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A visualidade na escrita de Ana Hatherly por Fernando Aguiar


“A escrita nunca foi senão representação: imagem”

Ana Hatherly



Imagem de Ana Hatherly



A obra visual de Ana Hatherly é caracterizada pela gestualidade, pelo movimento da mão que cria inquietas linhas de texto, densas texturas, inomináveis volumes, múltiplas formas que continuamente se (trans)formam, que sugerem itinerários, significações diversas, procedimento para transmitir graficamente uma poética que, sendo também verbal, se metamorfoseia e se evidencia na visualidade. Nas caligrafias, as palavras/versos são inscritos na página como trilhos a percorrer ao sabor da “imaginação e da memória” de cada um.


Gestualidade decorrente do estudo da escrita chinesa arcaica, a partir de um dicionário inglês-chinês adquirido nos anos 60, da sua ligação com a filosofia oriental, e da pesquisa a partir de elementos caligráficos e pictográficos. O que resultou numa interpretação muito própria desse processo de transmissão de informação e de conhecimentos, evoluindo na altura, por depurada síntese, para uma representação mais geométrica, originando uma espécie de novo abecedário baseado na organização de oito caracteres que intitulou de “Alfabeto Estrutural”, publicado na revista Operação 1 (1967) e que, não representando estruturas fonéticas ou especificamente linguísticas (…) são já uma forma de linguagem”, segundo Hatherly (1973: 3-9). O pressuposto foi tornar a escrita ilegível para apenas poder ser observada, reescrevendo assim uma escrita que “provoca o acaso, suscita o fortuito, colhe o inesperado mesmo dentro do conhecido, não rejeita o inexplicável, o ambíguo, o incompreensível”. A imagética dos ideogramas terá provocado na autora a vontade de acrescentar uma carga visual na poesia que então escrevia.


Não tendo mantido uma relação muito próxima com o concretismo brasileiro (exceto, talvez, pelo minimalismo nos vocábulos utilizados e pela espacialização entre as palavras, criando silêncios), Ana Hatherly enveredou por uma linha verbal mais “literária”. A partir da segunda metade dos anos 1960, com a pesquisa pictórica e a sua ligação a outros poetas que procediam a uma exploração da visualidade na escrita, começou a participar nas produções experimentais conjuntas reunidas sob o título de Operação 1 e 2 e, desde logo, como elemento proeminente do movimento da poesia experimental em Portugal. Tanto no aspeto da produção poético-gráfica, como na elaboração de textos teóricos que ainda hoje são fundamentais para se compreender a dificuldade no exercício dessa experimentalidade, pela primeira vez contemporânea daquilo que se fazia no estrangeiro, como para entender o silêncio repressivo da imprensa nos anos da ditadura.


Acrescente-se a isto um certo desdém com que outros escritores olhavam para este género de experiências de insubordinação verbal, na exploração da fonética, da estrutura do poema e da componente sonora das palavras. Essa espécie de ostracismo ainda se mantém, embora com contornos mais ténues, com muitos escritores a não verem com bons olhos a expressividade estética da poesia e os artistas plásticos a não reconhecerem a poética das obras visuais, ainda que sejam veiculadas através do desenho e da pintura. Considera-se que Language Art e Visual Poetry são conceitos muito distintos, porque num caso emerge de autores provenientes das artes plásticas, enquanto no outro é criada por artistas que derivam da escrita, quando em última análise a Poesia Visual é efetivamente uma arte da linguagem e a Language Art contém em si uma profunda poética na(s) forma(s) de se afirmar...


No final dos anos 1960 e início da década de 1970, Hatherly (1970) realiza alguns poemas experimentais com recurso à dactilografia, bem como os primeiros poemas com a utilização da letraset, utilizando um material inovador na época e que permitia exponenciar visualmente os poemas experimentais utilizando diferentes tipos e corpos de letras, que podiam ser quebradas, utilizadas parcialmente ou sobrepostas, aumentando de uma forma substancial a carga expressiva e a subjetividade de uma escrita que se assumia deliberadamente assémica. Essa linguagem contemporânea permitia “diferentes graus de legibilidade do texto” e constituía “um desafio à construção de significados”, conforme Hatherly (1975) escreve no prefácio de O Escritor.


