APRESENTAÇÃO: ANELITO DE OLIVEIRA
FOTOS: CÉSAR TRÓPIA
Há poetas que encaram o ofício como ofício mesmo, sem por quês nem comos e muito menos para quês, sem nada além do que se vê, Esteves que são: sem metafísica.
Romério Rômulo, mineiro de Felixlândia, é dessa linhagem, produtor constante de poemas que glosam o mundo fervendo, suas camadas gasosas, e gozam, assim mesmo, da cara dos patéticos reificadores da história.
Foi, ao longo das últimas quatro décadas, a outra voz renitente, em combate, da poesia em Ouro Preto ao lado do agora encantado Guilherme Mansur, seu grande amigo.
Tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente, depois de uma vida ouvindo falar dele direta, pela leitura de seus textos, e indiretamente, através de conversas, exatamente no último encontro com Guilherme, durante “O evento Mansur”, happening que realizamos em homenagem ao tipoeta na Livraria Outras Palavras em junho 23.
Que figura, o camarada Romério!
Economista, seus poemas nos dão mesmo a dimensão de sua largueza, da economia pré-capitalista (hélas!) do seu estro, quero dizer: do caráter antifetichista que estrutura seu “percepto”, toda sua barroquidade.
Matéria bruta, seu título publicado pela Altana em 2006, é a ponta de um iceberg turbulento no qual se destaca um título cujos 40 anos de aparecimento completaram-se este ano: Anjo tardio, editado pelo autor em 1983 em Ouro Preto.
O primeiro Drummond, do “Poema de sete faces”, aí reluz, ou rereluz: em 1979, Romério publicou Só pedras no caminho pedras pedras só pedras nada mais, esse saboroso ressoando Evaldo Braga, edição da então belorizontina Lemi.
Além de Drummond, Cláudio Manoel da Costa, Murilo Mendes, Affonso Ávila e Sebastião Nunes são outras referências notáveis do poeta, que não os emula, mas antes com eles confabula, maquina, conspira contra a hegemonia republicana das letras brazílicas.
Em 1988, portanto há 35 anos, Romério Rômulo assinalou a historicidade mineira do seu gesto de modo mais categórico ao prefaciar a edição d´O elixir do Pajé, poemas eróticos do romântico Bernardo Guimaraens, pela legendária Dubolso de Sebastião Nunes, que também publicou outros dois belos volumes de Romério: Bené para flauta e Murilo, de 1990, e Tempo quando, de 1996.
Atualmente, RR, professor aposentado da UFOP, tem publicado diariamente seus poemas no CGN de Luís Nassif, afirmando, em alto e bom som aos ouvidos moucos da nação, que a poesia, como se pensava no tempo de Rubem Braga, é mesmo necessária – mais necessária até que o nacionalismo merdavarelo!, lembrando Caetano no Pasquim.
Sphera convidou o poeta a selecionar alguns dos seus poemas de modo a nos presentear com uma pequena visita guiada a sua poesia nesta edição em que exaltamos Mansur, com quem RR continuará convivendo nas noites e dias ouropretanos.
Poema da inesquecível mulher
Eu, vero, me bati na tua porta:
mal caibo em mim, sem ti
no que importa
Sou trava de uma casa redigida
no vão da tua mão subtraída
A sede que me seca e que me late
é o cão da tua mão que me abate
Tivesse o sumo, a boca, o teu retrato
teria o que não sou, quadro abstrato
Pela manhã mais brusca e ressurgida
vou me contar e te entregar a vida.
E como eu morresse a cada passo de Minas
E como nós 2 só cabemos no escuro
num rasgo da paixão desesperada
pedaços estridentes de um muro
que atravanca o ritmo da estrada
Pobres nós 2, estranhos e mortais
sabemos que a vida é força quente
estranhos dos infernos, e bem mais
que o nosso amor é fogo e é serpente.
2.
E como eu morresse em cada passo
de Minas, caminho da sangria
na cara de um Cristo em estilhaço
com um cravo na mão já toda fria
E como eu só perdesse a carapaça
nos pedaços do tempo que me cria
nestas ruas verdugas de trapaças
na cara de um Cristo em agonia.
3.
Uma cruz por aqui toda é fumaça
de uma sombra que chega e nunca passa.
