Afonso Henriques Neto
Do incorpóreo inconsolado
Eu sou o Tenebroso, - o Viúvo, - o Inconsolado,
Príncipe d’Aquitânia em torre sem valia:
É morta a minha Estrela, e no meu constelado
Alaúde há o Sol negro da Melancolia.
Gérard de Nerval
Contam que Nerval pediu alguns trocados
(não tinha nenhum tostão), jantou em um cabaré imundo
e então passou a andar a esmo na região
da rua Saint Jacques, naquele janeiro parisiense
com 18 graus abaixo de zero, e foi achado
ao amanhecer por passantes enforcado nas grades
de uma janela da rua Vieille Lanterne, lugar
algo sinistro, no dizer de Baudelaire a esquina
mais sórdida que pôde encontrar, mas tudo isso
acontecera desde sempre e permanece a ocorrer,
pois eu, você e este vizinho que passa
com o ruído que sobe da rua, nada disso existe, existiu
ou existirá na carta que o poeta deixou na cabeceira
da tia a que chamava de mãe, não me espere
no entardecer, pois a noite será negra e branca,
e se alguém continuar a explicar pelo olhar
da loucura vai dar com a cara na parede,
turva procura que é névoa estúpida a cuspir
sangue na esquina sórdida da madrugada, 18 graus
abaixo de nada, um gelo dos diabos que os livros, as vozes,
os tempos persistem nesse dizer que tudo é real,
que tudo insiste, enquanto até o incorpóreo inexiste,
o inconsolável desiste, a solidão é tanto mais terrível
quando nada significa, nada viste, estrela, vômito,
esganadura, os versos e as mitografias no pátio
mais deserto do infinito, sereia emudecida pelo próprio grito.
Relâmpagos podres
O plágio é necessário. O progresso o implica.
Segue de perto a frase de um autor, serve-se
de suas expressões, apaga uma ideia falsa,
substitui-a por uma ideia justa.
Lautréamont
Não deixem que apagados cabelos
brotem outra vez da cabeça decepada.
Não deixem que o poema puxe a carroça
dos sonhos destroçados.
Ou seria justo o contrário?
Lautréamont dizia que os juízos sobre a poesia
têm mais valor que a própria poesia.
Pois são a filosofia da poesia.
Esta não poderá prescindir daquela
mas a filosofia poderá dispensar a poesia.
Abra mão dos sinistros mistificadores
e o poema escorrerá nos gramados azuis do infinito.
Todo pensamento é uma pedra de azul imenso.
Uma espada de relâmpagos em chão de música coagulada.
O pensamento a empurrar no vento o poema imemorial.
Ou deixemos que apagados cabelos
brotem ainda nas cabeças condenadas.
O verso é este cogumelo espinhento
a nascer sobre os escombros de tantos outros desatinos.
Os nomes e os traços dos mortos se vão esquecendo
igual a essas folhas que se acumulam no chão
e logo são varridas por ventos insensatos.
Para quê tamanha destruição?
Por que tão louca repetição?
As coisas permanecem ano após ano
no eterno e absurdo diapasão
de folhas sobre folhas tocadas pela tempestade
que espedaça cada um dos espelhos
sob as imagens dos tormentosos fluxos
de um sangue a cobrir os nomes e os traços
de todos os mortos da terra.
A divindade sempre será algo sinistro e alto
pois jamais tocaremos seus jardins abomináveis.
Construímos um amontoado de casas soporíferas
imaginando espantar o sono
que se espalha em aranhas pustulentas
fluidos magnéticos a arranharem os extremos dos olhos
tal um ser hipnotizado que despedaça o silêncio
com uivos de carvão
antes que o silêncio cresça
sobre o horizonte opaco e decepe os braços abertos
para o amor que nunca alcançará a luz
nesses velórios abafados.
As palavras são relâmpagos podres
que imaginamos iluminados por uma violência
que a tudo deixará de rastros.
E ainda há quem diga que seremos julgados
nesta montanha de poeira que os ventos varrem
para além dos portões dos crematórios
bocarras prateadas e desdentadas
a se esfumarem por todas as esquinas
dessas cidades de esfinges e manicômios.
Não haverá alma que suporte tanta carnificina.
As palavras vazias escorrem detrás deste disfarce
de julgamento
desta farsa de um tribunal construído sobre ossos
e orgias de ópios vomitando abismos.
Os nomes e os traços dos mortos são centopeias sem pernas
que deslizam sobre as pústulas de prostituídos universos.
Por isso as religiões tentam abafar com perfumes tardios
os narcóticos miasmas de uma podridão sem remédio.
Os nomes e as digitais dos mortos se esquecem
nas estradas dos seres imaginários.
E os cogumelos crescem para a asfixia de todas as traqueias.
Uma voz a escorrer tal um rio gelatinoso
diz que nada é incompreensível
mas eu me volto para o punhal das pulsações em coma
que salta da nuvem de concreto e horror
e vem atravessar os corações assustados das andorinhas secas.