Livro que é um dos mais criativos da sua produção visual, onde levou mais longe as experiências pictográficas e ideogramáticas, promovendo a ilegibilidade da escrita e a fragmentação da linguagem como processo de construção do texto, com uma desordeira liberdade no uso de técnicas e dos materiais (incluindo a utilização da cor – e terá sido das primeiras vezes que esse elemento gráfico foi usado em livro, num texto de criação poética em Portugal), à representação da figura humana em desesperados monólogos, diálogos incompletos (“Poeta chama poeta”?) onde o escritor lança para o espaço o seu discurso mas, em simultâneo, é invadido pelas palavras, pronunciações que pretendem romper a solidão, todos os géneros de solidão que se vivenciava na época. Subsiste a sensação de que, pelas especificidades referidas, O Escritor foi sempre desvalorizado, tanto do ponto de vista da poética intrínseca, como na inovadora eloquência gráfica. A própria Hatherly (1992: 84) considerou o livro “pessimamente impresso, sem controle gráfico nenhum. Foi um verdadeiro desastre”. Ainda assim, um “desastre” que, 40 anos depois, mantém uma frescura criativa e uma paradoxal atualidade pelo modo como se manifesta.


Se as letras e as palavras são sempre visuais na sua forma e representam signos através dos quais comunicamos, a exploração visual da semânticapermite um outro registo para quem tenha sentido estético. Os grafemas e os morfemas contêm uma configuração que os singulariza, com um conteúdo simbólico que os identifica e que contribui para se apreender a mensagem na sua plenitude. Sobretudo a poética.


As caligrafias de Ana Hatherly acabam por evidenciar essa expressividade ao constituírem, pelo modo como são dispostas na página, uma forma de reforçar visualmente o conteúdo das frases representadas. É uma escrita que se metamorfoseia em desenho e se transforma em imagem. O registo de uma estética que se traduz através do mecanismo inteligente da mão e que desenvolve um automatismo libertador da racionalidade do verbal para resultar na representação subconsciente do que pretende (ou não) enunciar, reforçando desse modo o discurso. Cria uma gramática própria onde o processo comunicativo se efetiva mais pela visualidade das linhas e não tanto pelas palavras que o compõem. Fluidez no ondulado do texto que muitas vezes configura contornos, representações que convergem para a intertextualidade. Nesse sentido, as caligrafias são uma provocação da autora para que o leitor recrie, por um processo mais inventivo, a sua própria leitura.


Entre 1965 e 1973 Ana Hatherly desenvolve uma intensa atividade literária, realiza dois filmes em Londres e produz a parte mais significativa da sua obra visual, presumivelmente também em Londres, da qual sobressaem as séries Mapas (1965-1973), O Escritor / O Jogo do Escritor (1967-1972), Metamorfoses da Romã (1971-1972), Retratos / Auto-retrato à la Füssli (1971-1973), Paisagem Interior (1971-1973), A Guerra (1972-1973), ou A Reinvenção da Leitura (1973), registadas em vários livros e catálogos.


Em 1974, Hatherly (1974) apresenta na Galeria Judite da Cruz, em Lisboa, um conjunto de pequenas obras visuais, que intitulou Paisagem Interior, realizadas “durante um período de grande isolamento em Inglaterra”, as quais revelam uma abordagem ao desenho onde, através de delicadas linhas, cria texturas visuais que sugerem densos volumes evidenciados por silenciosos e distantes fundos negros, numa área que algumas vezes não ultrapassa os 6 x 7cm. Apesar da ausência de texto, estas indizíveis tessituras geradoras de atmosferas ambíguas revelam a estrutura orgânica das caligrafias desenvolvidas por Hatherly (1975) no livro A Reinvenção da Leitura, que se tornariam nas mais icónicas obras visuais da autora.


Com o 25 de Abril, no contexto de profundas convulsões políticas, Ana Hatherly cria obras mais interventivas e relacionadas com a ação estética. Participa em três edições da Bienal de Veneza (1976, 1978 e 1980) e na XIV Bienal de São Paulo (1977), ano em que também participa na Alternativa Zero, organizada por Ernesto de Sousa na Galeria Nacional de Arte Moderna, em Lisboa. Durante esses anos a sua atividade artística abarca o campo da performance e da instalação, com as intervenções Rotura na Galeria Quadrum, em 1977 (relacionada com o Poema d’Entro, apresentado na Alternativa Zero cerca de um mês antes), a intervenção na exposição Mitologias Locais, S.N.B.A. (1977) e a exposição individual Desenho no Espaço, na Galeria Tempo (1979), instalação que surge também na sequência do Poema d´Entro e da performance Rotura.


