ANELITO DE OLIVEIRA
Foto de Sobral Cultura
A morte é um recolher de asas, como diz Mia Couto citado na abertura deste novo trabalho de Tânia Lima. Mas como é morrer para quem nasceu sem asas? Como é morrer para quem descobre com Manoel de Barros a possibilidade do voo fora das asas? O que é a morte para quem não mais deseja, como Simone de Beauvoir, viver em tempos mortos? Estas perguntas modulam sutilmente os poemas deste Recolher de asas. A sutileza consiste, nos entrechos da obra, numa desvelação lenta de perspectivas desconcertantes sobre a morte. Responder pretensiosamente perguntas sobre o maior dos temas humanos não é nem poderia ser o caso aqui. A questão é plantar e cultivar sentidos afins dessas perguntas, recolher suas asas ambíguas e compartilhar uma colheita necessária. Sim, a poeta Tânia Lima nos coloca aqui em face de uma necessidade de colhermos o que está no centro da experiência deste tempo pandêmico: a morte. Mas o ato de colher, um dos sentidos originário de ler, não é algo que se possa fazer à distância, apenas virtualmente, sem proximidade, sem envolvimento, sem intimidade. O ato de colher implica uma relação processual que transpõe exterioridades vazias, neutras, e alcança uma interioridade pulsante, comprometida, desde as entranhas do ser efetivamente vivo, com o outro. Percebe-se, da primeira à terceira seção nas quais se organizam os poemas, um movimento das asas ao próprio voo, do estático ao dinâmico, do recolhível, contível, ao irrecolhível, incontível. O que se recolhe é sempre uma parte de um processo de existir que vai muito além da simples razão, do ponderável, que chega às raias do imponderável, do misterioso, do que não se pode dizer porque não cabe no “logos”, no discurso configurado em termos dogmáticos. No limite inquietante do dito e do dizer, sobressai-se sempre a voz terna, acolhedora, de uma poeta arquipelágica, para lembrar Glissant, que fala a partir de um lugar azul.
Que lugar é esse? Interessa-me muito, ainda que de modo sintético, destacá-lo aqui como uma das chaves de leitura da poesia de Tânia Lima que me parecem férteis. Sobretudo porque me parece estruturante do modo como a poeta modula seu canto e também sua dança com a morte, esses poemas que se distinguem por uma intensidade acústica tanto quanto por uma extensidade orgânica, um movimento corpóreo. Esse modo é musical, isto é, móvel, movente, sonante, orante, vocal, assonante, fundamentalmente afro-ameríndio. Esse lugar colorido se contrapõe ao lugar branco incolor ainda tristemente hegemônico até no campo das letras e artes, especialmente em países ainda tocados ideologicamente pelo colonialismo, como o Brasil. Contrapõe-se, portanto, a horizontes epistemológicos embasados pelo etnocentrismo e pelo logocentrismo, fontes eternas de sofrimento dos grupos minoritários. O lugar azul, sinestésico, da poeta é uma referência de impossibilidade possível, de utopia como um não-lugar que se define como resistência a lugares pré-estabelecidos como lógicos, permitidos, legais, casos do controverso “direito positivo”. Esse lugar se desvela em detalhe em dois poemas desta coletânea intitulados sugestivamente “A descoberta do azul” e “Madrugada azul”, nos quais o sujeito se recorda do pai e da mãe em dois momentos distintos da vida, na juvenília, em pleno dia da vida, e na maturidade, dentro da noite. Descobrir o azul equivale a descobrir a complexidade do real, que o real resulta da relação sujeito-objeto, que a relação é mediada pela percepção e que esta, por sua vez, impregna a própria linguagem, alterando realidades estabelecidas. O pai desempenha um papel hermenêutico num processo que é de autolibertação, de aquisição de um jeito poético, anormal, de estar no mundo, o pai é o Hermes, o mensageiro que conduz maternamente a filha a um mais-além do convencionado como normal. A mensagem é a própria maiêutica: o pai-mãe enseja a parição metafórica de um ser para o infinito, que, por isso mesmo, não consegue lidar com uma perspectiva simplista, vulgar, sobre a morte.