Tudo se torna então travessias sem sentido
e o pouco que tentamos compreender
se apaga nas nuvens de uma tempestade amordaçada.
E veremos os serafins que se apunhalam até os confins do tempo.
Se alguma divindade provocou a expansão inicial
deste universo de inimagináveis dimensões
emendado a outros que nem podemos sonhar
o certo é que os deuses deixaram que tudo trabalhasse
a esmo e ao cósmico vento sujo a se inchar
em cogumelos que sufocassem cada garganta
cada silêncio das cores sobre planetas do escombro.
O suicida então caminhou no vento em cãibras
dispôs no chão o casaco e outros pertences de treva
antes que os instrumentos tenebrosos fluíssem do inferno
e viessem arrancar a pele dos recém-nascidos
ao som dessas flautas de excrementos
sirenes da ausência de todos os sentidos.
Mesmo sabendo ser inútil entoar cânticos
para uma primavera saqueada por mortíferas aranhas
exigirei o carimbo que ninguém reconhecerá na testa
do primeiro morto no primeiro dia da criação
essa montanha de estrume para celebração das bactérias infecciosas
a ruminarem uma humanidade tombada nos iodos das infecções.
E será do alto das cordilheiras onde se esmagam espectros
que se entronizará o grito de Altazor, pois quantas vezes
serei Altazor, o imenso poeta,
cérebro forjado em verbos de profetas,
angústia semeada nas planícies dos olhos
na forma deste adorno de um deus alucinado?
Altazor ou Maldoror?
Navegar onde for.
Águias negras de uma gramática brutal
motores dos cadáveres em céus de estupor.
Cantos de Maldoror, fúrias de fervente cristal,
maldição a ganir além da dor.
Nevoeiro
que abriram buracos nos braços com cigarros
protestando contra o narcótico nevoeiro
de tabaco do capitalismo
Allen Ginsberg
No meio do nevoeiro de pesadelos
nesse centro do Rio de Janeiro em plena hora do almoço
quando funcionários de repartições e de empresas de todo tipo
se juntam a desempregados e a pederastas vagabundos
nas salas que recendem a mofo e amônia
onde se projetam clichês pornográficos
para chuparem michês a troco
de qualquer micharia sob uns verbos ocos
a guilhotinarem espectros devoradores de vertigens
No meio do nevoeiro fantasmático
nesse centro do Rio de Janeiro a qualquer hora
do dia ou da noite
onde prostituídos de todos os gêneros
vociferam para os céus vazios os vapores
de uma alucinação de oxigênios escarlates
coração de miasmas estarrecidos
Por todo o centro do Rio de Janeiro a ressoar
uma eternidade de lixeiras nauseabundas
miseráveis que se amontoam junto às crianças
despossuídas aviltadas estupradas
para mais uma jornada aos infernos de crânios arrasados
pela fome sem medidas e o abandono definitivo
Por todo o centro de todas as cidades do mundo
onde os esquecidos tragam a humilhação
desses vapores que jamais serão sublimes
e se jogam de alturas atônitas nos trilhos
dos metrôs a fabularem cavernas de realidades aos estilhaços
No meio do nevoeiro de todas as periferias sem paz
nessas cidades capitalistas a sugarem para o vórtice supremo
riquezas arrancadas junto com unhas e cabelos
da multidão que jamais será ouvida
senão nas inundações das tempestades amaldiçoadas
No meio do nevoeiro de obsessões
e delírios em que artistas equilibristas palhaços
de circo se misturam a poetas encharcados de infinito
todos a deblaterarem de encontro às nuvens envenenadas
sem que se possa salvar nenhum verso
nem mesmo um grito do último artista atropelado
pelas maquinarias que cospem edifícios-despenhadeiros
No meio do nevoeiro em que as cabeças
são cortadas ao som de saxofones telepáticos
nesse concerto infernal que irrompe de todas as bocas
de todos os músculos no caldo seminal do tempo
coberto de buracos e sopros abafados
Por todo o centro de janelas mortas e esquinas
amarfanhadas até o fígado das fábricas cujas almas
são intermináveis fúrias de óleos trevas & febres bem altas
Por todo o centro de sólidos silêncios
que aos poucos se tornam incorpóreos
maciços ventos derretidos de inexistências
êxtases absurdos para além de qualquer pensamento
pássaros possessos a transportarem nos trinados que anoitecem
bombas terroristas que cegarão todos os caminhos
junto com as epidemias que brilham
nas desolações incompreensíveis
em meio ao pranto dos tempos que espiam o além da morte
nessa forma de loucura a enxergar a outra dimensão do abismo
descascado pelos guinchos das ratazanas do escuro
correnteza de gerações que se diluem pustulentas
horto de suicídios e maremotos
da realidade mais selvagem nas mentes do absoluto
ausência radical de espelhos
que ousassem refletir alguma música dourada
alguma porcaria constelada
amálgama de exércitos dinheiros caveiras de políticos em pesadelos
sobre os telhados que se evaporam nas orações emudecidas
mundos transbordados nos labirintos dos desmantelos
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