No mesmo período realiza outros quatro filmes e cria um desenho-escrita com 10x1,5 metros, com que participou na Bienal de Veneza em 1980, desaparecido no incêndio que destruiu a Galeria Nacional de Arte Moderna, juntamente com as restantes obras da representação portuguesa na Bienal.


Um dos filmes, Revolução (1975), regista precisamente essa efervescência social e mais especificamente a saturação visual dos muros de Lisboa, pelo amontoado de cartazes que por vezes se sobrepunham e anulavam, daí resultando mensagens contraditórias, conflituosas e visualmente sufocantes. Toda essa tensão é reforçada pelo som estonteante das manifestações que se realizavam na altura. Criou igualmente outras obras visuais intituladas Revolução, que versaram essa temática tão marcante para Ana Hatherly. Em 2004 foi convidada a expor na Câmara Municipal de Lisboa, a propósito da comemoração do 30º aniversário do 25 de Abril, tendo apresentado duas novas obras realizadas para a ocasião, juntamente com outras já expostas anteriormente, como As Ruas de Lisboa, incluindo um poema-objeto de 1975, intitulado O fim da revolução.


Em 1977, e a partir desses cartazes de rua, quase todos de natureza política, arrancados das paredes, rasgados, dobrados, amarrotados e depois tornados a colar por sobreposição, Ana Hatherly (2004) pretendeu recriar o espírito caótico dos muros de Lisboa e “reflectir a violência psicológica e emocional da revolução”, ressignificando a (ex)pressão política dos mesmos através de imagens desarticuladas, fragmentadas e, em simultâneo, refletir um período da nossa história recente, acabando por configurar como que uma poética da revolução. Dessas colagens resultou a série As Ruas de Lisboa.


Na década seguinte procedeu a uma intensa e aprofundada pesquisa sobre a escrita e os “textos-visuais” barrocos, redundando essa importantíssima investigação na publicação de diversas obras, entre elas A Experiência do Prodígio – Bases teóricas e antologia de textos-visuais portugueses dos séculos XVII e XVIII (Hatherly, 1983), razão pela qual os anos 80 são parcos em obras visuais, realizadas pontualmente para participar em exposições coletivas.


No início dos anos 90, Ana Hatherly (2013) regressa à produção de obra gráfica,onde recupera a destreza da caligrafia sobre as manchas de purpurina na série Idade do Bronze/Idade da Prata/Idade do Oiro (1993), que prenuncia o cromatismo mais vigoroso do conjunto de obras realizadas após ter regressado da Índia, intituladas precisamente Viagem à Índia (1994-1996), nas quais substituiu o traço tão característico de obras anteriores pela pincelada curta e agressiva, e o negro da tinta-da-china pelo cromatismo mais vibrante do acrílico e da purpurina. Surgem contrastantes manchas de cor, pingos de tinta ou breves pinceladas que ora sofrem um arrastamento, ora são aprisionadas pelos contornos da esferográfica. Este foi o período onde a artista da palavra mais aproximou a sua produção criativa à pintura, ao que também poderá não ser alheio o facto de ter realizado exposições individuais (1997; 1999) e participado em várias coletivas.


Com as séries Labirintos Urbanos (1999) e Hand Made (2000), Ana Hatherly acaba por fazer a síntese dos dois aspetos referidos, deixando a tinta escorrer livremente para a tela, em percursos lineares, com interrupções pontuais, como que a verbalizar diferentes entoações, ou desferindo traços curtos e largos, retornando ao preto e branco que sempre foi a sua forma de expressão preferencial. Mesmo nessa fase, o modo como imprimiu as pinceladas no suporte configura a gestualidade do ato de escrever, o que se poderá considerar como a síntese dos movimentos caligráficos de produções anteriores, acrescida de uma paleta cromática simples com a aplicação direta da cor, parcos contornos e poucos esbatidos, num abstracionismo reforçado pelo vigor do traço.


A determinada altura considerou que o experimentalismo tinha acabado. No entanto, o seu trabalho nunca deixou de conter os pressupostos e as características “experimentais” que sempre nortearam a sua produção plástica. E se, na elaboração da poesia verbal, a autora ignorou muitas das premissas do experimentalismo, a nível da representação visual estas mantiveram-se. Inclusivamente na última fase da sua obra plástica, com a série Neograffiti, iniciada a partir dos anos 2000, onde a lata de spray substituiu a rotring, mas a intenção de proceder a uma escrita, ainda que visual, manteve-se inalterada, originando uma metalinguagem por força da expressividade das partículas de tinta expelidas pelo pino superior da lata, e da abrangência que estas impõem no suporte.


