"Gemer carrancas naufragadas”: a arte de esposar mundos
BRENDA K. SOUZA
este texto acontece porque antes da gente existe um rio
A morte no imaginário coletivo é comumente representada como a figura trágica responsável por tolher o caminho dos vivos. Ainda que desconhecida, acontecimento porvir sob o qual não se exerce vigília, força ou controle, é também a única espera concreta da vida. Seu significado encarna o paradoxo e a ambivalência, fosse essa rainha uma vereda que se bifurca. Em cosmovisões não ocidentais ou menos eurocentradas, a morte opera e agencia-se a outros sentidos menos fatalistas, menos higienizados, menos ascéticos do que aqueles que nós, povos colonizados, fomos levados a aprender. Pois, pertence ao saber-poder colonial a necessidade de nos afastar das nossas muitas formas de comunicação, inclusive, com esse desconhecido porvir. Fora da realidade colonizada, ou melhor, nas pequenas fissuras que produzimos nesse tecido, os nossos mortos não formam um corpo em separado do qual precisamos nos apartar para afastar a própria ideia da morte, a certeza de que um dia seremos nós a ocupar o lugar das sombras, mas são, antes, potências constitutivas da vida. Afinal, um corpo (vivo) que sabe a que veio é também aquele capaz de trazer os mortos à própria cabeça – este centro de emanação e afirmação de força vital.
DESENHOS DA SÉRIE
“a correnteza zanza silêncios”, 2021.
ACERVO DO ARTISTA
Esposar os mundos – dos vivos e dos mortos – é potência. É empreender a partir de si e do contato com a ancestralidade um acesso a um conhecimento profundo, as
“fontes ocultas do nosso poder” (Lorde, 2021: 46). A partir dessa percepção, proponho a leitura deste acontecimento e de sua elaboração em alguns trabalhos de davi de jesus do nascimento (sic). davi é um artista visual, pesquisador e escritor barranqueiro, da cidade de Pirapora, localizada às margens do Rio São Francisco, no sertão mineiro. “Curimatá, arrimo de muvuca e escritor fiado”, como o artista se descreve em documento inédito ao fim referenciado, autodidata, davi conduz seu trabalho pelo afetos movimentados no curso do rio São Francisco, na ancestralidade, no ritmo de serra herdado do pai marceneiro, nas “cacundas” das lavadeiras, pescadores, remeiros e carranqueiros que redesenham cotidianamente os caminhos que faz o rio. Nesse caudaloso encontro, o artista bota prenhe os seus pincéis de barro e dá corpo e cara às suas lambanças e medonhices fossem elas, também, o parto do sonho em cima dessa pedra que perfila memória e tempo. davi é singradeiro, um moço-menino, corpo aberto que sabe velejar, como diria Edimilson de Almeida Pereira (2010: 256), no corpo do outro.
Seu trabalho se orienta pelo rio – rede bifurcada – e pela pesquisa nos acervos fotográficos de sua família. O pai, fazedor de barcos e pescador, é um baiano radicado em Pirapora e faz parte da numerosa população expulsa do próprio território em decorrência da construção da barragem de Sobradinho, projeto responsável por inundar mais de quatro municípios do sertão baiano; a mãe, já morta, ainda ocupa o quintal sempre alagado da família. A partir desses espaços, a obra de davi torna-se resposta à exigência do mergulho, à necessidade de marcar no gesto do desenho e da escrita a sobrevivência do bando, porque “sobreviver [também] gera o desejo por mais de si” (Lorde, 2021: 195).
Os lápis e tintas aquareladas sempre em marrom, da cor do barro, dão o contorno estético à essa exigência do desejo. Nessa escolha deixa-se ver a dimensão de um encontro primordial, entre a água e a terra, que formam os domínios de Nanã, yabá anciã profundamente relacionada às dinâmicas que impulsionam a existência. Senhora da lama e dos pântanos, é ela quem guarda o reino dos vivos e dos mortos. Ao ser questionado sobre a insistência do marrom, davi sempre a relaciona ao aspecto “barrento” do rio, de quando suas águas são mexidas pelo tempo e pela chuva. Desse ponto, a cor traz a presença deste que atravessa e se mistura ao corpo-médium capturador de funduras do artista.
O rio, ente vivo, é necessariamente o centro de irradiação onde os mundos se esposam, pois, a água prefigura o lugar físico em que o mundo dos vivos e o dos mortos se encontram. Os povos bakongo, por exemplo, traçam essa separação e ponto de convergência a partir de um diagrama (Thompson, 2011: 112), desenhado em forma de cruz (muito semelhante aos pontos-cruzados utilizados em rituais de religiões brasileiras de matriz africana). Esse cosmograma dá corpo, a partir de linhas (vertical e horizontal) que se cortam, aos ciclos da vida. A parte de baixo, separado por uma linha horizontal, representa o mundo dos mortos, o “auge do poder espiritual”; enquanto a parte de cima representa o mundo dos vivos (auge do poder físico). O meio, o ponto de encontro entre os dois poderes, é o Kalunga. Nesse sentido, o rio pode ser lido tanto como o lugar de fermentação desse encontro como também de metamorfose.
