Há respostas previsíveis para a pergunta que faço: a poesia não viraliza porque é muito difícil; a poesia não viraliza porque poetas são impopulares; a poesia não viraliza porque Internet é reino de imbecis. Não penso que essas respostas sejam suficientes. Não há incompatibilidade a priori entre quaisquer conteúdos artísticos e suportes tecno-informacionais. A incompatibilidade começa quando o dado técnico passa a ser um mero detalhe. Começa quando o dado ideológico se revela como estruturante do dado tecnológico.
A Internet não é apenas um meio tecnológico que se usa para se atingir um determinado fim. Não é uma ferramenta, como se pensava no início da popularização do PC em meados dos anos 1990 no Brasil. Não é sinônimo de computador, especialmente “hardware”. Não é algo comparável a uma máquina de escrever ou a um arquivo de aço ou qualquer objeto visível, palpável. A indeterminação vai se apresentando quando tentamos objetivar o que é isso, a Internet, que resvala para um terreno para-metafísico, obscuro.
À medida que a Pandemia em curso impôs a Internet como único mundo saudável, supostamente seguro, passamos a vivenciar de um modo mais intenso ainda a dificuldade de objetivar a Internet como objeto. Tornou-se mais incerto o limite entre nós mesmos e uma dimensão que gostaríamos que continuasse sendo externa. Essa continuidade seria, afinal, uma espécie de garantia de que ainda somos humanos. Mas acabamos por experienciar a cognoscibilidade mesma de que a Internet é uma espécie de externo incorporado, algo que já faz parte de nós mesmos, que está entranhado na nossa intimidade.
Sem dúvida, este é um dado que nos desvela a Internet como potência ideológica invasora, que coloca em xeque nossa própria identidade à medida que se confunde com esta. Quem somos além do “login”, da “senha”, do “perfil”, do “post”, do “like”, do “emoji” etc etc? Quem somos fora das “redes sociais”, do WhatsApp”, do Facebook, do Instagram, do Twitter etc etc? Estar fora da Internet é estar fora de si num momento da história que se divide entre “on” e “out”. Ser é uma questão de “logon”, de estar conectado; não ser é uma questão de “logout”, de estar desconectado.
Quando “logamos” com o nosso “login”, contribuímos para alimentar uma dinâmica ideológica que não tem precedentes na história humana. Nessa dinâmica, o “logos”, a razão, o discurso, é contraditoriamente a porta da irracionalidade como lógica da razão. Trata-se de um logro de que não nos damos conta, de algo tão natural como respirar, como falar uma língua materna. Somos todos contaminados pelo vírus da irracionalidade na Internet, que consiste inicialmente numa aniquilação da distância entre sujeito e objeto. Na Internet, não há diferença entre quem diz e o que se diz, entre contingente e conteúdo, entre superfície e substância. Há, portanto, uma absurda indiferenciação.
Começa nessa situação precisamente a incompatibilidade entre a poesia e a Internet em termos pragmáticos, isto é, não sentimentais. A poesia é um caso de diferenciações, de distinções entre o que é o que parece ser, entre configurações do “logos”, do discurso, entre o que é e o que também é. Diferenciações entre o verdadeiro e o falso, entre a dimensão da “Aleteia” e a dimensão da “Apate”, para os gregos antigos. Essas diferenciações não visam, na produção poética, constituir uma verdade absoluta, mas dar a ver complexidades oriundas da relação entre sujeito e objeto. À luz da poesia, essa relação é sempre tensa, complicada, conflituosa, porque é insuportavelmente real.
Cruz e Souza, o ainda tão pouco compreendido, escreve em “Condenação fatal”, dos Últimos sonetos (1905), algo terrivelmente atual:
Ó mundo, que és o exílio dos exílios,
Um monturo de fezes putrefato,
Onde o ser mais gentil, mais timorato
Dos seres vis circula nos concílios;
Onde de almas em pálidos idílios
O lânguido perfume mais ingrato
Magoa tudo e é triste, como o tato
De um cego embalde levantando os cílios;
Mundo de peste, de sangrenta fúria
E de flores leprosas da luxúria,
De flores negras, infernais, medonhas;
Oh! como são sinistramente feios
Teus aspectos de fera, os teus meneios
Pantéricos, ó Mundo, que não sonhas!.
Pode-se dizer que este tipo de poesia não viraliza, isto é, não arrebanha milhões de visualizações, “likes”, seguidores porque é rebuscada, porque é ultrapassada, porque não é postada por nenhuma celebridade. Eu estaria então buscando uma espécie de exemplo conveniente para justificar o descaso pela poesia na Internet, suposto descaso se se considera o monte de blogs, perfis, canais de YouTube, sites, podcasts etc sobre poesia. Viralizar, todavia, é neologismo que contém algo de comportamental, de modulação da ideia de cultura que vai muito além de enunciados, do que vemos. O que viraliza na Internet é o que dá forma à própria Internet, é o que é a Internet.