A máquina do mundo (pós-Drummond), 2
E como eu não coubesse na montanha
de tanto entardecer aqui no alto
que sobra em reticências de navio
E como eu não soubesse de um braço
que no desvio da vida me coubesse
em tão mortais canções sem voz e pátria
E como tudo aqui só renascesse
nuns rios podres e sem águas rasas
eu pude me rever sem preconceitos.
Olhei meu antro, me calei de medo
como em quinhões de pedra eu me comesse
em cada gomo e me arrebentasse
Sobraram duras missões em minhas mãos
cobraram ouros que paguei sem medo
e me retive sempre em olhar pra nada.
As coisas de Caravaggio, 3
há coisas como o dia, como a noite
como as maçãs dormidas no seu prato.
há coisas pelos anjos, que intranquilos
revelam um macabro sobre tudo.
há coisas que são poucas e devassas
há coisas muitas, pedras, feitas breves
numa sangria de cuidado e morte.
que coisas arrebatam e nos queimam
de pura dor e sofridão intensa?
as coisas reveladas são mais duras
que a irrevelada ação que as sustenta?
há coisas tão medonhas enterradas
e outras só encanto nos seus vôos
que ávido de tudo me carrego
neste mar de sangrias infundadas.
umas coisas me dizem que sou bruto
tantas outras me regem que sou sábio
e dilaceram meu ânimo de bicho
ou corrompem um ombro puro osso.
todo corpo regado de martelos
que são coisas de ferro desterrado
só me traz um mormaço de peleja
pelas velas que pisam sobre mim.
quanta coisa me faz ser anjo podre
ou demônio marcado de ciências?
neste prato de coisas caravaggio
a vida é um pecado sem final.
Me falta tempo pra morrer agora
1.
Eu conto o teu corpo num segredo
De pedras e estradas colossais
Te entreguei o meu olho e o meu enredo
Me enterrei nos teus braços abissais.
Quanto de ti eu como num levedo?
Quanto de ti eu bebo nestes sais
De lamas e amores que não mais?
-Vais me deixar no frio do meu medo?
2.
São tantas as estradas que me chegam
São tais os odores que me abatem
Que não há tempo. E eu não sou daqui.
Verdade é mais. Os cães nunca me latem
Verdade é só. Os cães nunca me negam.
Tudo é uma sombra. Eu venho e fico aqui.
80 tiros mais 1 que te espera
quando a cidade se apaga e te come
de dentro pra fora, de fora pra dentro
-que diferença faz?-
tua vida não vale.
pode ser 1 atirador, 2, dezenas
e teu instrumento musical será nada
mais que um traço de notícia.
-mataram um negro, músico, com 80
tiros. outras tantas balas sobraram para
outros tantos negros que aqui venham.
e muitos serão os negros e muitas serão
as balas. mas serão tantos os negros e tantos
negros virão que as balas vão acabar de vez.
sei disso por notícias duras.
João Cabral aportou no Recife em 09/01/1920
1.
os mortos que fendem toda lâmina
os guizos que arrastam todo estado
as tensas visões do já passado
o gosto que brota das derramas
2.
as rúculas mais tardas e placentas
os cactus com as carnes de um rio
sabido que só cabra é calafrio
sabido que só pedra o que aguenta
3.
sobre os magros porvires das idéias
por saber que cabral nasceu da lama
do recife brotado nas ninféias
4.
rasgado pelo senso de uma linha
ancestral pelo plano e pelo fio
da densa vastidão que não continha
5.
foi puro cabedal, foi quase esboço
foi feito joão cabral, foi feito osso.
"a vida só é bela para os ressuscitados"
o meu verso é um estrago
na linha do meu pescoço
o meu dente, só um bago
o meu corpo, puro osso
minha boca de ariranha
minha mão atropelada
minha ferida medonha
a minha pele rasgada
renasço. a cara lamenta
pelo buraco em que vim
e a minha vida nojenta
explode dentro de mim.
bento rodrigues, mariana, mg
1.
a dura terra de minas
é mordida pelo ódio
da riqueza apodrecida
uns bolsos ficam tão cheios
de ouro, ferro, alumínio
topázios imperiais
terras raras, cal, nióbio
de carvões e gandarelas
mais topázios e aguaçais
e tantas e tantas bocas
de quase nenhum pedido
que só lhes traz a valia
de arrancar estas terras
quando muito ganham a lama
requentada e apodrecida
que lhes corta a vida quando
comem as carnes, em queda
as águas se avermelham
as bocas se estrebucham
e os corpos entupidos
viram outros logo então.
