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“Entre choques”: O agônico na dimensão dos sentidos na poesia de Murilo Mendes

Atualizado: 4 de set. de 2021

por Wesley Thales Almeida Rocha


A poesia sopra onde quer.

(Murilo Mendes, “Novíssimo Orfeu”)




O sentido é, segundo Octavio Paz, o elemento unificador do conjunto contraditório de qualidades e formas de um objeto ou de uma experiência. Mas, no poema (que “é linguagem em tensão: extremos da palavra e palavras extremas” [1999: 152]), o sentido realiza-se justamente como a tensão contraditória entre qualidades e formas. A poesia é, conforme o poeta-crítico mexicano, revelação de nossa condição original, e esta é a da ambiguidade extrema, posto que implicada em uma existência composta por forças contrárias.

Na poesia de Murilo Mendes, um dos principais nomes da tradição moderna brasileira, o sentido constrói-se justamente a partir de “forças contrárias”, na dinâmica de flutuações e de choques em que são postos as perspectivas concorrentes na experiência poética e os elementos da linguagem e da forma. Esse modo de operação poética tem como efeito uma construção de sentidos instável e ambivalente, e sem o alcance ou a projeção de um sentido unívoco, redentor, conciliador das forças em tensão. “Não tenho força para cavar a ordem”, diz um verso de “O poeta nocaute”, de O visionário, poema em que ainda se lê:


“Solução solução solução qual o quê

Não tem saúde nenhuma

Não tem saída nenhuma.”

(1997a: 242).


Essa construção de sentidos fundada sobre a instabilidade e a ambivalência constitui expressão do ser dilemático que está na base dessa poética substancialmente lírica. Os primeiros críticos de Murilo Mendes, como Mário de Andrade e Álvaro Lins, de pronto observaram como a poética do autor A poesia em pânico se funda sobre um forte lirismo, em que domina a preocupação com a expressão dos conflitos interiores (a despeito das preocupações com a “artesania” da forma, segundo Mário de Andrade [2002: 53]) e num exercício criativo que se dá mais “espontaneamente” do que “laboriosamente” (de acordo com Álvaro Lins [1963: 46]). Essas apreciações críticas, embora não reconheçam os valores estéticos, radicalmente modernos, envolvidos no trabalho poético muriliano mais a partir da irregularidade, da dispersão e da dissonância do que da unidade, da harmonia e do equilíbrio, bem acusam o fundamento lírico que está na base dessa expressão tensa e desarticulada. Em suma, na poesia muriliana, especialmente em seus livros entre Poemas (1930) e As metamorfoses (1938-1941), está sempre a exprimir-se um uma subjetividade dilacerada e conflituosa, vincada entre anseios vários e opostos (Deus e o diabo, o sagrado e o terreno, a eternidade e a temporalidade, a alma e o corpo, a construção e a destruição).

E assim como acomete o sujeito lírico, o senso de crise dá-se a sentir também no próprio horizonte de criação do poema, compondo-se este como “nó de forças interpessoais”, que põe em concorrência as vozes que habitam o poeta e as que vagam horizonte da criação poética. Na “pauta estrutural” do poema muriliano, avultam registros vários de uma mesma realidade, situação ou afeto, numa pluralidade de visões e ênfases que correspondem a estilos poéticos ou literários diversos (ora classicistas, ora barrocos, ora românticos, ora simbolistas, ora próprios às estéticas mais radicalmente modernas) e a linhas de pensamento contrastantes (ora mitológicas, ora metafísicas, ora religiosas ou místicas, ora eróticas, ora político-ideológicas e até materialistas). Temos, com isso, o poema igualmente vibrando entre horizontes de significação díspares e divergentes, “entre dois choques”, como expressam estes versos de “Estudo nº 2”, de As metamorfoses:


“Preso entre dois choques, invoco o Tudo ou o Nada.

Eu quisera me remir,

a esperança me acena,

O céu pode se abrir em dois, e o fim do mundo...”

(1997c: 320).


