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Homenagem a Ivan Teixeira, polímata, leitor-amigo de Cruz e Souza, por Jean Pierre Chauvin

Atualizado: 10 de nov. de 2021


Recentemente, Peter Burke (2020) descreveu o polímata como um ser versado em várias matérias e saberes. Esse traço, tão frequente entre os filósofos da Antiguidade, os teólogos da Idade Média e os homens letrados da Era Moderna, encontra raros exemplares em nosso tempo, dominado pela especialização voluntária ou compulsória. Não era esse o caso de Ivan Prado Teixeira (1950-2013), cuja contribuição para a historiografia literária e a cultura brasileira são inquestionáveis. Por isso mesmo, torna-se complexo falar sobre ele, pois somos tentados a recobrir a maior parte das tantas coisas que fez e não temos a mesma capacidade de análise, contextualização e síntese.


Descontadas as limitações, e sendo essa uma forma de celebrar sua trajetória e seus feitos, poderíamos começar com um dado pessoal. Encontrei Ivan em duas ocasiões, no intervalo de dezesseis anos. Certa noite em 1996, numa das aulas de Literatura Brasileira, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, João Adolfo Hansen apresentou à turma do Noturno um sujeito de quarenta e poucos anos que nunca tínhamos visto por lá. Naquele momento, Obras Poéticas de Basílio da Gama estava no prelo. Três anos depois, seria editado Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica, fruto da tese de doutorado concluída em 1997. Afora a coletânea e a tese, Ivan já acumulava extensa produção didática, em parceria com seus colegas do curso pré-vestibular onde lecionou antes de ingressar como docente da Universidade de São Paulo.


Segundo contato. No início de 2012, enquanto reunia materiais para desenvolver uma pesquisa em torno do Quincas Borba, sexto romance de Machado, li e anotei O Altar & O Trono, que saíra dois anos antes. O livro resultava da tese de livre-docência do professor. Impressionado com a qualidade do que li, enviei uma mensagem para Ivan, por e-mail, à qual ele respondeu pronta e generosamente. Combinamos de nos encontrar no dia 30 de maio, um pouco antes do meio-dia, na sala 17 – que ele dividia, na ocasião, com Plinio Martins Filho, José de Paula Ramos Júnior e Marisa Midori Deaecto (hoje, meus colegas).


Reconheci-o imediatamente, agora grisalho. A primeira coisa que ele disse foi: “Desculpe. Estou atrasado?”, ao que respondi de forma negativa – pontual que ele era. Em geral, reuniões entre desconhecidos, mormente no acanhado mundo acadêmico, consomem o tempo de um café ou almoço. Para meu deleite, a conversa durou mais de duas horas. Almoçamos, tomamos café, retornarmos à sala 17 e continuamos a prosa. A segunda coisa que ele perguntou foi de qual capítulo do seu livro eu mais havia gostado. Respondi, sem titubear: “do segundo”, ao que ele sinalizou que, de fato, talvez fosse o mais importante do volume. É nele que defende a hipótese de Machado de Assis ter sido uma espécie de editor dos próprios textos (e possivelmente de algumas cartas à redação redigidas por ele mesmo).

Em tempo. Comecei esse depoimento pelo livro sobre O Alienista, porque foi a primeira coisa do Ivan que li. Somente meses depois, retomei Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Nos anos que vieram, descobri as muitas outras coisas que fez, como as edições fac-similares de Música do Parnaso (provavelmente o estudo mais completo sobre Manuel Botelho de Oliveira realizado no Brasil), publicada em 2005; Os Faróis (1998) e Broquéis (1994), de Cruz e Souza; as Poesias de Olavo Bilac (1997) e a coletânea Épicos, que reunia poemas dos Séculos XVIII e XIX, lançada em 2008.

Afora esses e outros trabalhos, que conheci melhor ao longo do tempo, é preciso realçar a qualidade dos artigos que produziu. Como são numerosos, atenho-me apenas a alguns deles, pois são os ensaios a que recorro com maior frequência, quando tento dizer algo sobre a poesia luso-brasileira do século XVIII, a prosa de Machado de Assis e os pressupostos da historiografia nacional, criada e consolidada durante o Segundo Império. Por extensão, essas também são as referências que mais recomendo aos alunos que estão no terceiro semestre (“Colônia”) do curso de Editoração, bem como aos pesquisadores da pós, nos programas a que estou vinculado.


