Guernica
Estilhaços de imagens
Corte e recorte de mortes
O pincel-granada rasgando figuras
Sob a luz vítrea da lâmpada
Fragmentos de corpos
Nenhuma cor - apenas o que é cinza:
A humanidade perdida.
Ao meu pai
O sol não foi generoso com você
enquanto esteve aqui
- meu duro pai de olhos meigos -.
Um homem pode ser simples
ter a alma calorosa e grande.
Quem se importa se você não fez mágicas?
Você cortou a grama, cuidou das plantas,
sempre esteve um pouco aborrecido
com o cigarro queimando (a vida) entre os dedos.
Alimentou a todos, trabalhou por isso,
um pouco para si – que és humano, afinal! -.
Não se importe se fui para o mundo,
se soltei-me de suas mãos
enquanto você ficava em casa.
As trilhas do silêncio também me habitavam
nos sonhos que você sonhou
para que eu também pudesse sonhar.
Enquanto isso fui construindo asas de metal
e pétalas de flor
- peso e leveza minha alma-.
Eu me libertei de você
tentando te libertar de mim.
Devíamos temer esse acordo?
E no momento em que você nos deixou
ficou a certeza, a única, de hoje:
nunca saberei como você me sentia,
nunca saberás como eu te sentia.
Ney-Cazuza
(para Ney Matogrosso e Cazuza)
Aquele pivetezinho da praia
Parecia um anjo de pele queimada
despencado do céu.
Lindo. Dengoso. Falante.
Um vapor de maconha no seu hálito.
Um cheiro de sal na sua pele.
Para cantá-lo, eu cantei para ele.
Sob um dia solar no Leblon
Fui provocado e caí na sua teia.
Seu toque desarmou amarras do meu peito.
Voei por abismos de afeto.
Essa conexão – do anjo de cabelos cacheados
Com o fauno tropical –
Era tudo o que a poesia queria.
Aquele menino destrambelhado
Com o pau para fora
Com ele eu tudo podia.
Não podia ser diferente
O que eu queria:
Enquanto o mundo inteiro dormia,
A gente fodia.
O poeta de BH
(Dedicado ao Mário Alex Rosa)
O poeta não está na cidade
Em algum lugar ele permanece
Sapatos gastos, coração traído
Suas roupas estão largas
Sua vida não se ajusta.
Conhece cada reduto
A ponto de não querer mais
Atravessar esquinas ou
Visitar quebradas
Clube nenhum o cativa
O vento frio o empurra
Para dentro de cobertas de aço
O poeta mora aqui
Mas poucos sabem
Que ele desapareceu
O reflexo no vidro do prédio
É de um fantasma antigo
De outro poeta
Que o antecedeu.
Notícia
A notícia de sua morte
- sim, a morte que virá –
Me deixará abalado.
Estou pensando na casa vazia
e todos aqueles papéis secretos
que você deveria ter queimado.
Os invasores não perdoam os segredos.
Tantos livros grifados, fotos do amor,
bilhetinhos ofensivos e magoados
sobre o amigo indesejado.
Um amontoado de discos lindos
e vídeos pecaminosos na reserva.
E eles vão tentar decifrar
os dois caminhos percorridos
entre a santidade e a baixeza.
Todos esses bens, esses finos
objetos da contemplação
e tantos outros para a perdição
irmanando-se numa única alma.
Ah! Humano, demasiado humano!
Esperavam a claridade da manhã
e lhes aparece um soturno céu
de máculas baudelairianas.
Gavetas sem chaves, armários livres,
cofres abertos com contracheques
de programas e estupefacientes.
Não querem nem olhar,
mas não deixam por menos
e devassam fundo sua alcova.
Porque sempre suportaram tudo,
menos a sua discrição.
O amante do vulcão
(para Susan Sontag)
Tu te sentes atraído pela boca da cratera
A beleza de suas contorções luminosas
O calor de seu fogo cintilante
- buquê mortal alumínio-laranja -
Seus estranhos movimentos
Azul-negro de queimar
Tubos de tinta em explosão
Fazem uma tela de Pollock
Tesouro visual em expansão
Tu te sentes tão atraído
A ponto de para dentro dele
Querer se jogar.
Café noturno
(para o Ronald Polito)
Todas as vezes que você sai
Para comprar cigarros
Trafegando por ruas escuras
Você aproveita para respirar
Você pensa e nunca deixou de pensar
Se tivesse asas poderia voar
O café noturno aberto
Um rapaz bebendo cerveja
Você pede um isqueiro
Como quem pede um beijo
Você não quer ver o rio passar
Aproveita para deitar-lhe seu olhar
Jardel Dias Cavalcanti
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