Por aqui passou Eva Fay
Os teus olhos me descamavam todos os símbolos da casa.
Os vestidos empoeirados nutriam uma memória de escolhas ignoradas.
As dobras esvoaçantes sussurrando em teu corpo suspenso,
em meio à sala habituando-se a sombras incompletas.
As mãos se davam, recortadas, ao redor de uma mesa invisível.
Os pés indecisos, tropeçando em vultos trêmulos que espreitam a vigília ansiosa ao buscar correspondência em vários mundos.
Pequenos diabos anotam agora os recados mais afetivos.
As ansiedades fatigadas custam a associar desejo e cena.
A tua respiração me chega como um remo e possui tantas origens quantas eu possa laçar com meus ritos aprendizes.
Eu me desapego da consequência de qualquer ato.
Retiro-me de mim até que me ensines a não regressar.
Consinto que me espalhes por todos os teus casulos e que me acumules sem vícios regressivos.
Vasculho meus entalhes e encaixes à procura de uns fetos relutantes,
cópias que sejam de efígies ou planos, o trânsito do indeterminado,
fagulhas fora de nível, reuniões de sacrifícios descontínuos,
a essência ambivalente que já não corresponde a perda ou fortuna.
Eu te evoco para que me sopres no ventre o inverso de minhas tormentas.
A casa se despe de seus truques milenares.
O mobiliário retoma antigos verbos suprimidos e a anatomia informal de seus ninhos.
As tuas mãos ainda me assombram, porém sei que me queres bem.
Eu voltarei aqui e amanhã, até que a tua mesa se faça visível.
Sombras relidas em Francesca Woodman
Provenho do bosque de lupas de teus seios,
do enxame de nuvens de uma lenda ancorada
um pouco acima de teus requebros sinceros.
Provenho de uma alegoria de pernas que se entreabrem
ludibriando a própria ilusão de suas prerrogativas.
O horizonte se materializa em teu olhar e eu me torno
o anfíbio rematado por uma fábula desmedida.
O monstro telepata que germina uma balbúrdia de anseios
e aterroriza as sombras envaidecidas por sua indecisão.
Renasço de teu beijo lapidado na pedra,
no milagre indizível da esponja de teus lábios,
no oculto aconchego de tua pele,
cada vez que me raptas um sonho de privilégios sem fim.
Tu me sucedes três vezes antes que eu seja notado.
Provenho de labirintos que perseguem os segredos
que migraram para a relva limítrofe de teu ventre.
Reconstituo o truque de teu equilíbrio no íntimo do búzio
que conspira um escândalo agrícola em nosso abraço.
Sempre que percorro a geometria de tuas coxas abrevio
as proezas do instante e o engenho onírico das oferendas.
Sempre que arrancas de teu corpo a imagem do mundo
dali brotam cascalhos derivados de todos os delitos.
Eu te asseguro que não há queda sem a confusa crença
na sementeira do renascimento, cláusula de incertezas,
proventos passionais e o utilíssimo contágio do acaso.
Beijo a tua árvore, de onde provenho, salvo engano.
Primeira impressão deixada à porta de Leila Ferraz
Eu deixei passar um edifício inteiro situado no acaso.
Parecia uma boa mercadoria anônima e avulsa,
dessas que não insistem e tratam a dúvida com desdém.
Agora que reeditamos o catálogo apócrifo do horizonte
vejo o quanto que aquele edifício ficaria bem aqui.
A realidade que leiloamos saiu de nós bem satisfeita,
sem hesitar, reconhecida por seu novo prestidigitador.
Monet nos braços de outro amante do impressionismo.
Não importam as manchas do tempo, o semblante
raspado pela ação da luz, o sótão desaparecido, nada.
Eu recrio todas as formas com que me enches de mim.
Tudo em nós se reconhece nas vértebras do susto.
O que somos avista ao longe o que um dia seremos,
e este dia é ontem. Nos exploramos como quem renova
os esboços que assumem formas as mais inesperadas.
Somos os esforços conjuntos da beleza e da fealdade.
As formas essenciais não saberiam como deixar de ser
sem que antes se tornassem íntimas de nossa vertigem.
Floriano Martins
Que fôlego, Floriano, quantas cenas, impressões se desdobrando diante dos olhos, dentro e fora, aquém, além do pensamento. Abraço.