“O que se conhece hoje por “literatura colonial brasileira” é invenção do século XIX. Fundados na tradição da hermenêutica romântica, que procura homogeneizar o passado para ajustá-lo aos olhos do presente, os estudiosos do nascente Império brasileiro criaram aquela expressão para designar as letras produzidas no Brasil durante os séculos XVI, XVII e XVIII. Nesse processo de acomodação do passado aos interesses do presente, formulou-se um programa de desconsideração sistemática pelo conhecimento das normas específicas de produção textual de cada um dos períodos que, a partir do século XX, seriam respectivamente denominados de Classicismo, Neoclassicismo/Arcadismo e Barroco” (2003: 138-139).

Esse é o parágrafo inicial de “Hermenêutica, retórica e poética nas letras da América Portuguesa”, artigo veiculado na Revista USP há dezoito anos. Nada seria mais adequado a um dos ensaios mais notáveis de Ivan Teixeira. Essa breve amostra revela o poder analítico e a capacidade de condensação do crítico. Estudioso da obra de Luís Vaz de Camões, Manuel Botelho de Oliveira, Basílio da Gama etc., raras vezes o ensaísta foi tão incisivo, ademais se considerarmos que o tom impresso nas primeiras linhas permaneceu o mesmo até o final do artigo.


O que Ivan questionava era a desconsideração, por uma parcela de nossos críticos, das prescrições retórico-poéticas no contexto teológico-político do Antigo Regime, e o fato de os poetas necessariamente emularem auctoritates que os precederam. O texto é muito relevante porque relembra a sua aproximação com as pesquisas realizadas por João Adolfo Hansen e Alcir Pécora, sem contar o diálogo explícito com Brian Vickers, Linda Hutcheon, Mario Valdéz e Lauren Pernot – para referirmos apenas alguns de seus interlocutores.


Outro ensaio fundamental é aquele em que ele reapresenta os versos de Olavo Bilac e questiona o relativo ostracismo a que o poeta fora relegado, especialmente graças à intervenção do entourage em torno de Manuel Bandeira, Mário e Oswald de Andrade. Na escola, costumamos aprender que cada “movimento literário” se contrapõe ao predecessor, o que explicaria, quase natural e automaticamente, a violenta reação dos modernistas aos poetas que “só” cultivavam “a forma”, alheios às “questões sociais”, porque isolados em suas “torres de marfim”. De acordo com Ivan Teixeira, essa concepção, além de injusta, era demasiado redutora, pois não levava em grande conta o teor, a sonoridade e o ritmo dos versos:


“Até José Veríssimo, o mais austero defensor do que então se considerava boa literatura, elegeu alguns de seus sonetos como o ponto máximo a que tinha chegado a possibilidade de beleza nessa espécie de poesia no Brasil (1977, pp. 9-15). Apesar disso – ou exatamente por isso –, o padrão de bom gosto criado pela geração de Bilac foi vivamente combatido pelos modernistas de 22. No ‘Prefácio Interessantíssimo’, manifesto de Paulicéia Desvairada, Mário de Andrade cita alguns versos de sua autoria contra outros de Bilac. Apresenta os versos bilaquianos como ‘melodia’ ultrapassada; os próprios, ele os apresenta como ‘harmonia’ revolucionária, insinuando tratar-se da única opção aceitável para o momento” (2002: 99).

A dicção do articulista é ao mesmo tempo elegante e combativa. Na pele de historiador literário, Ivan Teixeira endereçava recados certeiros a colegas de ofício que se mostravam tão aderentes à turma dos modernistas quanto incapazes de reconhecer a virtude e o papel sobranceiro de Olavo Bilac – um dos poetas mais populares no país, entre o final do Século XIX e a segunda década da centúria seguinte. Ivan sugere que, justamente por perceberem a competência do poeta, Mário, Bandeira e Oswald ridicularizaram a produção bilaquiana, também como forma de se sobressaírem a ele, encobrindo o fator estético com o alarido dos manifestos e a “novidade” europeia do verso como fragmento – pretexto para o panfleto não conservador, nem passadista.


De volta aos livros, cumpre ressaltar o excelente texto de apresentação a Raul Pompeia. Autor de numerosos prefácios que primam pela erudição e clareza, Ivan Teixeira começa por discutir o não-lugar de O Ateneu, contrapondo-se às visões monodimensionais sobre a história de Sérgio, no colégio do todo-poderoso Aristarco. É curioso observar como mesmo os estudiosos especializados na obra de Pompeia investem grande energia na tentativa de afiliar o romance a uma das vertentes do final do Oitocentos (seria ele um exemplar “Realista”, “Naturalista” ou “Impressionista”?). Partindo em direção contrária, Ivan propõe que a classificação é um pormenor que não contribuiria para a leitura mais sensível e a leitura vertical do romance. Por isso,


“[...] na época de Pompeia havia diversas correntes estéticas, mas o artista jamais filiou explicitamente seu romance a nenhuma delas em particular. O livro partilha da poética cultural do tempo, mas preserva autonomia relativamente aos estilos artísticos, apropriando-se, conforme as conveniências internas do texto, de aspectos do Realismo, do Parnasianismo, do Naturalismo, do Simbolismo e do Impressionismo” (2012: 42).

