Texto sobre relação entre a crítica literária e a obra de Lima Barreto, cujos 140 anos de nascimento completam-se neste 2021. Trabalho é fragmento inédito de livro que integra Coleção Atravessamentos Impossíveis, projeto da Inmensa Editorial .
Lima Barreto por Felipe Stefani
Antonio Arnoni Prado (2012), esclarecendo a identidade do Pelino Guedes mencionado por Lima Barreto em carta a Mário Galvão datada de 16 de novembro de 1905, escreve que o poeta burocrata, então Diretor-Geral da Diretoria de Justiça do Rio de Janeiro, foi um escritor fracassado que conduziu com extrema má vontade os trâmites para a regularização da aposentadoria do pai do escritor. Por ter se desentendido com ele frontalmente, Barreto o transformou num símbolo da gramatiquice prepotente e da intolerância, tomando-o como inspiração para personagens como Xisto Beldroegas de Vida e morte de J.M. Gonzaga de Sá, o ministro J. F. Brochado de Numa e ninfa e o Capitão Pelino do conto “A nova Califórnia”, de 1915, conto em que se narra como o personagem Raimundo Flamel, que ninguém sabia de onde viera, instalou-se na cidade de Tubiacanga e conquistou a admiração e respeito de seus habitantes antes de aplicar um golpe e enganar toda a cidade. Escreve Barreto (2010: 65):
Capitão Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão local e filiado ao partido situacionista, embirrava com o sábio. “Vocês hão de ver, dizia ele, quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez um ladrão fugido do Rio.” A sua opinião em nada se baseava, ou antes baseava- se no seu oculto despeito vendo na terra um rival para a fama de sábio de que gozava. Não que Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada do capitão Pelino, e mesmo quando se falava em algum homem notável lá no Rio ele não deixava de dizer: ‘Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: ‘um outro’, ‘de resto’...’. E contraía os lábios como se tivesse engolido alguma coisa amarga. Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o solene Pelino, que corrigia e emendava as maiores glórias nacionais. Um sábio...
Ao final, o Capitão Pelino tinha razão sobre o caráter do forasteiro, mas não porque raciocínios lógicos de dedução e análise apurada o fizessem concluir pela falta de honestidade de Raimundo. O despeito por alguém disputar com ele o posto de sábio da cidade é que o faz acertar a suposição sobre Satanás. O conto “A nova Califórnia” tinha, em sua primeira versão, o título de “A última de Satanaz”,conforme levantamento de Lilia Schwarcz (2010: 63). O acerto pelo erro, um belo e irônico trocadilho com o qual Barreto reforça sua visão sobre o fazer literário: a transformação do argumento em sentimento é muito mais importante que a artificialidade da correção gramatical normativa.
Ao comentar a frase “Machado escrevia com medo do Castilho e escondendo o que sentia, para não se rebaixar; eu não tenho medo da palmatória do Feliciano e escrevo com muito temor de não dizer tudo o que quero e sinto, sem calcular se me rebaixo ou se me exalto”, presente em uma carta que Lima Barreto enviou a Austregésilo de Athaíde em 19 de janeiro de 1921, Arnoni Prado (2012: 34-40) diz que o autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha se refere à palmatória de Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875), poeta, tradutor e escritor português.
A rixa de Lima com os gramáticos, espalhada pelos seus relatos, foi estimulada também pela “submissão ortodoxa de que a figura de Castilho acabou virando símbolo”. Sobre o amigo “poeta e revolucionário”, que conheceu na Pensão para a qual foi após sair do Hotel Jenikalé, sua primeira hospedagem no Rio de Janeiro, Isaías Caminha escreve em Recordações:
Abelardo Leiva,(...) Como poeta tinha a mais sincera admiração pela beleza das meninas de Botafogo. (...) e a sua musa – uma pálida musa, decentemente abotoada no Castilho e penteada diante dos espelhos de B. Lopes e Macedo Papança – quase diariamente lhe cantava a beleza ‘olímpica e lirial’ (p. 83).
