O cubano Reinaldo Arenas (1943-1990) carrega a marca de um escritor que se faz pela escrita-testemunho. Homossexual, foi censurado, preso e fugiu de Cuba em 1980, no chamado “exílio Mariel”, junto a cerca de 125.000 cubanos em direção a Miami. Seu apagamento da literatura latino-americana não se dá apenas como resultado de uma cultura de dogmatismo sexual e ideológico, mas também por se inserir num dos fenômenos políticos mais importantes e visceralmente míticos da América Latina contemporânea: a Revolução Cubana.
Lembrada como a saga heroica de guerrilheiros que lutaram pela emancipação nacional do país colonizado, agrário, desprovido de democracia, em razão dos interesses imperialistas dos Estados Unidos, a Revolução Cubana ganha diferentes nuances a partir da obra de Arenas, composta de poemas, novelas, contos, peças teatrais e cartas trocadas durante décadas com amigos estrangeiros. À exceção de sua primeira novela, Celestino antes del alba, publicada em Havana em 1965, toda sua escrita até 1980 teve de ser contrabandeada para fora da ilha.
A narrativa de Arenas não traduz, dentro do simplista jargão político, os pontos de vista de um escritor considerado “contrarrevolucionário”. Nem mesmo nega o processo revolucionário em si. Foi um jovem entusiasta da revolução, participou como pôde do movimento guerrilheiro, do qual foi dispensado por não possuir armas. Quando os revolucionários chegaram ao poder em 1959, integrou a imensa multidão de cubanos animados com a fuga do ditador Fulgêncio Batista e com os horizontes de um mundo por vir, mais justo, igualitário, democrático. Os intelectuais se mobilizaram no que Rafael Rojas (2007) chamou de “espetáculo de ideias”, aquecendo a radicalidade política do momento, que apontava para uma nova sociedade a ser construída.
Contudo, por diversos fatores entrecruzados na década de 1960, o regime revolucionário fechou-se gradualmente na ortodoxia socialista e no autoritarismo, em meio à defesa nacionalista de um país sitiado, no qual as divergências internas de qualquer tipo levariam necessariamente, segundo seus dirigentes, ao enfraquecimento da revolução e sua derrota pelas forças imperialistas. Uma década depois da revolução, a dinâmica plural e participativa nos rumos revolucionários tinha se tornado uma lembrança distante. Aos escritores, impuseram-se critérios estéticos do Realismo Socialista, exigindo-lhes completa adesão ao governo. Essa tendência teve muitos partidários; por outro lado, coube aos dissidentes o silêncio, o exílio ou a escrita clandestina, arriscada, ameaçada pelo confisco e prisão.
Reinaldo Arenas viveu esses acontecimentos e sua escrita assume o eterno atrito do intelectual autônomo com o poder estabelecido. Sua literatura levanta problemas cruciais para a compreensão profunda de uma sociedade apanhada pela ruptura revolucionária, sem esquecer as heranças de séculos de colonização, que vão muito além da estrita emancipação política e econômica: como país colonizado e escravagista, Cuba herdava em peso o racismo e o patriarcado.
No conto “A velha Rosa”, de 1966, temos uma narrativa realista sobre uma fazenda que funciona como microcosmo abalado pela revolução. A protagonista que dá nome ao conto é uma viúva aguerrida, que desenvolveu a fazenda e, de repente, teve a vida balançada por mudanças incontroláveis ao seu redor. As mudanças são encarnadas pelos seus filhos: Pablo Armando, um mulherengo bêbado que se tornou guerrilheiro e representante do Regime, que articula a desapropriação da fazenda da mãe, tida agora como bem coletivo, estatal; Rosa María, a filha do meio, “albina de olhos azuis”, que se emancipa social e intelectualmente, não tem interesse nas tradições religiosas de Velha Rosa, muda-se da fazenda para o povoado para estudar e se casa com um homem negro, anônimo, sem a anuência da mãe e com a cumplicidade de seus irmãos Armando e o caçula Arturo, que é homossexual. Velha Rosa, ao descobrir Arturo com outro rapaz no quarto, tenta assassiná-lo.
Descontente e desesperada, Velha Rosa rompe com todos seus filhos, por razões diferentes, mas que a inserem como uma existência deslocada das transformações que ocorrem no país. Ela é “velha” não por razões meramente biológicas, mas como condição social. Sua experiência de vida, seu quadro de pensamento e posturas morais são postos em xeque pelo movimento político e cultural que acompanha a revolução. Quando soube do casamento de sua filha com um negro, reagiu: “Que desgraça tão grande”, disse Velha Rosa. ‘Ah, mamãe, disse Armando, deixe de bobagens que as coisas não são mais assim; agora todo mundo é igual’ [...]. ‘No dia que eu for igual a um negro, me enforco [...]. Já não é mais minha filha’” (Arenas, 1996, p. 37).