Analogamente ao método com que Ivan discute o romance de Pompeia, importa resgatar o que ele disse sobre a poesia de Cruz e Souza. A essa altura, o leitor não se surpreenderá com o fato de ele soar de modo dissonante, frente a certa tradição crítica que imobilizou o poeta, como se se tratasse de um sujeito problemático com “fixação pelo branco”, e não um artífice capaz de criar uma persona lírica que discorria sobre variados elementos, para além de transpor para o papel as questões de ordem racial, social ou econômica. Ao apresentar a edição de Broquéis, o crítico observa que:


“O poema deixava de ser instrumento de nomeação ou referência, para se tornar um fim em si mesmo, assumindo a condição de símbolo de sensações e cambiantes emocionais. Esse novo conceito de poesia demandava uma enorme pesquisa com a linguagem, pois descobria-se que a impressão de vagueza e abstração resultava antes do trabalho concreto do artista sobre o texto do que da simples projeção de conteúdos psicológicos. Com efeito, a poesia simbolista é, antes de tudo, uma experiência com a imagem e com o ritmo do verso” (1994: XII-XIII).

A ressalva se aplica a duas espécies de abordagem: uma, que pretenda caracterizar o Simbolismo como Neo-Romantismo (nada mais equivocado, aceitando a premissa de que se trata de uma produção não voltada para a fala-de-si, mas sobre a armação, sonoridade, ritmo e feitura dos versos, repletos de sugestões evocadas pelo enunciado poético); outra, que revela a maior preocupação do comentarista em contrapor Simbolismo e Parnasianismo, desprezando o rigor formal e os múltiplos artifícios empregados pelo poetas, ainda que estivessem alinhados e afixados a diferentes projetos estéticos, ambos finisseculares. Decerto, o verso de Cruz e Souza não pode ser engessado em nome do didatismo pré-vestibular.

Não posso me furtar a dizer algo sobre a impressionante tese de Ivan Teixeira, que resultou no denso estudo sobre a poesia encomiástica de José Basílio da Gama. De partida, ele explicita os dois modos de ler O Uruguay, publicado em 1769, ano em que o poeta havia sido preso em Portugal, sob a acusação de professar os dogmas da Companhia da Ordem de Jesus:


“Ao interpretar o poema de Basílio da Gama como epopeia brasílica, o Romantismo o tomou como um dos alicerces da fundação da literatura brasileira propriamente dita, posição ratificada pela crítica de inclinação nacionalista na atualidade. Ao entendê-lo como encômio alegórico, o presente ensaio procura restituir O Uraguay a seu lugar de origem: o discurso pombalino, aqui proposto como versão católica do despotismo esclarecido, espécie de metonímia portuguesa da Ilustração europeia” (1999: 16).

Repare-se que o ensaísta contestava certos pressupostos, métodos e objetivos da crítica brasileira desde o início da década de 1990, o que nos autoriza a dizer que ele foi um dos primeiros estudiosos de fôlego a relativizar certos impressionismos, replicados desde a segunda metade do Século XIX, em florilégios e manuais de historiografia literária.

Recorde-se que Ivan Teixeira, além de pesquisador rigoroso e empenhado, era ótimo professor. Basta assistir aos registros de suas falas, disponíveis na Internet, para reconhecer nele o grande leitor de prosa ou poesia, notável educador que era. Não há como ficar indiferente ao modo como ele recitava poemas, mostrando (enquanto os reproduzia) os pés rítmicos, os diferentes acentos no interior do verso, o esquema de rimas... sem esquecer o modo adequado de proceder a cesura. O mesmo valeria para os excertos em prosa, em que a dicção do orador transmitia energia e chamava atenção para detalhes que poderiam ser perdidos ou desconsiderados numa leitura solitária, desprovida de som e performada em menor voltagem.