A musa pálida, que inspira o resquício de poeta parnasiano Abelardo Leiva, aparece pronta para o baile comemorativo do culto às normas gramaticais e estilísticas, bem ajustada e com a boa postura garantida pelo suporte do espartilho que lhe espreme o corpo, assim comoabotoada está a linguagem literária pelas normas do Castilho. Compondo a tríade de “símbolos” das “escoras sabichonas”, ainda temos: “O senhor Coelho Neto é o sujeitomais nefasto que tem aparecidono nosso meio intelectual”, da crônica “Histrião ou literato”, de 1918. Mas o ponto alto da crítica barretiana aos que procuram na correção gramatical e no perfeito ajuste sintático a beleza e eficiência do texto literário está nas páginas das Recordações nas quais o contínuo Isaías descreve o “ambiente de fatuidade e ignorância” do jornal “O Globo” em que trabalhavam literatos e jornalistas, e cujos interesses e conceitos estéticos ficam bem claros. O infortúnio do personagem “conhecido e respeitado como entendido em literatura e coisas internacionais” Frederico Lourenço do Couto, pseudônimo Floc, que “pôs fim ao seu desespero” estourando com uma bala “a fraca cabecinha”, dá a medida tragicômica dessa crítica, assim como a seguinte resposta do Doutor Lobo, consultor gramatical do jornal, à pergunta sobre se o correto seria escrever “um copo-d’água ou um copo com água”: “ – Conforme: se se tratar de um copo cheio, é um copo-d’água; se não estiver perfeitamente cheio, um copo com água”. O que motivou o suicídio de Floc foi a incapacidade de escrever a contento umas linhas sobre um espetáculo que havia assistido. Na época em que aparecem as primeiras críticas aos textos de Lima Barreto, a crítica literária brasileira, por um critério temporal e didático, segundo Wilson Martins (1952), dividia-se em três linhagens: a de julgamento histórico e avaliação de cunho estético unidas sob o prisma do crítico social e político, cujos representantes de maior fôlego são José Veríssimo e Ronald de Carvalho; a de caráter impressionista, ou do gosto e do desgosto, representada principalmente por Araripe Júnior, Nestor Vítor e João Ribeiro; e a linhagem gramatical preconizadora da ideia de que bom autor é aquele que escreve “certo”, na qual se destaca Osório Duque Estrada, além dos já comentados. Sobre José Veríssimo, afirma Marcio R. Pereira (2009: 6):
Para se ter uma ideia da complexidade do campo intelectual do século XIX, José Veríssimo, ao escolher Machado de Assis para centro do seu cânone literário nacional, deixa de lado muitos escritores, como Euclides da Cunha(1866-1909) e Lima Barreto (1881-1922), que seriam conflitantes em relação aos propósitos do crítico. Assim sendo, o campo intelectual proposto por Veríssimo não poderia ser definido por escritores que mostrassem os problemas sociais do Brasil, mas por escritores que, de certa forma, continuassem um padrão de “esfera pública” centrado nos ideais europeus de civilização.
As escolhas de Veríssimo determinam uma utilização clássica da linguagem e não experimental, no caso Euclides da Cunha e Lima Barreto, cujo padrão de cultura seria desenvolvido pela elite intelectual que se concentrava na Academia Brasileira de Letras.
Um questionamento do padrão cultural que não passe por um redimensionamento do uso da linguagem literária e artística em geral, não passe por uma subversão das ordens (linguística, política, comportamental), enfim, quando um questionamento é feito sem experimentação de alguma outra ordem, este questionamento não consegue vencer os domínios do padrão cultural a que tenta subverter. Porém, este talvez fosse um pensamento compartilhado por Lima Barreto e Roberto Arlt na literatura argentina das primeiras décadas do século XX, mas não por José Veríssimo, conforme se pode constatar em carta que este envia a Barreto em 05 de março de 1910, documento citado por Arnoni Prado (2012: 174). Se, com Nestor Vítor, Lima Barreto parece ter tido um diálogo pontuado por uma maior afinidade de ideias, diferentemente ocorreu em relação a João Ribeiro. Do primeiro elogiou o livro A crítica de ontem numa crônica recolhida em Impressões de leitura, reunião de textos publicada em 1956, provavelmente por não se identificar com os autores literários por ele criticados negativamente e também por apreciar o paralelo feito entre Machado de Assis e José de Alencar. Ainda sobre Vítor, Barreto (70-71) escreve na crônica “Elogio do amigo”, constante do livro Marginália:
Não sei como possa dizer bem da atividade literária de Nestor Vítor. Eu o conheci menino, quando fazia preparatórios no Ginásio Nacional.
