com as pétalas que caem
Sabe que seu breve perfume
- esse alento para a dor –
O vento levará para
Nunca mais retornar.
John Cage atravessa a Av. Paulista
Todo aquele barulho de carros e vozes
Não o distrai do seu poema
De silêncio.
Mil flores para Odete
“A dor é uma flor como aquela.” (Robert Creeley)
Foram tantas as flores. Muitas.
Inesperada quantidade.
Uma explosão de cores
rodeou seu corpo pálido.
Eram pétalas rosas, amarelas, vermelhas
perfumando seu sonho cálido.
Cada uma das flores ardeu em amor e dor
por seu silêncio irremediável.
Você não viu como partiu corações,
abriu feridas e liberou cristais de lágrimas.
Não vivias mais nas grades do Tempo
enquanto nós perdíamos a razão
por sua viagem eterna.
Estavas coroada de flores sublimes
- um jardim imenso de perfumes -
que lhe era indiferente.
Eras um vaso de porcelana
quebrado em mil pedaços.
E aqui ficaram aqueles
cujo amor – a grande dor -
a ausência presentifica.
A memória – tesouro indestrutível –
nunca nos cairá bem.
Mishima: seda e aço
A primeira ejaculação de Mishima
- essa descoberta do corpo sexual –
foi diante de uma fotografia
de São Sebastião de Guido Reni.
Excitado com a pintura barroca italiana
mais do que com as gravuras eróticas japonesas
o samurai-escritor perdeu-se em luxúria
frente à glorificação do nu ocidental.
O corpo musculoso, prostrado em abandono,
mergulhado em voluptuosa agonia,
lhe transmitia desejos intensos
e corrompia seu corpo de seda e de aço.
Diante de Delacroix
Atravessou os corredores do museu
E, enfim, postou-se frente à grande tela:
Um prazer brutal naqueles corpos
De maligna magnificência.
Ombros nus uniam de forma quase vulgar
A humanidade e a eternidade.
Gestos de pura força e sensualidade
Pediam vazão para além de si mesmos.
Uma tela quase toda vestida de brilhos
Com finos tecidos de seda e dourados
Resplandecendo como um meio dia de verão.
Aqui e ali um arroubo de laca preta,
Negra como azeviche, não impedia
Que uma pincelada longa se expandisse
Oscilando de um lado para o outro
Como um pássaro majestoso
Que sobrevoa com asas douradas
Os ruídos e os alvoroços do mundo.
E todas as cores - ouro e vermelho
Púrpura e verde, amarelo e azul-escuro -
Ampliando-se umas nas outras
Em ondas periódicas de silêncio congelado
E estrondos de trovão
Produzindo no espectador
Arrebatado de seu fôlego
Uma expressão da mais obscena
E indisfarçada embriaguez.
Cinq à sept
(encontro de fim detarde)
Dentro do arrojado apartamento
Encontra-se a enorme cama
Forrada por um lençol de seda
Com delicados motivos japoneses.
Trair é uma arte como seduzir também.
E os tantos corpos que ali se deitavam
Eram como os mármores brancos das Vênus
Eternizadas nas artes célebres.
Como um perito criminal
Que observa atentamente
Um corpo nu em abandono
Ao lado da cama se postava ele.
Um connoisseur da beleza feminina.
O homem que amava as mulheres
Despia-se vagarosamente para
Servir de coberta àqueles corpos.
A fome que diariamente o perseguia
Era como a de um poeta
Que de um verso a outro persegue
A beleza absoluta da forma inalcançável.
Amsterdam blues
Sentado à beira do canal observa
- a água parada afoga um pássaro
E engole sua matéria sem estardalhaço.
O tempo para alguns passos pela cidade
Ou estes anos todos da vida:
Algo ainda lhe importa?
Todas as marcas criadas no corpo
E a alma banhada nos percalços.
Uns traçados de nuvens no céu e o vento frio
Além do peso da noite sobre as águas.
Nenhuma outra alternativa de cenário.
Toca no seu sax “The Pink Panter Theme”.
Atrai uma moça melancólica de belos olhos
Dessas que andam pela rua à meia-noite.
O artista precisa de uns trocados – e amor –
Mas só recebe no seu velho chapéu
Um bouquet de rosas amassadas.
Chet Baker em Amsterdã
Com sua voz alquebrada
Canta as agruras do peito
Olhe como ele caminha
Sem direção por toda a terra
De tempos em tempos
Ensaia um voo – perdido –
Num solo de trompete
Não sabe mais das alturas
Por isso canta - quase um sussurro -
Seu melancólico blues
Carrega um peso no coração
Quando despenca da janela
Direto para o chão.