Isso nos permite afirmar que a escrita de Ivan Teixeira é tão eloquente quanto a sua fala. Feito raro, observando o ambiente rarefeito que nos cerca, nega e ronda. Leitor agudo e voraz, a capacidade de decifrar e interpretar os artefatos culturais era uma consequência das matrizes teóricas que visitou, especialmente a do New Historicism, representado por Hayden White (Metahistory, de 1973) e Stephen Greenblatt (“Towards a Poetics of Culture”, ensaio de 1989), quando ele discutia o conceito de “poética cultural” (2006). Além deles, é preciso recordar o nome de James J. Murphy, autor do célebre Rhetoric in the Middle Ages (1974).


Para dar outra amostra do caráter didático que caracterizava a sua ensaística, recorro a uma passagem de “A Poesia Aguda do Engenhoso Fidalgo Manuel Botelho de Oliveira”, em que ele conduz o leitor em direção a um modo diferente de conceber a arte do verso – condição essencial para que a Música do Parnaso fosse compreendida e interpretada sem maior interferência dos anacronismos.


“Além de se inscrever na prática dos poemas, o conceito de poesia em Botelho de Oliveira pode ser abstraído de passagens doutrinais da dedicatória e do prólogo do volume. Fiéis à sua função de degrau da para o argumento da obra, esses textos contêm uma pequena lição de poética, apresentada ora explícita ora implicitamente. Como se sabe, a retórica tradicional entende a dedicatória como manifestação do gênero exornativo de discurso, tomado como sinônimo de deliberativo ou epidítico, por meio do qual o orador louva ou censura a matéria de sua invenção” (2005: 15).

Essas citações sintetizam os traços que caracterizavam a produção de Ivan Teixeira, dentro e fora dos livros. Certamente haveria muito mais o que dizer sobre o docente, o pesquisador e o ensaísta. Mas, seguindo a recomendação de Aristóteles, convém que o texto encomiástico não peque pelo excesso (sob o risco de soar como derramamento).


Consciente do que nele falta, julgo importante fazer dois registros, retomando os dias que se seguiram ao diálogo com Ivan Teixeira no Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA, em 2012. Após nosso encontro, trocamos algumas mensagens por e-mail, até que em dezembro, uma delas ficou sem resposta. Vim a saber (mais de um ano depois) que ele estava internado no hospital, lutando pela vida e escrevendo ininterruptamente... Em 31 de janeiro de 2013, recebi a notícia de sua morte por um colega (emocionado) ao telefone. Em abril do ano seguinte, aprovado em concurso, assumi a grande responsabilidade de zelar pelas disciplinas criadas e ministradas por ele – sabedor de que não tinha nem o repertório, nem a inteligência do mestre. Ao longo de sete anos, reli vários dentre seus textos, tanto para ajudar a organizar o fluxo de ideias antes da aula, quanto na tentativa de levar adiante o legado que ele deixou. Ivan Teixeira foi um exemplar incomum, desses que produzem muito, sem perder precisão e qualidade. Ressalvadas as limitações, tento dar continuidade a seu rigoroso trabalho em torno dos poetas luso-brasileiros que circularam entre a metrópole e a colônia entre os Séculos XVI e XVIII, mais a poesia, o conto e o romance produzidos no Século XIX.


Referências


BURKE, P. (2020). O Polímata: uma história cultural de Leonardo da Vinci a Susan Sontag. Trad. Renato Prelorentzou. São Paulo: Editora Unesp.


TEIXEIRA, I. (1994). Cem Anos de Broquéis – sua Modernidade. In: CRUZ E SOUZA, Broquéis. São Paulo: Edusp.


_____. (1999). Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica: Basílio da Gama e a Poética do Encômio. São Paulo: Edusp.


_____ (2002). Artifício, Persuasão e Sociedade em Olavo Bilac. In: Revista USP, n. 54, São Paulo, p. 98-111.


_____ (2003). Hermenêutica, Retórica e Poética nas Letras da América Portuguesa. In: Revista USP, n. 57, São Paulo, p. 138-159.


_____ (2005). A Poesia Aguda do Engenhoso Fidalgo Manuel Botelho de Oliveira – 300 anos depois. In: OLIVEIRA, M. B. de. Música do Parnaso. Cotia: Ateliê.


_____ (2006). Poética Cultural: Literatura e História. In: Revista Politeia, v. 6, n. 1, p. 31 a 45.


_____ (2010). O Altar & O Trono: Dinâmica do Poder em O Alienista. Cotia: Ateliê; Campinas: Editora Unicamp.


_____ (2012). O Luar Verde de Raul Pompeia. In: Raul Pompeia. Rio de Janeiro: ABL; São Paulo: Imprensa Oficial, p. 41-94.



Ivan Teixeira



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