Massaud Moisés (2001: 16), ponderando sobre como o conflito constitui o “eixo” em torno do qual gravita a poesia de Murilo Mendes, afirma que o poeta encontra para a expressão de suas dilacerações íntimas justamente essa linguagem pautada na tensão entre “forma e transparência, signo e significado”. Tal tensão se supõe tendo por base a dificuldade com que a emoção se projetaria no plano da expressão: ela teria que enfrentar as barreiras do intelecto; e, nesse embate, acabaria por perder-se, ficando impalpável em meio à “exuberância verbal”, à “indeterminação” e à “falta de solidez do discurso poético” (MOISÉS, 2001: 16). Ainda segundo o crítico, essa matriz de criação supõe uma recusa por parte do poeta em submeter sua composição a uma lógica pautada no equilíbrio, na equivalência, entre o signo e o significado. Trata-se, antes, de promover, a partir do signo – mais precisamente de sua articulação inconvencional no verso, na estrofe, na composição como um todo (bem ao feitio surrealista) – uma proliferação de sentidos, postos, ainda, em contraste e distensão. Digamos, então, que o que aí temos é o domínio do senso agônico, desde o impulso lírico primário (as dilacerações íntimas) aos recursos de expressão (a desarticulação entre signo e significado), até os efeitos de sentido (a desorientação semântica).

Essa “desorientação semântica” é largamente apontada pela crítica como uma das marcas principais da poesia muriliana, implicando fortemente na imagem do poeta, que recebe o rótulo de “difícil”, “hermético” e até “ilegível” – adjetivos que se empregam muito também para um autor de quem Murilo Mendes não apenas está muito próximo em conteúdo e estilo (como mostraremos, tão fundado no uso do símbolo), como também com ele divide um lugar “marginal” na tradição lírica brasileira: o poeta simbolista Cruz e Sousa.


Respondendo sobre esse caráter hermético de sua poesia, Murilo Mendes (2014: 251) o situa como próprio da poesia moderna, o que inclui justamente a matriz primeira justamente o Simbolismo (do europeu às suas manifestações em outros domínios, como no Brasil, cujo expoente é Cruz e Sousa). Hugo Friedrich, em sua Estrutura da lírica moderna, dá destaque a essa tendência ao “hermetismo” na poesia moderna, levantando alguns dos seus determinantes. Primeiro, ela seria intencional: os poetas modernos procuram realizar sua poesia como “uma criação auto-suficiente” e “pluriforme na significação” (FRIEDRICH, 1978: 16). Para isso, impõem à linguagem uma “tarefa paradoxal”: “expressar e, ao mesmo tempo, encobrir um significado” (FRIEDRICH, 1978: 178). Daí, que a referência a conteúdos dá-se mais por um veio sugestivo do que descritivo, vindo essa lírica a falar de acontecimentos, de seres ou objetos sem referências de causa, lugar ou tempo e com as informações sendo constantemente interrompidas. Nas palavras do teórico alemão: “Há, por toda a parte, um colocar à disposição alguma coisa, da qual, de momento, não se pode dispor ainda” (FRIEDRICH, 1978: 178).

Além disso, assim como se dá no plano da forma, os temas e os motivos na lírica moderna são mais contrapostos do que justapostos. Concorrem entre si, no horizonte de significações do poema (e isso vale significativamente para o poema muriliano), visões de planos imaginários com as do mundo imanente, signos de um tempo arcaico com os de um futuro imponderável, traços de uma aguda intelectualidade com os do mais ordinário, a extrema objetividade com a mais funda subjetividade. A significação projeta-se, então, a partir do entrelaçamento tenso entre forças absolutas, formando não uma “tessitura de sentido coerente”, mas sim planos contrastantes de sentidos.

Em Murilo Mendes, essa trama inextrincável é construída, principalmente, a partir de recursos semânticos como: o uso abundante e insólito de tropos, com a linguagem abastecida por uma alta e atordoante carga metafórica e simbólica; de outro, o jogo de antíteses e paradoxos, com que são articulados os planos de choques entre polos de sentido antagônicos. No primeiro caso, temos como efeito o senso de excentricidade e dispersão semântica que marca essa poética; no segundo, o senso de ambivalência ou de polivalência, de igual valor.