Através do casamento de Rosa María com um negro e da homossexualidade de Arturo, que foge da fazenda sob tiros de espingarda lançados pela mãe, Arenas insere no seio das mudanças revolucionárias preconceitos estruturais da sociedade cubana e também demandas sociais de igualdade racial e sexual, que acabaram por ser cooptadas, abafadas ou reprimidas pelo Regime, as quais apontam para os limites do igualitarismo da revolução. A literatura areniana revela as forças do passado que buscam se perpetuar, tomar novas formas e sobreviver no presente. Mais que isso, procura impedir que o passado construa o futuro, ao escancarar as opressões raciais e sexuais que até então haviam constituído a identidade coletiva dos cubanos.
A violência homofóbica representada na determinação de Velha Rosa em eliminar Arturo seria, contudo, aprofundada como política oficial pelo regime revolucionário. Se a obsoleta matriarca não queria conviver com a homossexualidade, a revolução tampouco conviveria. O trauma causado pela repressão foi registrado num conto posterior, Arturo, la estrella más brillante (1971), em que o futuro do protagonista é revelado: foi preso num campo de trabalho forçado.
Esses contos não foram publicados em Cuba. Os problemas de Arenas com a Revolução, que o consagraram como escritor maldito, começaram com a novela O mundo alucinante, que teve parte publicada em periódicos até ser censurada em 1968, acusada, segundo o autor, de ser demasiadamente homossexual.
A narrativa é cômica, alegórica, livre, surrealista, completamente diferente da sobriedade de “A Velha Rosa” e distante de tudo que pregava o Realismo Socialista. O enredo é baseado na vida do líder nacionalista mexicano Frey Servando Teresa de Míer (1765-1827), defensor da independência da Nova Espanha, atual México, e que foi degredado para a Europa devido suas ideias heréticas e independentistas. Seria o herói ideal a ser divulgado no contexto de agudo nacionalismo em Cuba.
Acontece que Frey Servando, ao mesmo tempo que defende a independência nacional e luta anticolonial, é também um tanto tolerante com a diversidade sexual que presencia em sua fuga pelo continente europeu. Resulta que a novela é um manifesto nacionalista crítico ao autoritarismo, à censura e ao conservadorismo moral e sexual que compõem o ideal de nação. Frey Servando aposta na convivência da nação emancipada com a diversidade sexual, livre de estigmas e repressões herdados pela tradição, como diz em certa passagem: “acho que o prazer não conhece o pecado e o sexo não tem nada que ver com a moral” (Arenas, 1984, p. 126).
Mais que mera defesa da homossexualidade, O mundo alucinante apresenta uma crítica radical ao nacionalismo como discurso reprodutor de desigualdades, que reforça hierarquias sexuais. O nacionalismo cubano foi altamente identificado com a norma heterossexual e simbolizado pelo guerrilheiro viril, barbudo e armado, que ensejaria “o homem novo” do Socialismo. Na década de 1960 – contexto de progressiva liberação sexual e dos costumes –, a homossexualidade foi sistematicamente perseguida em Cuba como nunca antes, e muitos homossexuais reais ou presumidos foram enviados para as UMAPs (Unidades Militares de Ajuda à Produção), campos de trabalho forçado para onde eram enviados desafetos ideológicos do regime, cuja finalidade era reeducar os prisioneiros “desviados” por “vícios burgueses”.
Ambrosio Fornet definiu esses campos como “academia para produzir machos”, pois os homossexuais seriam endireitados pelo convívio com homens heterossexuais, pelo trabalho exaustivo e pela tortura (Madero, 2016). No ramo da produção cultural, bastante ativa nos anos 1960, os homossexuais foram os principais alvos da censura. Além de terem suas manifestações artísticas barradas pela chamada “parametración”, deviam ser mantidos distantes dos jovens para não influenciá-los com sua “patologia social”. A homofobia do Regime lançou ao ostracismo muitos artistas e escritores, como o dramaturgo Virgílio Piñera, que chegou a ser preso, e o escritor José Lezama Lima, com os quais Arenas conviveu.
Com a censura de O mundo alucinante em 1968, Arenas contrabandeou o manuscrito para a França através de dois amigos que conhecera um ano antes, o casal Jorge e Margarita Camacho. O livro foi publicado em 1969 e ganhou o prêmio de melhor novela estrangeira do ano, ao lado de Cem anos de solidão, de Gabriel García Marquez. Naquele tempo do chamado “boom” da literatura latino-americana, Arenas foi reconhecido internacionalmente, mas em Cuba permaneceu anônimo, censurado e esquecido. García Marquez, por sua vez, tornou-se um dos mais populares na Ilha. O que se populariza ou não em termos de literatura tem fortes conotações políticas e sexuais.