Trazê-lo como fio condutor de uma prática artística, assim como escolher a cor do “barro” para dar contorno às próprias visões, não são, de maneira alguma, escolhas desintencionadas. São antes modos de captura, de formar núpcias entre o visível e o sensível. Desse modo, como isso a que chamo de “esposar os mundos” aparece no plano estético do trabalho de davi? Quais são as visualidades evocadas para “dar de comer aos mortos” nesse Kalunga que é o rio?
aguamentos
Selecionei abaixo algumas pinturas, instalações e fotografias produzidas por davi entre 2016 e 2021. As primeiras para as quais chamo atenção são as pinturas que fazem parte da série “aguamentos”. Sempre reatualizados, os aguamentos são desenhos feitos em aquarela marrom.
DESENHO DA SÉRIE
"Aguamentos", 2016.
ACERVO DO ARTISTA
objetos de águas guardadas
Talvez a correnteza seja uma imagem-síntese, quem sabe uma chave de leitura para o trabalho desse artista. No fluxo, a água devolve muita coisa, inclusive os objetos afogados e curtidos no fundo dos rios. Eles nunca chegam às margens da mesma forma que foram, pois todo corpo incha ou se esburaca antes de voltar à superfície. São formas tornadas outra coisa. davi os recupera e os coloca numa pequena caixa de guardados, os coloca pra dormir, ninados pelas águas guardadas no berço onde também se deitam os peixes.
INSTALAÇÃO: “fragmento de elizeu, pescador desaparecido”,
objeto de águas guardadas, caixa de pregos,
restos de peixe, calhaus, conchas, sementes
de tamboril, linha de pesca, anzol e fotografia
do acervo familiar, 8x22x10 cm, 2017.
ACERVO DO ARTISTA
A instalação acima é nomeada como “fragmento de elizeu, pescador desaparecido”. A impossibilidade de recuperação de uma “inteireza” daquele que morre é enunciada já no nome da obra. No entanto, esse corpo é reformulado de outras formas, apreendido aos pedaços – na elaboração de um luto possível. O corpo que se afoga tem como destino ser o próprio rio.
INSTALAÇÃO: “criança de colo” ou
“sobrevivência totêmica e molhada das figuras de proa”,
corvina de mar sobre berço amarelo com colchão
de conchas rosadas, dimensão de nascente pulverizada,
2012-2018. [feito gerado a partir da memória afetiva
de quando nosso pai pescou uma surubim grávida de
vinte e sete quilos dentro de um berço jogado no rio].
Objeto produzido ao longo do programa de residências
artísticas Valongo, em 2018.
ACERVO DO ARTISTA
Nessa segunda instalação, a morte é convocada como que pelas mãos de uma mãe que vem ninar o filho à noite. Deitado sobre as conchas, o peixe exposto no berço permaneceria ali por alguns dias, até que o cheiro desse outro peso e sentido à sua carcaça. Tanto nessas instalações quanto nas pinturas que apresentei até aqui,
As duas instâncias (a força da vida e a potência que provê a ciência da morte) não estão separadas. Uma trabalha a outra, é trabalhada pela outra e a função de vidência consiste em trazer à luz do dia e do espírito esse trabalho recíproco – condição essencial para enfeitar a ameaça de dissipação da vida e de dessecação do vivente. A vida brota, portanto, da cisão, da duplicação e da disjunção. A morte também, na sua inevitável clareza, que também se assemelha a um começo de mundo – jorro, emergência e ressurgimento. (Mbembe, 2028: 232)
Nessa perspectiva, ao propor que as águas dos vivos e dos mortos se toquem, davi esposa esses dois mundos, elabora-os esteticamente, insere a vida dentro da morte e vice e versa, produz no centro de ambas torções. Trata-se de um gesto poderoso, já que por meio dele o artista enfeita [enfrenta] a “dissipação da vida e a dessecação do vivente”. Essa potência, lembra ainda Mbembe, só acontece “graças à capacidade de estabelecer relações cambiantes com o mundo das silhuetas ou então com o mundo dos duplos”. Nesse espaço, ainda conforme Mbembe, “é poderoso quem sabe dançar com as sombras e quem sabe tecer relações estreitas entre sua própria força vital e outras cadeias de forças sempre situadas num outro lugar, num espaço exterior para além da superfície do visível”.
singradura
MONTAGENS.
ACERVO DO ARTISTA
Singrar, palavra que aprendi com davi, significa “velejar”; “seguir o caminho das águas”. Estendidas as definições do dicionário, singradura seria o nome do ato de fazer viajar o corpo, assumindo o risco de talhar os membros na travessia. Isto é, admitir ao corpo a abertura para o acontecimento por vir é também (e já) seguir o caminho das águas. Nas experimentações com fotos instantâneas, davi parte da captura presente do “corpo como instrumento de medida”, como revelou em panfleto de exposição disponível em seu acervo pessoal, e sutura sobre a própria imagem recém revelada partes secas de um calango. Ao final da montagem, o corpo ora apresentado torna-se uma criatura híbrida tal qual uma figura de proa. Curiosamente, essas figuras criadas sob certa duplicidade da forma (como as carrancas) pertencem ao curso de navegação do rio (singram) e são utilizadas nas embarcações para espantar, afugentar os perigos, por isso estão sempre firmadas na frente dos barcos. São capazes de proteger a embarcação porque são seres que perambulam e compartilham as visões e audições desses dois mundos que se encontram no kalunga.