Nesse tempo, Nestor era vice-diretor do Internato; e eu não gostava dele. Correm os tempos e aquele homem que me parecia seco, dogmático, cheio de sentenças, surge-me deliciosamente como uma grande alma, capa de dedicações e sacrifícios.
Comecei a ler-lhe as obras. Há nelas alguma coisa daquela secura que lhe notei em menino.
(...) Entretanto, graças ao atrativo do contraste, eu aprecio Nestor, nas suas obras, quando ele revela as modalidades naturais do seu temperamento.
Nota-se aqui, além do revisionismo autocrítico sincero, a relação feita por Barreto entre a obra comentada e o temperamento do seu autor, típica da crítica impressionista que lhe caracteriza as crônicas literárias. Parece haver um impasse nas avaliações literárias de Barreto: seu desejo expresso seria por uma crítica que se ativesse a aspectos formais e intrínsecos ao texto, como ele também desejava ser analisado; porém, ao escrever, não abandonava não só suas predileções pessoais como também a interseção entre a vida e o texto. Exemplo disso também se encontra em sua relação com João Ribeiro, que foi mais intempestiva. Em carta a Gregório Fonseca (18 de novembro de 1906) também citada por Prado (2012: 17), Barreto escreve:
Estou monomaníaco. Medito uma refutação a um trecho da história[do Brasil] do João Ribeiro, não ao que dizem as palavras, mas ao espírito que as ditou e que se esconde debaixo delas.
Imagine você que trato de indagar se a ciência, dado o seu grau de probabilidade, pode ter juízos formais e condenatórios; e se em face do grau de probabilidade dela, esses juízos condenatórios não são equivalentes a anátemas, a excomunhões religiosas.
Instigante aqui é a cobrança por uma ciência feita sem juízos formais ou anátemas, através da análise não das palavras expressas no texto de Ribeiro, mas através do “espírito” que dita essas palavras e “que se esconde por baixo delas”. Isso nos leva a pensar que provavelmente para Barreto a escrita da História devesse responder ao caráter do que julgava ser científico enquanto que a crítica/crônica literária poderia compor-se de outra forma, atenta à intenção oculta. Ideia compreensível, dado o caráter da crítica literária que passou a se distanciar da crítica/crônica jornalística apenas a partir dos anos 1960.
Se tivermos em conta que “outro crítico a manifestar-se sobre a obra de Lima Barreto foi Osório Duque Estrada – guardião da gramática – que, apesar de ressaltar os deslizes de sintaxe e de estilo, não pode deixar de reconhecer o talento do escritor”, conforme aponta Nolasco-Freire (2005:64), poderemos perceber que apesar de certo reconhecimento por parte dos críticos sempre há um “porém” na avaliação de Lima Barreto, sendo que este “porém” corresponde a restrições impostas segundo as linhagens às quais os críticos estão filiados. Reconhecem nele a promessa de romancista fecundo, mas o que lhe toca de novidade em relação à produção literária em voga, geralmente, não é assimilado.
Alguns poucos nomes contemporâneos de Barreto saúdam a aparição de Recordações, de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá e a qualidade de Triste fim de Policarpo Quaresma. Foi o caso de Gonzaga Duque em “Até que um dia!...”,artigo publicado no Diário do Comércio em fevereiro de 1909, Jackson de Figueiredo, em “Impressões Literárias”, de 1916, e Manuel de Oliveira Lima, em artigo n´O Estado de São Paulo também em, trabalhos coligidos por Antonio Houaiss e Carmem Lucia Negreiros de Figueiredo (1997) em edição crítica de Triste fim de Policarpo Quaresma.