A exuberância imagética, composta a partir de metáforas que “violentam os conceitos” e desajustam os limites do visível e até do dizível em suas ressonâncias infinitas e desordenadas, constitui um dos distintivos da poesia de Murilo Mendes. A metáfora já é por si, como assinala Hans Blumenberg, em Teoria da não conceitualidade, “uma perturbação das conexões, da homogeneidade que possibilita a leitura mecânica” (2013: 106). E, na poética muriliana, ela é utilizada justamente com o sentido de promover “as combinações mais desconcertantes” mesmo, que violam as bases do pensamento lógico e conceitual.

São mais frequentes nessa poética principalmente os tipos de metáfora que, como mostra Friedrich, marcam a lírica moderna: a “metáfora apositiva”, em que se suprime o artigo e se provoca uma abreviação sintática (como nestes versos de Murilo Mendes: “Morte, salário da vida”, em “Doce enigma”, de A poesia em pânico [1997b: 307]), e aquela que Friedrich chama de “metáfora de genitivo” (do tipo “os pássaros da vertigem”, em “Tédio na varanda”, de O visionário [1997a: 232] ou “as florestas de cristal”, em “A fatalidade”, de As metamorfoses [1997c: 346]). Nelas, a justaposição de elementos díspares, sem os conectores, promove uma tensão insólita recíproca, fazendo com que uma camada de sentido se choque com a outra. O predicativo se coloca na condição de sujeito, e este, indeterminado, luta por ter um predicativo.

No interior da imagem poética, então, vários e díspares significados avultam, em relações de choque, e não de homologia, tal como podemos ver nestes versos de “Manhã metafísica”, de As metamorfoses:


“Os pássaros juntando conchas

Refazem pacientemente as Pirâmides.


A manhã calça luvas de vidro

Para operar a afogada.”

(MENDES, 1997c, p. 340).


Os sujeitos das orações que compões esses dois dísticos (“os pássaros” e “a manhã”) realizam ações insólitas em planos impróprios, do ponto de vista lógico. Os pássaros ganham força física superlativa, que os faz reconstruírem com conchas as Pirâmides; a manhã se antropomorfiza e calça (nas mãos?) luvas, não de pano ou de plástico, mas de vidro, para realizar uma cirurgia. Observe-se, ainda, como essas imagens atendem bem ao conceito surrealista de “acoplamento de duas realidades em aparência não acopláveis em um quadro que em aparência não lhes convém”, conforme descrita pelo pintor Max Ernst, citado por Murilo Marcondes de Moura em seu estudo sobre Murilo Mendes (1970; 1995: 27). A técnica da colagem, típica da vanguarda francesa, dão forma a metáforas tão insólitas quanto enigmáticas, já que a incongruência entre os elementos díspares gera uma inelutável disjunção semântica.

Não se pode destrinçar um sentido unificador para essas imagens, pois o que elas exibem é a enfatuação de sentidos na existência, em um universo paralelo de seres e ações que invadem os limites do real e perturbam suas determinações. O poema, como se dirá na terceira estrofe, opera-se a partir do caos, do qual espera sair a pessoa a quem ele se dirige. Temos, então, o agônico no plano imagético em relação direta com o agônico no plano da expressão. A propósito, foi observado por Laís Corrêa de Araújo (2000: 143-144) que as metáforas, na poesia muriliana, traduzem “a vertigem de um mundo em desordem”; elas são “as formas violentas desse quadro que recria pela distorção e até mesmo pelo grotesco da imagem aquela distorção e aquele grotesco da realidade que não percebemos por demasiada aproximação”. E o poeta não submete esse mundo desconcertado e, por isso, incognoscível a uma ordem poética que o torne redutível. Antes, ele mergulha nesse caos e nos dá a conhecê-lo também como enigma.