OBJETO: “inundador de barcas de afago”
ou “anti-gemido de carrancas naufragadas”.
Materiais: objeto de águas guardadas, cabeça de saruê
fincada em corda torada de âncora.
Medida: 40x42x6 cm. Ano de realização: 2017-2018.
ACERVO DO ARTISTA
Já neste outro trabalho, o artista também utiliza partes de um animal já morto para reinseri-las noutro agenciamento de formas. Chamado de “inundador de barcos”, o objeto formado pela junção da corda de âncora guiada pela cabeça de saruê faz das águas um espaço habitado. E, mais uma vez, esses cacos parecem frutos de uma coleta, certa recuperação fragmentada de um memória engolida e regurgitada pelo rio. Nas palavras do artista sobre a exposição “o suor da testa mora dentro dos marimbondos” apresentada em 2019 no Museu Minas Gerais Vale, material constante do seu acervo pessoal, o rio é aquele que não morre e sempre se vinga,
O rio São Francisco – este que não canso de moer em meus dizeres e continuo tendo ao lado, como no quintal em que nasci, cresci, e sobre o qual me pego pensando a todo instante – vai se transformar num gigante curso d’água de pimenta braba para banhar os olhos de quem o mata. Eu cego a ardência de meus inimigos enquanto eles se banham. Tomo corpo de sucuri para destruir suas casas.
Quando li essa pequena fala de davi, destacada em um panfleto da exposição “o suor da testa mora dentro dos marimbondos”, montada em 2019, no Museu Minas Gerais
Vale, em Belo Horizonte, pensei na convocação estética da morte que tantas vezes é imposta aos nossos, como uma espécie de revanchismo. Uma “revanche do sagrado”18, nos termos que nos diz o poeta Edimilson de Almeida Pereira (2016), ao nomear o reencantamento do mundo a partir do atravessamento do sagrado na criação estética.
Embora eu só possa afirmar algo dentro dos limites daquilo que demuda, em todos os trabalhos apresentados aqui vemos organizarem-se pelas mãos do artista “relíquias, cores, concocçções e outros “medicamentos” [que] lhe outorgam sua germinativa (fragmentos de pele, um pedaço de crânio ou de antebraço, unhas e mechas de cabelo, preciosos fragmentos de cadáveres antigos soberanos ou de inimigos ferozes), de com a perspectiva de Achille Mbembe (2018: 233). A partir dos quais, no esposamento das relações entre o mundo dos vivos e dos mortos, davi reafirma na experiência estética “o poder de farmácia, pela sua capacidade de transformar os recursos da morte em força germinativa – a transformação e conversão dos recursos da morte em capacidade de cura”,
Seu trabalho, ofício de singradura, dá ao corpo a plasticidade necessária para metamorfosear-se, perambular na terceira margem, refazer o luto, flertar com o absurdo, transformar-se em rio-sucuri para destruir a casa dos inimigos e, ao mesmo tempo, fazer dessa força vital um altar em que um morto possa dançar, tal como num poema de Aline Motta (2022: 95).
Para velejar no corpo de outro:
Referências
Delezue, G. (2013). Crítica e Clínica. 2ª ed. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo, Editora 34.
Deleuze, G.; Guattari, F. (2012). Mil Platôs. Vol. 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo, Editora 34.
Pereira, E. A. (2010). Homeless. Belo Horizonte, Mazza edições.
Pereira, E. A. (2016). A revanche do sagrado: entrevista com Edimilson de Almeida Pereira. Revista Usina, 26ª edição.
Lorde, A. (2021). Irmã Outsider. Tradução de Stephanie Borges. Belo Horizonte, Autêntica.
Mbembe, A. (2018). Crítica da razão negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo, n- 1 edições.
Motta, A. (2022). A água é uma máquina do tempo. Círculo de poemas. São Paulo, Fósforo Editora.
Nascimento, D. J. (S/D). Obras e documentos diversos 2016-2021. Pirapora, Acervo do artista.
Thompson, R. F. (2011). Flash of the spirit: arte e filosofia africana e afro- americana. Tradução de Tuca Magalhães. São Paulo, Museu Afro Brasil.
Brenda K. Souza nasceu em Pirapora, Estado de Minas Gerais, em 1992. Estudou Letras na Universida Estadual de Montes Claros (Unimontes), onde também realizou Mestrado em Estudos Literários pesquisando Ana Cristina César. Atualmente, realiza Doutorado na mesma área pela UNB. Estreou na poesia em 2020 com Ebó, publicação do Clube Literário Tamboril, associação cultural e literária piraporense.
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