Em 1948, em “Prefácio” para Clara dos Anjos, Sérgio Buarque de Holanda (1997: 8-18), elegendo Machado de Assis como o centro do seu cânone literário, diz que a obra de Barreto “é, em grande parte, uma confissão mal escondida, confissão de amarguras íntimas, de ressentimentos, de malogros pessoais”.
Para Holanda, o enaltecimento da obra de Barreto se deve a fatores que transcendem a esfera da literatura, acrescentando que as circunstâncias da vida pessoal do escritor parecem inseparáveis de sua obra literária. A refundição estética da experiência pessoal é imprescindível para a obra de arte de qualidade e Barreto não a faz de modo pleno, ou seja, os problemas íntimos vividos pelo autor de Recordações não se resolvem na criação literária, permanecendo nela “em carne e osso como um corpo estranho”. Desse modo, Clara dos Anjos não possuiria traços singulares capazes de formar um verdadeiro caráter romanesco, é mais um argumento vivo e elemento para denúncia do que um personagem, o que torna a obra menos convincente, tudo isso devido à falta de contenção barretiana que “não conseguiu forças para vencer, ou sutilezas para esconder, à maneira de Machado, o estigma que o humilhava.” Depois de escrito e publicado esse artigo, o crítico julga necessário acrescentar outras linhas suscitadas pela “releitura casual” do estudo “Confissões de Lima Barreto” (1941) de Astrojildo Pereira. Nessa sequência, ele diz que a coincidência entre as suas considerações e as de Pereira não é completa, apesar de com ele concordar na avaliação geral. Agora, para Holanda, a noção barretiana de arte como forma de compensação e redenção “sendo talvez uma tênue caricatura, não é um disfarce” e a humilhação sofrida pelo escritor negro e seus personagens “constitui motivo de revolta contra os outros, mas sobretudo contra a própria condição”, a qual não quis traduzir abertamente ao grande público, mas a exprime no seu Diário íntimo. Não ostensiva, entrevista, consciente e governada, resultado de leituras numerosas, essa revolta contra a própria condição é agora o que mais importa para o estudo da obra de Lima Barreto, ainda que, para Holanda, sua arte não denuncie a menor preocupação com as técnicas de renovação e enriquecimento da literatura ficcional, uma vez que apenas põe em prática diretamente as tradicionais convenções da novela realista: a criação de caracteres individuais convincentes e reprodução com plausível fidelidade das circunstâncias em que se movem esses caracteres. Nessa criação de caracteres, Barreto, segundo o crítico, “foi poucas vezes superado entre nós”, e nem mesmo o exagero caricatural o levaria à atitude de enfatuação irônica diante dos personagens, o que o torna eficaz na difícil tarefa de exprimir objetivamente uma ocorrência dramática. Ademais, um dos seus traços típicos seria ter conferido “dignidade estética às mais humildes aparências” sem fugir às realidades penosas e com humanidade despojada ter escolhido os subúrbios como matéria-prima de sua criação, de onde podia observar e grafar o sentimento de origem elevada que marca seus habitantes, que se diferenciam por nuances de cor e superioridade financeira, mesmo traço que caracterizaria os personagens mais abastados. Holanda diz ainda que, ao pôr em contraste simétrico os pobres, cuja penúria resulta de um acidente da sorte, mas que são dignos moralmente, e os ricos, cujo sucesso e poder também advêm da sorte, não pelo mérito pessoal, mas pela corrupção e outros meios duvidosos de ascensão, a riqueza em Barreto nunca é fruto do trabalho honesto e lento, sendo o trabalho apenas entretenimento para a miséria. Estariam, assim, todas as coisas fora dos seus lugares, não havendo meios de consertá-las, restando o recurso supremo da Arte, “onde os humildes podem entrar no reino dos Céus, sem largar o seu subúrbio, e os orgulhosos são fustigados como merecem.” E como Barreto viveu intensamente a vida como a arte, para Holanda, em sua obra ele “nem sempre pôde distanciar-se o bastante para dar lugar a uma verdadeira perspectiva artística. Dessa ausência de perspectiva decorreram certamente algumas qualidades e muitos defeitos dessa obra.”