Utilizou quase sempre papel e cartolinas de diversos tipos, muitas vezes reutilizados, como base para as suas obras plásticas. Apenas nas séries Labirintos Urbanos, Hand Made e, mais tarde, em alguns Neograffiti, terá experimentado a tela ou o cartão telado. O uso do papel, o suporte essencial para um escritor na produção da sua obra, pode reforçar a ideia de que a artista nunca se sentiu verdadeiramente como pintora, mas sim como uma escritora (afinal, a sua formação académica e a investigação para o doutoramento sucederam na área das letras) que invadiu sem preconceitos o espaço da configuração visual para potencializar uma poética que lhe era intrínseca.


A série Neograffiti incorpora uma linguagem de arte urbana (que remete para um outro género de experiência de comunicação visual igualmente urbana, com a realização de As Ruas de Lisboa), mas para a utilizar como um novo procedimento de escrita, não como elemento ilustrativo e, muito menos, de representação figurativa. O sintetismo da linguagem utilizada que, pela configuração, retoma muitos dos ensaios evidenciados no livro Mapas da Imaginação e da Memória, permitiu-lhe continuar a “escrever”, por um processo igualmente gestual, embora sem a minúcia e a subtileza das caligrafias. O que poderá refletir um retorno às pesquisas ideográficas dos anos 60, encerrando assim um ciclo cuja inventividade e originalidade resultaram numa obra inquieta que exige ser revelada na sua plenitude.


Foi uma autora que se exprimiu em diversas áreas, incluindo a música e o cinema, mas na sua essência foi a escritora que procurou dar uma dimensão plástica à poética, potencializando as palavras que ganhavam outra expressividade pelo modo como eram (d)escritas e dispostas na folha. E com uma evidente sensibilidade feminina, apesar de recusar a designação de “poetisa” sempre se considerou “poeta” – cuja filigrana na elaboração dos textos caligráficos e delicadeza com que esse rendilhado de palavras era colocado na folha, comprovam.


Ana Hatherly é, definitivamente, um(a) poeta com um apurado sentido estético, que explorou de forma magistral a expressão gestual e a dimensão visual da palavra.


Ana Hatherly


Referências


Hatherly, A. (1967). Operação 1. Exposição. Lisboa.


Hatherly, A. (1967). Operação 2. Estruturas poéticas. Conferência Objecto. Exposição. Galeria Quadrante.


Hatherly, A. (1968). Operação 1 e Operação 2. Exposição. Porto, Galeria Alvarez.


Hatherly, A. (1968). Quadlog. Exposição. Arlington Quadro. Gloucestershire (UK)


Hatherly, A. (1970). Anagramático. Lisboa, Moraes Editores.


Hatherly, A. (1973). Mapas da Imaginação e da Memória. Lisboa, Moraes Editores, 1973.


Hatherly, A. (1974). Pintura e Desenho. Lisboa, Galeria Judite da Cruz.


Hatherly, A. (1975). O Escritor. Lisboa, Moraes Editores.


Hatherly, A. (1975). A Reinvenção da Leitura. Lisboa, Editorial Futura.


Hatherly, A. (1983). A Experiência do Prodígio: Bases teóricas e antologia de textos visuais portugueses dos séculos XVII e XVIII. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.


Hatherly, A. (1992). Obra Visual 1960-1990. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.


Hatherly, A. (1997). Ana Hatherly a Preto e Branco. Porto, Galeria Presença.


Hatherly, A. (1997). Viagem à Índia e outros percursos. Lisboa, Museu do Chiado.


Hatherly, A. (1999). Pavão Negro. Porto, Galeria Presença.


Hatherly, A. (2000). Hand Made: Obra Recente. Lisboa, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão.


Hatherly, A. (2003). A Mão Inteligente. Lisboa, Quimera Editores.


Hatherly, A. (2004). Obras de Ana Hatherly: abril 74-04. Lisboa, Câmara Municipal.


Hatherly, A. (2005). Dessins, collages, et papiers peints. Paris, Fundação Calouste Gulbenkian.


Hatherly, A. (2009). A Arte do Suspenso. Ponte de Sôr, Biblioteca Municipal.


Hatherly, A. (2013). Ana Hatherly: No princípio está o Gesto – Obras na coleção MNAC-MC. Lisboa, Teatro Nacional D. Maria II.




Fernando Aguiar

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