2.
dura terra que me come
com uns bois enlouquecidos
e umas valas de ouro
a fazer o meu caminho
a terra que me recobre
sempre produz sobressalto
no meu olho de tormenta
cada montanha é novelo
que foi costurado longe
e aqui se desenrola.
3.
sobra o direito da morte
onde a vida sempre falta.
não cabe na ausência qualquer pétala
não cabe na ausência qualquer pétala
na gargalhada do olhar.
quantas princesas voaram
traduzidas, duras sépalas
muito antes de voar?
as princesas que aqui moram
são tristes só de pensar
e são tantas as princesas
todas elas sem lugar
tão princesas, tão princesas
na terra sem se deitar.
quantas princesas fizeram
um gesto de cada olhar?
quantas princesas morreram
nas dores fortes do mar?
quem sabe disso é o sebastião salgado
1.
400 mil mortos em ruanda:
a matança não importa
que há o suicídio de cobain
e a morte de jackie o.
2.
700 mil mortos em ruanda:
a matança não encanta
que há uma cruzada contra o declínio moral da américa,
eua.
3.
900 mil mortos em ruanda:
a matança não encanta
que há um julgamento
de o. j. simpson.
4.
1,5 milhão de mortos e refugiados:
ruanda não encanta
pois é possível vida humana
em marte.
5.
mais de 1 milhão de mortos em ruanda.
newsweek decreta: "o inferno na terra".
6.
por que as pessoas se matam?
em que a vida se acaba?
de tudo, a ruptura é a imagem.
só bebo rivotril pelo gargalo
1.
profundissimamente hipocondríaco
só bebo rivotril pelo gargalo.
a minha mão esclerosada, em calo
não se retrata em verso elegíaco
ao me mostrar a vida pelo talo.
eu, filho do carvão e do amoníaco.
2.
a moça sugeriu a camomila
pra segurar meus cálidos pavores
mas o diabo é sempre a minha vila:
aqui só servem rivotril. sem flores.
vou me casar com clarice
1.
se eu me casar com clarice
-scliar que me responda-
terei de usar terneta?
terei de virar asceta?
o que faço? desde onde?
crio alma de poeta?
2.
quando ela caminha pelos pastos
seus cabelos de nuvens, insensatos
os seus elos do mundo, tantos rastros
são cavalos que roem alabastros.
3.
depois de festas vadias
clarice e eu nos amamos
nos rasgos da noite fria
clarice e eu nos casamos
na borda da luz do dia
clarice e eu nos matamos.
a língua de camões
1.
mais amaríeis meu cortado canto
se mais soubésseis como sois amada
e navegásseis pelo meu espanto.
2.
se me amásseis tamanho eu vos diria
da dura solidão dos precipícios
da falsa imensidão dos sodalícios
da cortada razão dos meus ofícios
se me amásseis por certo eu vos diria
e a minha voz em voz por todo canto
decerto iria quebrar-vos em espanto.
3.
senhora, eu vos amei por tanto, em tudo
que de camões busquei o meu primeiro
estado de um estado verdadeiro
e vos cantei canções que são veludo.
4.
se os arcabouços meus em vós levásseis
e se dormísseis no meu louco porto
e mais amásseis o meu antro torto
e se acordásseis meu poema morto
faríeis meus duelos bem mais fáceis.
quem
1.
quem te montou?
-o avesso.
quem te bebeu?
-o deserto.
quem te nutriu?
-o espesso.
2.
quem te pariu?
-a terra.
quem te matou?
-o mundo.
quem te comeu?
-a guerra.
3.
quem te cortou?
-se/gredo.
quem te abriu?
-não cedo.
quem te calou?
-o medo.
4.
quem te reviu?
-o cujo.
quem te lambeu?
-o bicho.
quem te lavou?
-o sujo.
5.
quem te prendeu?
-o implícito.
quem te acusou?
-o tácito.
quem te moveu?
-o ilícito.
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