Outro meio de caráter trópico largamente empregado por Murilo Mendes para compor suas visões complexas e irredutíveis a um sentido é a evocação simbólica. A partir dela, principalmente, projeta-se a significação do poema entre esferas as mais diversas, como a erótica, a mística, a cósmica, a ontológica, a política. A propósito, Tzvetan Todorov, em Simbolismo e interpretação (2014: 20), refere-se ao caráter inesgotável do símbolo, em contraste com o “claro e unívoco” do signo ou a alegoria. Há, no simbolismo linguístico, conforme o teórico, “um transbordamento do significante pelo significado”, prologando-se a associação por camadas indefinidas de sentido (2014: 46). Paul Ricoeur (2015: 26-30) também chama a atenção para a variedade de zonas de sentido que o símbolo abarca, remetendo ele sempre a três dimensões: a cósmica, atinente às representações que a religião e a cultura dão ao sagrado; a onírica, que exprime os arquétipos psíquicos devindos das projeções da história individual do sujeito; e a poética, que responde aos poderes criadores da linguagem.

Murilo Mendes promove, a partir da representação simbólica, não só uma abertura de planos, mas também, um entrecruzamento tenso entre eles. Nos símbolos que evoca, sentidos de esferas díspares ressoam um contra o outro, em impulsos equivalentes. Veja-se, como exemplo, a inscrição de “diadema” nestes versos de “Memória”, de As metamorfoses:


“O diadema da noite

tecido com madressilvas

Espera núpcias solenes.”

(1997c: 365).


Temos, aqui, a imagem poética da noite como uma cabeça adornada com um “diadema de madressilvas”. Dela ressoam sentidos diversos, reunidos no símbolo do “diadema”. Primeiro, somos suscitados a pensar na visão do escuro do céu tomado de estrelas: a noite aparece, então, como um tempo propício à transcendência; tal visão assume ressonâncias cósmicas, supondo-se aí o “casamento” entre as forças absolutas da existência: as do tempo, com o passado, o presente e o futuro sincronizados; justapõe-se a esses sentidos a imagem da noite como uma noiva preparada para as núpcias, advindo, agora, à leitura sentidos eróticos; pela relação com o motivo do poema (a “memória”), chegamos à ideia da “noite da consciência”, em que se acendem as lembranças; e, talvez, as lembranças como desejos não realizados. Entre o que devém do passado e o que o futuro oferece, fica a expectativa que domina no presente: a das núpcias solenes, a do sentido pleno. Enquanto esse não vem, a noite mostra-se aberta a todas as possibilidades. Como enuncia o sujeito lírico no último verso: “Morro de esperar a morte”.


José Guilherme Merquior (2013: 83) pontua a representação simbólica como o fundamento principal do “estilo visionário de Murilo Mendes”, permitindo-lhe compor a imagem de “um universo heterogêneo, campo de contrários, área mista, terreno onde coexistem diversos polos opostos em contínuo movimento e variadas posições”. Nisso, Murilo estaria distante do estilo fantástico, que se utiliza prevalentemente da alegoria. Esta, que Merquior define a partir de Benjamin, “fixa o sentido da temporalidade como certeza da morte e da decadência. No estilo alegórico, a significação de todo fluir está ligada aos motivos do pessimismo e à revelação do vazio da existência” (MERQUIOR, 2013: 81). O fantástico funda, então, um universo completo e extraordinário, em que nada faz sentido. Em Kafka, por exemplo (que, junto de Brueghel e Wols, é citado por Merquior como paradigmático desse estilo) tudo no mundo apresentar-se-ia como fantasmagórico. A realidade concreta não passaria de espectro e a transcendência seria nada e aniquilaria o sentido do mundo e dos projetos humanos (MERQUIOR, 2013: 82).

Em Murilo Mendes, por sua vez (tal como em Hoffmann, Bosch, Klee, de acordo com o crítico), o símbolo comporta tanto uma presença material quanto permite a referência às “tendências gerais do dinamismo histórico e da temporalidade objetiva” (MERQUIOR, 2013: 83); isso significa que, nessa poética, opera-se uma “inflação” de sentidos, com o mundo figurando não como vazio, mas como múltiplo e dinâmico, ao mesmo tempo insólito e natural, maravilhoso e vulgar, ou seja, híbrido.