Esse soneto nos serve de exemplo de uma relação negativa com o mundo que não é privilégio de Cruz e Souza nem de qualquer outro poeta, mas um dado caraterístico, em termos cognitivos, da natureza da poesia. Essa relação demarca uma resistência objetiva ao mundo tal como este se impõe na vida social, com suas pestes tantas, com sua selvageria. Trata-se de relação que destoa completamente da que encontramos na Internet a começar pelo simples fato de que há um conflito. Esse conflito se deve ao fato de que há uma cognição que separa sujeito e mundo, um discurso, um “logos”, que não anula o objeto em nome de uma supremacia pós-histórica do sujeito. Enfrentando o mundo, o sujeito nos desvela algo terrível, fonte de terror, que nos aguça ainda mais a compreensão sobre por que a poesia não viraliza: o mundo não sonha.
Para sonhar, em termos bem práticos, é preciso dormir, obviamente, e a Internet é o mundo que não dorme, habitado por milhões de algoritmos que não dormem, toda uma população de desacordados obcecados pelo próximo “babado”, pela próxima onda de cancelamentos, pela próxima corrente de ódio etc etc. Tal qual o mundo do soneto, a Internet é o mundo como pesadelo derivado de um excesso de realidade, mas uma realidade que constitui agora uma estrutura autorreferente, fechada em si mesma. O sujeito-algorítmico não se vê como diferente do objeto-Internet exatamente porque não reconhece uma distância entre ele e a Internet. A Internet é ele, seu complemento, seu lago narcísico, seu reflexo, seu mesmo dinâmico, seu real absoluto.
E assim esse sujeito se constitui como plenamente inacessível à poesia, como um artifício leviatânico, medonha desumanidade. Não é que a poesia não queira atingir esse sujeito. Claro que quer. Os poemas de Augusto de Campos no Instagram, assim como os de tantos poetas na rede, são prova disso. Mas não é possível, neste início de terceira década de século XXI, lidar com uma perspectiva elementar sobre esse sujeito, como se este fosse qualquer receptor ou qualquer emissor. O modo resolvido como um Roger Chartier nos fala sobre a mutação do leitor em navegador parece ignorar a força de uma metáfora do poeta Derek Walkott que Édouard Glissant (1990) coloca no pórtico do seu Poétique de la relation: “Sea is History”. Há de se levar em conta a “poética da relação” no mar virtual em sua complexidade ideológica: o “pathos”, o sentimento processado na Internet, engendra “patologias” que acabam por se normalizar por mais absurdas que realmente sejam.
Quando penso num sujeito-Internet, uma dimensão unívoca, é como resposta a perspectivas que atribuem um lugar tanto de paciente quanto de agente ao internauta em geral. Esse sujeito não é nem uma coisa nem outra, mas um terceiro indefinido, que funciona somente à medida que está “logado”, conectado. Trata-se de um sujeito-algorítmico, portanto, que emerge num determinado lugar como dispositivo ideológico, hipernaturalizado. Não é possível lidar com esse sujeito de modo complacente senão estamos investidos de um interesse na dominação da maioria, se não estamos a serviço, em especial, de quaisquer das elites imperialistas ou suas conexões em paróquias coloniais como o Brasil.
“J´accuse!” Eu acuso, para lembrar Zola: o sujeito-algorítmico, que domina a Internet, é responsável, sim, pelas grandes mazelas sociais do nosso tempo, pela derrubada de democracias, pelo reavivamento do fascismo, por políticas de esquecimento da história, pelo desenvolvimento de uma cultura do ódio, pela eleição, no Brasil, de um racista, homofóbico e genocida. O sujeito-algorítmico é a forma ideológica que não pode ser objetivada sem que lidemos com a forma contra-ideológica por excelência que é a poesia, com o seu fundamento na interioridade. A poesia – não poemas postados em perfis de celebridade – não viraliza porque seu lugar não é o da doença e da morte, mas o da vida, da criação, da “poeisis” – isso que demanda humanidade para ser compreendido.
Referências
Chartier, R. (1999). A aventura do livro: do leitor ao navegador – Conversações com Jean Lebrun. Tradução de Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo, Unesp.
Cruz e Sousa, J. (1995). Condenação fatal. Obra completa. Organização de Andrade Muricy. Atualização e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar.
Glissant, E. (1990). Poétique de la relation. Paris, Seuil.
Édouard Glissant
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