As duas partes que compõem a crítica de Holanda não são diametralmente opostas, mas revelam uma mudança significativa de avaliação, talvez tendo como base o exercício de não mais comparar Barreto e Machado, sempre em detrimento do primeiro, e chegando mesmo a apontar como a ironia, às vezes, pode ocultara sinceridade da apresentação e do enfretamento dos problemas graves suscitados pela própria representação social da literatura. Mudado o enfoque, “o extra literário” que antes fugia à “esfera da literatura”, motivo de enaltecimento nem sempre válido no julgamento literário da obra barretiana, é retomado, senão para uma plena compreensão, para uma tentativa de entender de outro modo os meandros da refundição estética da experiência pessoal, tão necessária, para Holanda, na composição artística. Então, o que antes aparecia em carne e osso como um corpo estranho no texto de Barreto, o personagem falho por ser uma confissão mal disfarçada, passa a ser o que de melhor Barreto soube fazer e quem melhor soube fazer, e sua obra pode, assim, ser convincente. Tal mudança surge quando Holanda leva em conta a percepção barretiana de arte como redenção e não mais como pura confissão de revolta, pelo menos não apenas como revolta contra os outros, mas revolta também contra a própria condição revelando exemplarmente a dificuldade de uma avaliação justa do texto barretiano. Temos aí o olhar do sociólogo que busca transcender a inicial preocupação com as “esferas” do saber e encontra no que antes via como reducionismo o contraste fundamental para se atingir a intenção, e concomitantemente a possibilidade de fugir ao reducionismo de sua própria análise, ainda que, para nós imprecisamente, insista na nula contribuição de Barreto para a literatura em termos intrínsecos. O artigo de Holanda marcará uma nova etapa na crítica sobre Lima Barreto: aquela que se esforça para compreendê-lo a partir de sua intenção e sua concepção de arte, conjugando-a, inevitavelmente, talvez por esforço do próprio Barreto, com suas condições histórico-sociais e políticas de produção. Entretanto, ele contribui também para a continuidade da crítica de José Veríssimo (personalismo e irregular realização literária), a ela acrescentando outras discussões, como a da confissão mal resolvida que será continuada nos anos seguintes por críticos de reconhecido valor.
Antonio Candido (1989: 44) lê Lima Barreto levando em conta a vontade do autor de Recordações de ser lido a partir das suas motivações, da sua intenção e possibilidades:
Para Lima Barreto a literatura devia ter alguns requisitos indispensáveis. Antes de mais nada, ser sincera, isto é, transmitir diretamente o sentimento e as ideias do escritor, da maneira mais clara e simples possível. Devia também dar destaque aos problemas humanos em geral e aos sociais em particular, focalizando os que são fermento de drama, desajustamento, incompreensão. Isto, porque no seu modo de entender ela tem a missão de contribuir para libertar o homem e melhorar sua convivência.
Assim, talvez o Lima Barreto mais típico, seja o que funde problemas pessoais com problemas sociais, preferindo os que são ao mesmo tempo uma coisa e outra (...).
Esta concepção empenhada, quem sabe devida às circunstâncias da sua vida, nos leva a perguntar de que maneira as suas convicções e sentimentos se projetam na visão do homem e da sociedade, e em que medida afetam o teor da sua realização como escritor.
Candido, tendo em vista sua concepção de “realização literária plena” como aquela onde “a dimensão pessoal converge com a visão da sociedade e a consciência artística”, ainda faz ressalvas à produção literária de Barreto no tocante a sua realização como escritor, sua concepção empenhada do fazer literário,
se de um lado favoreceu nele a expressão escrita da personalidade, de outro pode ter contribuído para atrapalhar a realização plena do ficcionista. Lima Barreto é um autor vivo e penetrante, uma inteligência voltada com lucidez para o desmascaramento da sociedade e a análise das próprias emoções, por meio de uma linguagem cheia de calor. Mas é um narrador menos bem realizado, sacudido entre altos e baixos, frequentemente incapaz de transformar o sentimento e a ideia em algo propriamente criativo.