Essa é uma característica que bem podemos entrever no poema abaixo de Murilo Mendes: “História”, do livro As metamorfoses. Nele, como se verá, a figuração de sentidos exerce-se a partir de símbolos diversos, que mostram a “história” como um complexo de forças heterogêneas e plenivalentes:


“História


Os mares se contraem

As nuvens esticam as asas.

O espaço abre-se em sedes e clamores

Dos que nasceram há mil anos

E dos que ainda vão nascer.

Há uma convergência de presságios

Nos jardins cobertos de rosas migradoras

E nos berços onde dormem crianças com fuzis.


O espírito poderoso que fundirá os tempos

Espera, impaciente, nos átrios celestes.”

(1997: 330)


Há dois planos de sentidos cruzando-se tensamente na visão da “história” que esse poema figura: um espacial e outro temporal. Em relação ao espacial, temos já um tratamento insólito: a visão da “história” não se projeta de um único e esperado plano: o terreno, o das ações humanas. Ela envolve, também, as forças da natureza, forças cósmicas e religiosas, que, em movimentos contrastantes, tanto implicam nos processos humanos quanto sofrem por eles. Quanto ao plano temporal, não temos aí, como também seria de se esperar, o presente como o centro irradiador de sentidos. Na verdade, ele apresenta-se como fragmentado e disforme, formado pelo cruzamento tenso entre as “sedes e clamores” que vêm do passado e do futuro.

Note-se como elementos simbólicos (e mais do que eles propriamente, seus movimentos) assumem a referência às forças concorrentes na visão que se esboça: os “mares” e as “nuvens” figuram as forças intangíveis da natureza; estas entram em choque com as forças humanas, indicadas por sua vez pelos elementos metonímicos das “sedes” e dos “clamores”; ambos os planos, ainda, põem em tensão o divino, referido apenas através da expressão “espírito poderoso”.

Duas imagens de feitio contrastante (uma em alta voltagem metafórica e simbólica, e outra realista, quase documental) dão a visão do que seja esse presente e a partir dele a própria história: podemos dizer, as agonias da guerra. Os “jardins cobertos de rosas migradoras” figuram os campos de batalhas em que caíram os soldados mortos; e os “berços onde dormem crianças com fuzis” evidenciam a guerra como processo constante do mundo. Capaz de aplacá-la só a força maior, divina. Ela própria, no entanto, encontra-se também em agonia, à espera de um tempo que não vem. O presente e a guerra, sua determinante, formam o tempo/espaço para onde convergem “todos os presságios” (as perspectivas implicadas na dinâmica da história). Porém, dele estão irradiando novas forças, que geram a expectativa pelo fim do mundo. O futuro torna-se, então, outro polo de atração e também de tensão, posto que a ação nele mantém-se em suspenso.

A “visão” da história que o poema engendra é, pois, ambígua e vaga, o que é determinado, principalmente, pelo modo de interação entre as imagens evocadas: em “tensão insólita recíproca”, e não por fusão numa unidade convincente. Misturando elementos de camadas diversas e estranhas entre si, o poeta chega, então, à sua visão primordial de um mundo sempre em convulsão. Não temos, aqui, simplesmente uma “reunião de elementos heterogêneos” para figurar uma “imagem” da história, mas cruzamentos de ecos de imagens contrastantes que embaralham a visão da “história”, como seria com sua experiência propriamente. Se o poema não chega a figurar um sentido preciso do que seja a “história” é porque esta não é, justamente, algo preciso, mas algo de que se tem uma experiência tensa, sob o signo da dilaceração e da inquietude.