Red light in Amsterdã
Um facho de luz neon vermelho
Tinge a água do canal
O vento o faz dançar
Como em um espatulado impressionista
A tênue luz ressoa e vibra
Acendendo com fogo o olho
De um rapaz desavisado
Que perdido na obscuridade
Vasculha cada cabine
E sua trêmula escolha
Recai sobre um travesti
Que o faz descobrir
O lado soturno da cidade
E de si mesmo.
Morte ocre na tela
Hora do barro tingir a tela
E o sangue dos mortos
Escorrer pelos pincéis.
As invisíveis almas gritam
Ao pintor uma redenção
Quando ao pó retornam
Sob a força tirânica da avalanche.
Os traços fortes da espátula
E o gesto bruto das corredeiras
De tintas se avermelham
Na ocre dor dos submersos
Na tela branca do Nada.
Esses bonecos de argila
Sufocados em mercúrio
Arrastados na maré da morte
Sob impiedosa indiferença
Clamam um último suspiro ao artista:
O protesto da pincelada comovida
Pivete e madame
Num ballet de passos rápidos
Move-se entre carros
Até encontrar a caça perfeita.
Um sorriso doce que esconde
Entre o pulso e a camisa
A faca – fria enferrujada lâmina.
Uma porrada no vidro
Destroços brilhante no asfalto
E no rosto de Madame
O gelo ameaçador do metal.
O tempo é relativo
Para Madame é como se o sinal
- eternamente parado –
Não saísse do vermelho.
Tão ágil sabe Pivete o que quer
Brilhando no pescoço alvo
O colar – pérolas feitas para adornar.
E a mão avança na bolsa
Susto e terror de Madame
Paralisada em desolado olhar.
E em novo ballet entre carros
Dança sua fuga o moleque sorrateiro
À luz fria do sinal amarelo.
Morre de Arlequim, de Picasso
Depois que ele morreu
- fechou os olhos –
Não se exibiu mais pelas ruas.
Os vivos prestaram atenção ao fato.
Foi a última homenagem feita ao morto
Testemunhar o evento fúnebre.
O Arlequim não regressará mais
Como criatura ligeira que era.
Só nos lembraremos dele na pintura.
Esse ectoplasma ainda pode ser visto
Em algum museu do mundo.
Luva de pelica
Esses possuidores de pura carne animal
Jamais conspurcados pelo intelecto
- jovens valentões, marinheiros, policiais, pescadores –
Olhá-los eternamente de longe – que se pode fazer?
Com apaixonada indiferença
Nunca trocar palavras com eles
No entanto – que verão intenso prometem
Se a graça nos for dada de tocá-los.
Vestiário
O cheiro rosa-pálido
Como o de leite quente com açúcar
Daquela multidão de meninos
Seus corpos nus à espera do chuveiro
Empurrando e se acotovelando uns aos outros
Com suas costas pálidas e bonitas
Cobertas de suaves penugens
De ombros impacientes e de peles aveludadas
Que se roçam no empurra empurra
E um deles tremendo em sua nudez
E em seu perene e violento desejo de VER
Empalidecido na antevisão do seu primeiro amor.
Elã vital
Quando o vi pela primeira vez
Meu coração levantou um clamor dentro do peito
Ele havia tirado a camisa
Sua pele clara parecia imaculada
Aquela escultura tão belamente desenhada
Nos arrojados contornos do peito e mamilos
Era de uma perfeição que só os gregos criaram na arte
Exalava um suor - gotas de diamantes sobre a pele -
Que poderia ser cheirado à distância
Ostentava uma indolência arrogante
Tão frequente nos possuidores de belos físicos
No seu rosto olhos faiscavam como se desafiassem o inferno
Suas pupilas refletiam as nuvens e o céu azul de verão
Nos seus braços fortes valeria a pena tatuar uma âncora
A admiração que causava em quem o via
Não era apenas pela beleza física
Era admiração pela juventude, pela vida,
Pela superioridade pródiga, luxuriante e impertinente
De uma energia profundamente esculpida
E que se espalhava cintilante, como a luz do sol,
Dos braços ao peito, do tronco às coxas.
Era a força da vida!
A abundante, pura e extravagante força da vida!
A vida em excesso, em transbordamento,
Com sua sensação de violência sem propósito,
A vida existindo por causa de si mesma
Em sua exuberância insatisfeita, negligente,
Ele não se dava conta disso
Da invasão furtiva da força que se apoderava do seu corpo
Que poderia se despedaçar através dele,
transbordando na sua carne, através de um brilho intenso.
