Meus poemas dos outros
I
Ruge, ribomba, estala
(Haicai decassilábico-fluminense)
Ah! parece-me um tigre!
ela murmura,
Mas do mar aos meus olhos a figura
Faz-me lembrar
o coração humano.
[Alberto de Oliveira]
II
A sombra do amor
Que sombra é essa que não deixa Amor?
Onde ele chega e para, a sombra para.
Coração que o abriga satisfeito
Há de abrigar a sombra que o persegue:
É o ciúme, o ciúme –
Sombra do Amor que as almas entristece.
Mas que ressaibo deixa o Amor nas almas!
Foi-se por entre os laranjais em flor
Soprando a frauta como um deus silvestre.
[Coelho Neto]
III
O ato de Raul Pompéia
A piedade veio realçar o ato,
Com aquela única lembrança
Do moribundo de dois minutos,
Pedindo à mãe que acudisse à irmã,
Vítima de uma crise nervosa.
[Machado de Assis]
IV
Meu caro Machado
Interponha os seus bons ofícios
perante quem competir
para que nós
pobres moradores da Boca do Mato
no Méier
tenhamos água
em maior abundância
e em horas menos impróprias.
Por quem é,
proteja as batatas que estou plantando.
[José Veríssimo]
V
D. Pedro I a D. Domitila de Castro
Cheguei à casa, tomei a tizana,
e obrei até agora cinco vezes,
e muito.
Já não te ofereço o coração porque é teu.
Remeto-te
esses passarinhos que matei ontem
e esses botões de rosas e abraços e beijos.
[D. Pedro I]
VI
D. Domitila de Castro a D. Pedro I
Fique V. M. na serteza
que serei eternamente grata
a tantos Beneficios que le devo.
Eu não perciso de conçelhos
Não sou como V. M.
Eu tive criação
cei conservar a minha palavra.
Peso-lhe não me incomode mais.
[D. Domitila de Castro]
Nota do Autor
Decididamente, nenhuma palavra é minha. Estes meus “poemas dos outros” são mesmo dos outros. Eu os fui colhendo nas obras dos autores, à medida que os lia. Onde a poesia? Às vezes na ideia ou na imagem, às vezes no ritmo.
Quando o autor era poeta, como no caso de Alberto de Oliveira, apenas tomei-lhe um fragmento, dispondo as palavras segundo a minha intuição de como aquilo seria dito no meu tempo (o original era um soneto!).
Se as palavras eram de prosador, posso ter suprimido alguma coisa (já nem me lembro; mas evitava fazer isso o quanto podia), mas nada acrescentei.
Se o tema era grave, como no caso de Machado de Assis (e Raul Pompeia), dispus as palavras em fileiras cerradas, como eram os versos de antigamente; no caso de Coelho Neto, os versos estavam lá, decassílabos e seus quebrados, vizinhos uns dos outros, na prosa do dele – apenas estendi a mão e os colhi; a disposição que lhes dei foi a que tradicionalmente se dava à combinação de decassílabos com hexassílabos.
Se o tema era leve, dispus as palavras mais livremente na página, em linhas dispersas, espacejadamente, à moderna, segundo certo ritmo intelectual, que julgo ter notado nelas (foi o caso de José Veríssimo). Da correspondência de d. Pedro I com sua amante, a marquesa de Santos, tomei o que havia lá de escatológico: a diarreia do imperador e o quase analfabetismo de sua amante. Suponho (e espero) não ter errado na transcrição da ortografia da marquesa (que não tirei de manuscrito, mas de livro impresso – portanto, de texto que era já leitura e transcrição de interposta pessoa).
É operação difícil extrair um poema de um poema (cirurgia a que submeti um soneto de Alberto de Oliveira); mais fácil é fazê-lo de um texto em prosa (caso dos restantes cinco poemas).
Prosas rendendo versos. Prosa rendendo poesia. Pode-se falar em poesia da prosa, como de ritmo (pois há ritmo na prosa, como pode haver poesia).
Para alguns prosadores versos mais parecem uma diversão – veja-se Guimarães Rosa (autor não contemplado aqui); a outros repugna essa mistura, porque correspondem a concepções ou teorias diversas – veja-se Machado de Assis.
[José Américo Miranda]
José Américo Miranda
Professor José Américo, reinventor de poesia. E eu gostei da fala quase analfabeta de Domitila porque conservou a palavra!