A expressão do eu ou do mundo (como se vê pelo poema acima) como dilacerado implica na dilaceração do próprio dizer poético e, por conseguinte, na da composição. Na matriz expressiva do poema muriliano, vê-se o tempo o anseio religioso a ser perturbado pelo erótico e este pressionado por aquele; a visão ética da história é complexificada pela visão messiânica, de modo que muitas vezes o castigo para aqueles que promovem o mal se estende para todos, porque todos estão no pecado; a angústia em face do mundo terreno contrasta com a ansiedade em relação ao que espera do outro lado da vida; o desejo de escapar para outro mundo conflita com o melhor explorar as potencialidades dele. Dilacerado, então, entre esses múltiplos e contrastantes lados, dificilmente consegue o poeta e seu poema optarem por ou realizarem-se em apenas um deles. Todos esses sentidos avultam ao mesmo tempo, com um implicando no outro, um provocando desequilíbrios no outro. Com efeito, sua enunciação articula-se sempre em deslocamento por polos múltiplos, construindo-se o sentido do poema como efeito dessa oscilação, numa base antitética.

Essa oscilação funda, principalmente, a forte e significativa ambivalência entre uma visão crítica (ordenadora) e uma visão alucinada (desordenadora) do mundo, o que dá expressão ao modo também ambivalente como se dá a relação do sujeito com a realidade: um operando sobre o outro, um afetando a constituição do outro.

Isso é bem o que observamos em “A madrugada”, do livro O visionário. Nele, a articulação dos sentidos opera a partir de uma projeção do que devém de um polo, o da vigília, para o outro, o do sonho. Temos aí expressa uma agitação insolúvel, alimentada pelas sombras de um mundo que, mesmo quando parece superado, insiste em se fazer sensível. É que a realização plena de um “lado” implica no cumprimento do que do “outro” entrou na composição. Veja-se, abaixo, o poema em sua íntegra:


“A madrugada


1


Dorme o gigante dos ventos

Enquanto a lua trabalha.

Beija teus seios devagar.

Vem por aqui, meu amor,

Os cavalos voadores são amigos,

Nos levarão para o deserto branco.


2


Quem foi que colocou

Uma pedra no meu sonho

E os maiôs não puderam sair?

Minha mão direita virou árvore,

Vêm aves da estratosfera me visitar.


3


Maria acorda, namorada morta,

Os clarins do Clube “Flor do Amor”

Estão chamando nós dois:

Que luzes, que flores, jazbande excelente!

Que corpos suados de tanto dançarem.


4


A guerra passou, passou a Razão,

Já podemos conversar com a Virgem Maria;

Convidemos Judas e o Máscara de Ferro

A passear de táxi à beira mar.

Podem-se tirar retratos elétricos

Que serão enviados a Saturno.


5


Estou esquecido das determinações do século.

Adeus máquina que móis minha tristeza:

Vou voltar para o seio da minha mulher pedra,

Ou então para mamãe água.”

(1997a: 220-221).


Esse poema é marcado por uma fragmentariedade constitutiva, evidente já por sua divisão em cinco partes (que são, também, cinco estrofes). E observe-se como nenhuma delas se deduz da anterior; são pedaços de poemas, autônomos, porém inacabados, que se justapõem sem elementos que os liguem, a não ser a numeração e os espaços em branco da página. Estes e, também, os sentidos a ressoarem de cada parte fazem com que elas se atravessem, estabelecendo uma continuidade na descontinuidade. Mas, trata-se de uma continuidade não linear, mas sim incoerente e contrapontística. As partes ou estrofes mais se entrecruzam do que se sucedem. Esse efeito é inerente ao recurso da montagem, que, como dizia Eisenstein (1997: 177), age desintegrando o acontecimento em diversos planos, o que imprimiria na obra um senso de simultaneidade.


Ainda segundo o cineasta russo, a montagem insere-se também dentro do plano (cinematográfico) – dentro do fragmento do poema, adaptando-se a colocação para a poesia –, esfacelando os limites das peças que o formam em séries de conflitos (EISENSTEIN, 1977: 177). É o que notamos no interior de cada estrofe desse poema de Murilo Mendes: a desconexão e os atravessamentos estão também marcados na estrutura dos versos e no encadeamento entre eles, na sintaxe e na compleição das imagens. Os cortes e lacunas de sentido (seja em enjambements, seja na relação entre orações coordenadas ou subordinadas sem uma relação lógica evidente) são expedientes recorrentes, com uma visão ou afirmação inesperada invadindo e recortando a sequência anterior.