Ah! Quantos meninos e meninas cambalearam para atrás,
Apenas ao olhar seu corpo movendo-se contra o ar
Quanto a mim, tive uma ereção
Desde o primeiro momento em que o vislumbrei
Contemplar seu corpo nu, era o que eu deseja
Que espartano movimento de autodisciplina
Me impunha o reverso de uma obsessão:
“Seja forte!”. No entanto, insano, eu estava pronto
Para deixar aquela força também se apoderar de mim,
Me fazer renunciar, voluntariamente, a todo o resto.
*“O princípio de uma força criativa governando a vida não pode ser negado. O dado primário – ou instintos irracionais – é a força vital criativa” - Wilhelm Reich com certeza sendo bergsoniano.
Funerária estelar
Aqui é o fim.
O início do Nada.
Os físicos estudam a possível
Eternidade dos átomos, mas...
Nossa matéria foi gestada
No interior das estrelas
Mas como estrelas morrem
O átomo terá também sua morte?
Frente aos olhos úmidos
Dos que se despedem
Deu corpo se funde com a terra
Em um abraço de partículas.
Esse acontecimento elementar
Te fará voltar àquele início
Como poeira cósmica cintilante?
És pó e ao pó voltarás?
Aurora boreal
Uma aurora boreal é sempre artificial
Tanto como um anúncio luminoso de Las Vegas
O vermelho – de um brilho incompreensível –
É uma cor de mentira.
Vê-se pulsar a emoção, como quando se está rodeado de mulheres,
Mas não como quando metido num avental de cozinha
Se lava pratos.
A cor pode cair como um estrondo,
Como quando lançamos fogo à própria casa.
E você, filmado em segundo plano,
Se enternecer como se encarnado
Na biografia de um cadáver.
Nada mais pode ser.
Uma aurora boreal é sempre artificial
Tanto como um anúncio luminoso de Las Vegas.
O vermelho – de um brilho incompreensível –
É uma cor de mentira.
Você pode se enternecer,
Vendo a cor cair como um estrondo,
Como quando lançamos fogo à própria casa.
Nada mais pode ser.
Torniquete hermenêutico
O moinho da interpretação
Sua verdade fechada como um punho
De um boxer desesperado no último round
Socando forte, rápido e dilacerante
Naquilo que é reservado, misterioso
E de sentido inverificável.
O que se cala
- Manter o silêncio é a arte –.
A opinião sobre isso e aquilo
Um mero grão de areia
Nunca a chave
Que abre a senha secreta.
Ah! O bastardo diante do rabo do cometa,
Da via- láctea, esse farol do céu,
Impossibilitado de navegar além
com chumbo incrustado na asa
Destroça a imagem cósmica
Com sua pata negra
Furiosamente derrotado
Pelo mistério
Sempre.
Corpo de bombeiro
“E eu já não tenho medo de me afogar
Conheço um moço lindo que é salva-vida”
(Caetano Veloso)
Não adianta se atirar nas ondas do mar
Que fim impossível você busca
Eles imediatamente aparecem
Corpos musculosos em sungas vermelhas
Que força e maestria no nado
E te seguram e te abraçam por trás
E roçam a pele queimada, firmeza dourada,
na sua brancura pálida
E o que mais se pode querer
Agora sim – sobreviver –
Você que queria morrer
Simula um desmaio
E espera o beijo da salvação
Daquele moço a perdição
Que te devolve o ar e te mostra
Como é doce ser salvo do mar.
Sob o sol de Paganini
Todo domingo escrevo um poema
para não me dar um tiro na cabeça.
Amasso os jornais lidos - ao lixo, merda!
Notícias do desamparo humano
invadem meu café da manhã
e nada têm a dizer aos meus cactos cultivados
nem às flores banhadas em sol radiante.
O desconforto em letras impressas
quer amargar as coisas da casa
enquanto as rosas exalam magnífico perfume.
Sob as peças mágicas de Paganini
- refúgio matinal e elevação –
deito a cabeça no encosto da poltrona
como quem delira de prazer
fugindo do apocalipse anunciado.
Letras impressas – notícias, apenas
notícias – jamais ganham a guerra
contra a Poesia.
Meu cão dorme à sombra da almofada macia.
“O escritor, como diz Proust, inventa na língua uma nova língua, uma língua de algum modo estrangeira. Ele traz à luz novas potências gramaticais ou sintáticas. Arrasta a língua para fora de seus sulcos costumeiros, leva-a a delirar.”
Gilles Deleuze
Poemas com a clareza e a ressonância de água descendo cachoeira, enquanto constrói trilhas entre artes. Belos.