O personalismo de Barreto, tem a para a crítica anterior a Candido (José Veríssimo, Holanda), que condenava cabalmente tal característica, volta à baila agora de modo dúbio, sendo a uma só vez favorecimento e atrapalhação da produção textual. Também nos parece haver um drible na questão linguística quando Candido diz que Barreto escreve “por meio de uma linguagem cheia de calor”. De todo modo, o “porém” está bem claro: narrador menos bem realizado, sem criatividade, pois, novamente, personalíssimo. Por fim, ao aproximar vida e criação literária, Barreto não teria obtido êxito segundo sua própria concepção do fazer literário.
A posição de Barreto em relação ao cânone, mesmo depois de estar a ele incorporado pela atenção de críticos conhecidos nunca foi isenta de polêmica. Veja-se, por exemplo, a dura crítica de Flávio Khote (2004: 42-43), para quem a canonização de Barreto na década de 1960 não revela a aberturado cânone, e sim mostra sua estrutura básica de funcionamento, expondo alguns dos seus verdadeiros propósitos: provar que é democrático por aceitar mais um mulato,“ para que melhor possa ser repassado o discurso senhorial branco; fingir que ele é contrário ao autoritarismo” ao fazer críticas pontuais a uma ditadura militar passada e a mídia, “para melhor ser antidemocrático; legitimar a destruição das línguas e culturas não-idênticas à oligarquia luso-brasileira, ridicularizando os vencidos mediante a descabida proposta de re-transformar o tupi-guarani em língua geral” do Brasil; proteger os interesses dos latifundiários; e “combater os imigrantes”.
O crítico sustenta que os insucessos de Barreto não foram ocasionais, mas sim consequência do fato de as suas obras não corresponderem às expectativas das estruturas de superfície, além disso Barreto teria nascido com “três azares frente ao paradigma senhorial branco: pobre, mulato e filho de maluco”, e a estes acrescentado outros três: “alcoolismo, crítica ao poder (governo e mídia) e neurose grave”, conforme Khote. Isso explicaria o silêncio, o esquecimento que pairou sobre a obra de Barreto durante meio século, e também a posterior seleção mínima de textos seus escolhidos para torná-lo “um mártir da Igreja Literária do Brasil” e canonizá-lo na década de 1960.
Referências
Prado, A. A. (2012). Lima Barreto: uma autobiografia literária. São Paulo, Editora 34.
Barreto, L. (1953). Marginália. SãoPaulo, Editora Mérito S.A..
Barreto, L. (1956). Impressões de leitura. São Paulo, Editora Brasiliense.
Barreto, L. (1997). Triste fim de Policarpo Quaresma.Edição crítica coordenada por Antonio Houaiss e Carmen Lúcia deFigueiredo. São Paulo, ALCCA XX.
Barreto, L. (1997). Clara dos Anjos e outras histórias. Prefáciode Sérgio Buarquede Holanda. São Paulo: Ediouro, Publifolha.
Barreto, L. (2010). Contos completos. Organização e introdução Lilia Moritz Schwarcz.São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Barreto, L. (2014). Diário íntimo. Disponível em www.bn.br/bibvirtual Acesso em: 15/05/2014.
Barreto, L. (2014). Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Disponível em:www.brasiliana.usp.br Acesso: 10/05/2014
Candido, A. (1989). A educação pela noite. São Paulo, Editora Ática.
Khote, F. R. (2004). O cânone republicano II. Brasília, Editora UNB.
Martins, W. (1952). A crítica literária no Brasil. São Paulo, Departamento de Cultura.
Pereira, A. (1997). Confissões de Lima Barreto. In: Bareto, L. Triste fim de Policarpo Quaresma. Edição crítica coordenada por Antonio Houaiss e Carmen Lucia Negreiros de Figueiredo. Série: Coleção Arquivos. São Paulo, ALLCA XX.
Pereira, M. R. (2014). José Veríssimo: literatura e construção do cânone. RevistaDiálogo e Interação, Vol. 1, 2009. Disponível em www.faccrei.edu.br Acesso: 04/03/2014.
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