Veja-se, a esse respeito, como a primeira estrofe é fragmentária e lacunar devido ao choque entre os versos e aos vazios sintáticos e semânticos: no primeiro verso, uma metáfora, de pouco valor descritivo e mais sugestivo, aponta para o “gigante dos ventos” (que pode ser o sol, o dia, ou o próprio universo) a dormir. Já o segundo verso, articulando-se por meio de um paralelismo sintático e semântico com o primeiro, apresenta a lua a trabalhar. O verso seguinte é ainda mais lacunar. Ele apresenta, agora, uma ação erótica (“Beija os teus seios”), mas não indica os sujeitos envolvidos nela. O verbo em terceira pessoa (“Beija”) não é conjugado a um sujeito, fazendo-se pensar que se trata do mesmo da oração anterior, a lua. As duas orações seriam coordenadas, mas o corte entre elas, através da divisão dos versos e do ponto final, mantém-nas em disjunção. Processo semelhante pode ser visto na terceira parte, na qual uma perspectiva inicial, que contém um sentido funesto, pela visão do espectro da namorada morta, é entrecortada pelos sons dos “clarins” do clube chamando para a festa. Vê-se que o poema se forma, então, por uma cadeia de cortes e de choques, numa linha próxima da indicada por Antonio Candido (2005: 81-95) a propósito de “O pastor pianista” (poema de As metamorfoses): envolvendo a divergência com a ruptura, para gerar um efeito de surpresa.

O aspecto da divergência fica patente, ainda, nos níveis vocabulares e na associação de imagens. Elementos contrastantes são postos em movimentos ou ações paralelas, assim fundando uma dinâmica de flutuações por diferentes planos. Nos dois primeiros versos, já temos esse jogo de contraposições: o sol, sugestivamente (pela metáfora do “gigante dos ventos”) contrasta com a lua; aquele situa o dia, esta a noite; aquele dorme, esta trabalha. Num jogo semântico ainda mais complexo, apoiado em um paradoxo sutil, o poema sugere que o “trabalho” da lua é despertar a amante do sujeito lírico para o sonho sonambúlico que o leva a um plano suspenso. O jogo de opostos continua com a caracterização desse espaço mágico aberto aos dois amantes: os “cavalos voadores” (metáfora que, por si, já é formada por uma junção insólita e tensa entre um sentido de densidade e outro de leveza) os conduzirão ao “deserto branco”. Dois planos são aqui justapostos: um aéreo e vertical (o voar) e outro espesso e plano (o deserto), sendo que a este o adjetivo “branco” doa um sentido de transcendência.


Na segunda parte, temos a agudização do senso de divergência: do plano aéreo em que estávamos, na primeira parte, voltamos a um imanente, de pedras, árvores e aves vindas da estratosfera. O sujeito lírico agora se esbate contra uma força oculta que reprime seus impulsos, pondo uma pedra sobre seus sonhos, impedindo-os de “voarem”. Na parte seguinte, novos contrastes: entre as mulheres presentes (“Maria acorda, namorada morta”) e entre o tom fúnebre que marca a primeira estrofe e o festivo das demais, permeado de luzes, flores e o som de um jazbande. Outra variação entre um senso de gravidade e o de iluminação domina na parte seguinte, em que o sujeito lírico vislumbra uma espécie de tempo pós-messiânico, erigido após (ou a partir) da guerra e da Razão, no qual ainda restam alguns elementos distintivos da modernidade. Essa nova realidade entrevista se fará aberta à frequentação de figuras religiosas e escatológicas, que terão, no lugar dos homens, as experiências mais prosaicas: “passear de táxi à beira-mar”, “tirar retratos elétricos”. Se nessa quarta parte, os “seres do outro mundo” são trazidos ao plano terreno, na quinta é o sujeito lírico que dá adeus à “máquina” da vida e, num “vou-me-emborismo” à la Bandeira, despede-se para uma realidade encantada, que em nada lembra aquela com que se abre o poema.