A amizade com Jorge e Margarita foi determinante para Arenas, com os quais travou uma correspondência que durou até seu suicídio em 7 de dezembro de 1990, na cidade de Nova York, acometido pela AIDS. As cartas foram publicadas em 2010, pela editora Point de Lunettes, na Espanha, e revelam a persistência do escritor em burlar a censura e o autoritarismo, além de impor o desafio de compreender a Revolução além de suas lideranças, discursos oficiais, mitos e aparências, chamando atenção para a complexidade, em vez de homogeneidade, do contexto.
As cartas revelam o itinerário do escritor inconformado, intelectual crítico, que encontra na escrita a arma poderosa diante do poder no auge do autoritarismo do final dos anos 1960 e no decorrer da década de 1970. Entre 1974 e 1976, há um súbito silêncio na correspondência. Arenas foi preso, acusado de abuso sexual de menores, acusação orquestrada pelo aparato repressivo, tendo sido posteriormente inocentado. Antes de ser definitivamente preso, fugiu e permaneceu dois meses escondido no Parque Lenin, vivendo à mingua com ajuda de amigos até ser descoberto. Nesse período de fuga e prisão, visitantes estrangeiros que perguntavam por ele às autoridades recebiam como resposta que não existia em Cuba nenhum escritor chamado Reinaldo Arenas... (Arenas, 1995). Fora da prisão, de 1976 em diante, seu único objetivo era fugir da Ilha, salvar sua vida e seus escritos.
Arenas fugiu, com muito risco e custo. O Regime, por razões óbvias, não aprovava a saída do escritor do país, dada suas publicações no exterior e posicionamentos políticos. Saiu de Cuba pelo Porto Mariel em 1980, após adulterar seu nome no documento de permissão para Reinaldo Arinas, performando um caminhar gesticuloso e rebolado para a polícia e uma psicóloga, “comprovando”, assim, sua homossexualidade indesejada entre a honra dos cubanos. “Saí como mais uma bicha-louca, e não como escritor” (Arenas, 1995, p. 311).
De 1980 a 1990, no exílio, Arenas foi um homem em campanha, participando de tudo o que pôde para denunciar o Regime de Castro, a ausência de democracia na ilha, a censura, a perseguição, a homofobia, o cinismo, no seu ponto de vista, da esquerda internacional que defendia o Regime cubano fazendo vista grossa para os seus desmandos ditatoriais. Foi um dos fundadores da Revista Mariel em 1983, que reuniu escritores cubanos exilados e promoveu sua produção literária nos EUA. Revisou e publicou suas obras no exílio, as acabadas e inacabadas, concluindo sua trajetória literária com a autobiografia Antes que anoiteça pouco antes de seu suicídio, um importante relato sobre perseguição a homossexuais e intelectuais em Cuba.
Arenas tem plena consciência do papel político da literatura e o assume. Ao longo dos anos, seus escritos se tornaram referências para perseguidos políticos, aqueles que enfrentam mares de incompreensão, repressão, isolamento, angústia. Neles estão a crítica aos valores que conformam uma sociedade hierárquica, racista e homofóbica, a revelação de seus mecanismos de perpetuação na tradição autoritária travestida de nacionalismo. Ler Arenas é deslocar-se do olhar viciado dos discursos oficiais, das omissões oportunas, dos esquecimentos da memória coletiva e da narrativa histórica. Sua obra é uma ferramenta para lidar com as consequências psíquicas e físicas do autoritarismo em sua vida e de muitos outros sujeitos subjugados que buscam redenção.
A Revolução Cubana vai além da guerrilha, encarna projetos de mudança social radicais que não se reduzem a um núcleo ideológico. Foi um momento oportuno de transformações que levasse em conta também questões sexuais e raciais, liberdade política e de pensamento, objetivos que estavam em curso entre a juventude e intelectuais, que foram motivos para adesão, mas que perderam espaço em meio ao temor despertado de que as hierarquias raciais e sexuais pudessem se dissolver. A obra de Reinaldo Arenas, nesse sentido, abala visões cômodas sobre Cuba e a América Latina, é um manifesto pela emancipação real.
Referências
Arenas, R. (1972). Celestino antes del alba. Buenos Aires, Narradores de Hoy.
Arenas, R. (1995). Antes que anoiteça. Rio de Janeiro, Record.
Arenas, R. (1996). A velha Rosa; Arturo, a estrela mais brilhante. In A Velha Rosa. Rio de Janeiro, Record.
Arenas, R. (1984). O mundo alucinante. Rio de Janeiro, Francisco Alves.
Madero, A. S. (2016). Academias para producir machos en Cuba. Letras Libres, Enero, p. 26-29.
Ribas, J. L. T. (2018). Reinaldo Arenas: revolução, nação e homossexualidade em Cuba (1959-1980). Dissertação (Mestrado). Unimontes, PPGH, 2018.
Reinaldo Arenas
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