Em “Madrugada azul” aparece um ser capaz de compreender ternamente a morte da mãe porque descende de um lugar encantado, aquele que lhe foi apresentado pelo pai à beira-mar, onde descobriu o azul como infinito, e este como medida do real incomensurável. A voz desse ser que agora aparece vem de longe, como se poderia dizer recordando o jovem Heidegger de Ser e tempo, e porta aquela bagagem hermenêutica figurada em “A descoberta do azul”, sabe que o mar está cheio de “vrido”, isto é, que o real é estranho. Os quatro versos de abertura de “Madrugada azul” colocam em relevo um sujeito em movimento, que reencontra a mãe morta num momento de seu processo circular de compreensão: “Retorno de mãos vazias | Embrulho perguntas sem respostas | Somos companheiras do tempo | Abrimos as janelas do século XXI | E chegamos à casa – coração!!!” A circularidade indicia que o processo de compreensão não é movido por um desejo finalista, não é um processo historicista, o que afasta qualquer perspectiva tirânica sobre a vida e instaura a comunhão de particularidades intersubjetivas como espécie de princípio eternizante, fonte de uma afetividade imortal. A morte da mãe não responde às perguntas convencionais sobre a morte porque o sujeito-filha superou a morte como finitude ao descobrir o azul, o lugar de um sentido transcendente, supra-sensível, que emana do entorno, mais ainda: emana das relações estabelecidas nesse entorno. “Madrugada azul” nos revela a mãe como parte de um todo intersubjetivo, no qual se destacam o tempo, a casa, o amor, o cuidado, a música, os cabelos, os olhos, as rugas e, de modo muito significativo, “o cheiro da palavra lealdade”. Esta sequência significante é uma espécie de “telos” afetivo entre o sujeito-filha e o objeto-mãe, uma particularidade que a morte não consegue destruir porque pertence à dimensão do simbólico e, como tal, move o processo poético de Tânia Lima, mantendo-o sempre aberto (“Há orquídeas amanhecendo”), um processo que nasce com a percepção do vínculo entre mãe, poesia e infinitude:
Quando olhei para minha mãe,
eu tinha nove meses de vida
emprestei meus olhos para ver de perto o infinito
havia poemas nascendo.
morrer é deixar de habitar
habismos
Em “A descoberta do azul” e “Madrugada azul” desvela-se, ainda que velando-se, a razão do modo como a poeta modula a temática da morte em Recolher de asas, elementos que nos levam a compreender por que, afinal, a morte não é tratada aqui de uma perspectiva pesarosa, triste, romântica. O amor em suas várias dimensões – eros, philia, ágape – tem ascendência sobre a morte, constitui uma potência de vida que antecede, atravessa e transcende a morte, que acaba por ser glosada, sobretudo na terceira parte do livro, denominada “Recolher de asas”, como coisa jocosa. Um exemplo: “Eu já morri ontem | e também antes de ontem | ando tão cansada de morrer”; outro exemplo: “Depois de amanhã | estarei bem viva para morrer | como um fósforo frio | que se apaga à meia noite”. São poemas, ambos sem título, que correspondem ao desejo do sujeito, enunciado com a citação de Beauvoir, de viver sem tempos mortos, aqueles tempos passados em que a diferença de gênero, por exemplo, não pôde ser experienciada em razão da dominação masculina. O olhar jocoso sobre a morte é efeito da liberdade de ser que o livro aborda na parte anterior, denominada “A descoberta do voo”, de que é exemplo elucidativo o poema “A descoberta do azul”. O sujeito que se permite rir da morte é aquele que se percebe livremente, audacioso em face da história, como vemos em “Oração feminista”, uma revisitação irônica da atmosfera modernista no limiar dos 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922: “Vevé ensinava Marilinha a fazer o sinal da cruz | em nome do pai, do filho e do Espírito Santo... | Não é assim não, mamãezinha | Vou te ensinar a rezar: | - Em nome da mãe, da tia, da sobrinha... | Oh, mãe, pode colocar a vovó”. Toda essa rebeldia discreta, característica notável da linguagem poética de Tânia Lima, tem seu impulso imediato, digamos, na própria literatura, na poesia e na prosa de autores e autoras de sua predileção, referências de sustentabilidade do seu lugar azul. Essas referências, disseminadas por todo o livro (Safo, Drummond, Ana C., Billie Holiday, Emily Dickinson, Virginia Woolf, Rosa etc), não são letra morta, meramente ornamental, mas letra viva, em razão de um sujeito que se compreende como parte de um processo hermenêutico que transcende a morte. “Sou uma mulher barata| Nasci Kafka”, lemos em “Matamorfose”, um dos poemas da primeira parte do livro, denominada “Nascer sem asas”. Lemos e rimos. Seria só cômico, se não fosse kafko, típico de um lugar límico, onde nascer-morrer-nascer é um processo infinito, esse terno lugar azul, do blues, do banzo, do “spleen”, do “ennui”, mas também da resiliência, da utopia, do sensível, inquietante lugar do ser que realmente somos num mundo bruto demais.
Texto escrito para figurar como posfácio do livro Recolher de asas, nova coletânea de poemas da maranhense Tânia Lima em vias de aparição.
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