Nuno Rau
Prosa incompleta
você, que impôs pesadas taxas ao
que das formulações alucinadas
possa contaminar o que se passa
aqui, no exílio do sonho sem qual-
quer direito a sursis, você, alada
na minha ficção, vai guardando a al-
fândega dos sonhos com essa brutal
suavidade de quem não quer nada
além do que se ampara no real
que quase nunca faz sentido, cada
vez que as bússolas enlouquecem nada
além do normal se instala, e eu, qual
estátua de sal, só observo as gretas
das palavras em sua prosa incompleta
Paisagem de cidades imaginárias
Amhearst,
Stratford-upon-Avon, Nishapur,
Lisboa, Itabira, Buenos Aires, São Paulo,
Málaga, Nova York, Salvador, Pasárgada,
Recife, São Luís, Rio de Janeiro, Porto Alegre,
e você aí nessa cidade-fantasma
com o braço erguido
em frente ao muro, no espaço
do instante em que o grafite
incompreensível que sua mão
projeta é toda a sua
vida.
Uma pedreira [Serra do Madureira, Nova Iguaçu, RJ]
1.
Se uma ferida pudesse erguer-se, seria
essa empena, suas partículas luzindo
no verão sem clemência, proa abrupta
que mede imóvel o mar de casas mudas
imersas no betume da noite ocidental,
a história narrada no vazio vertical
de quem foi triturada pelos dentes rudes
das britadeiras e contabilizada em vagões
lentos como lotes de vestígios que agora
dormem seu sono inquieto em anos
de concreto atravessados pelo aço. Ou
2.
fosse a vida uma vela nunca panda,
lona que o vento não enfuna , seria
essa empena hirta, muralha, seus segredos
guardados no minério ostentando
o que lhe foi subtraído como um brasão
sem armas, cada mínima traição
do acaso grafada em mica, noite
dentro da noite de seus poros, uma vela
medindo a calmaria, metamórfica
memória de lava, enorme sedimento
de um espasmo, cinza de carne, granito.
Nominal
a dança
das taxas
de juros e seu
novo valor
nominal
reduzido para
iludir os olhos
que deslizam
nas telas à
procura de um
ponto fixo
enquanto a queda
livre da moeda
estabelece uma
diferença que
deixa o índice
real em rota
flutuante,
permitindo que
quantias antes
inacreditáveis
migrem numa
prestidigitação
volátil e
macabra das contas
de milhares para
outro lugar
onde se
concentram, u-
topia ao
avesso ou simples-
mente visão
do espelho a
partir do ponto
que interessa a
quem detém,
anônimo e
esconso, sob
um código alfa-
numérico e cripto
grafado, a
posse desta re-
presentação, e
também do fundo
da caverna, tela
preta onde hypnos
manipula chaves,
cifras e mil véus
em código binário,
enquanto vamos
com as mãos
nos bolsos.
Estado crítico [Bolaniana]
sem geração em que me fixe, sem
(quase sem) diálogos e ancorado
a uma classe em que prossigo ilhado
entre milhões ou mais de escrotos, nem
mesmo o gênero me salva, sitiado
por artifícios do capital, ten-
tando pôr um poema em pé den-
tro de um século com olhos vendados,
mas escrevendo, sem leitores – quem
lê sonetos? –, escrevendo agarrado
ao presente como um advogado
da província, tão marginal no cen-
tro do centro, sem voz na academia,
deslocado, mas fazendo poesia.
James Loper - 1951
"tentando pôr um poema em pé dentro de um século com olhos vendados, mas escrevendo, sem leitores" - poemas espetaculares!
Gostei dos poemas que dizem do que está em pauta no momento e, no entanto, fisga o sentimento da poesia com destreza.