É apenas relacionando toda essa fragmentação na estrutura e o entrelaçamento confuso de referentes e imagens à dinâmica própria dos sonhos que notamos que essa composição, não apenas retrata, mas mimetiza um complexo de sonhos intranquilos tidos pelo sujeito numa madrugada.

O registro surrealista está aí implicado, não apenas pela atmosfera de fantasia noturna (“enquanto a lua trabalha”), mas por essa desconexão e esse atravessamento confuso mesmo das partes, à maneira como André Breton, no Manifesto surrealista (1985: 42), caracterizava o sonho: “a memória arroga-se o direito de nele fazer cortes, de não levar em conta as transições, e de nos apresentar antes uma série de sonhos do que o sonho”. Entretanto, pode-se ver que os cortes não são apenas da memória, mas também da realidade, que se projeta no sonho e, por extensão, no poema através de feixes de sombra, que são os referentes negados, mas sugeridos, como: um “deserto negro” em contraste com o “branco” enunciado, um ser indistinto que colocou “uma pedra” no sonho do eu lírico, a “guerra”, a “razão”, as “determinações do século”.

Temos aí, então, um mundo onírico, mas sonambúlico, em que se entrelaçam visões de planos iluminados com resíduos de acontecimentos cujas marcas são indeléveis. O poeta parece sonhar quase que no limite do sono, com o horror desesperado de acordar e, assim, voltar à “máquina” da realidade (que mói sua tristeza). A entrega total ao mundo onírico, enunciada ao final do poema, é, tal como Murilo Marcondes de Moura (1995: 94) observa a respeito de outras duas composições de nosso autor (“Os amantes submarinos” e “Poema lírico”, ambos de As metamorfoses), desesperada e paradoxal: é que esse tópos harmônico é buscado como “resposta à negatividade do mundo”, e “tal resposta torna-se tão intransitiva que aquela intenção fica parcialmente frustrada”.


Os marcadores dessa “paradoxalidade” estão inscritos na própria forma desarticulada do poema. O clima de “surrealidade quebrada” se engendra, principalmente, a partir da estruturação fragmentária, patente não só em sua divisão em blocos estróficos numerados, mas, também, na desconexão que domina entre os versos e na sintaxe. Diferentemente, então, de como Murilo Marcondes lê os poemas murilianos – neles reconhecendo, inclusive com base no recurso da montagem, a articulação de um plano único, a objetivação de uma “totalidade harmônica” –, entendemos ser essa poética pautada num princípio agônico, com a desarticulação e a tensão entre suas partes compositivas manifestando o conflito entre o sujeito e o mundo. Tal como Friedrich observou a propósito das Illuminations de Arthur Rimbaud, o poeta não produz aqui tessitura de sentido completo, “mas, sim, fragmentos, linhas truncadas, imagens agudas, perceptíveis aos sentidos, mas irreais” (1978: 60).

Nesse entrecruzamento tenso de elementos significantes de realidades díspares, o poema manifesta uma forte “sobrecarga” semântica, que exprime toda a perplexidade envolvida na visão de mundo do poeta. A experiência histórica e existencial se manifesta pelo signo da contradição, cuja constituição se dá no encontro tenso entre elementos de planos contrastantes. O jogo antitético, aqui, não permite o estabelecimento de uma realidade significada, mas o advento, num mesmo plano semântico, de fragmentos de realidades diversas, que exprimem, justamente, a confusão de sentidos implicados na experiência histórica e existencial. Nosso limite interpretativo vem a ser a confusão insolúvel de sentidos. Poderíamos dizer, então, lembrando palavras de Merquior (2013: 75), que o sentido último que o poema atinge é o da manifestação do páthos subjetivo do poeta, “em seu rosto ambivalente e em seu coração dilacerado de contrários”.


Referências:

Andrade, Mário de (2002). A poesia em pânico. In: O empalhador de passarinho. 4. ed. São Paulo: Editora Itatiaia, pp. 49-56.

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