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Sinal de mais: notas sobre "Negativo", de Augusto Massi, por Mário Alex Rosa

Atualizado: 19 de nov. de 2021


A Revista Sphera me solicitou algumas notas sobre os trinta anos do livro Negativo, do poeta Augusto Massi. A princípio hesitei em aceitar, mas não por duvidar da qualidade desse livro lançado em 1991, quando o poeta tinha 32 anos. Era o seu primeiro livro. A minha dúvida se conseguiria recolher algumas observações que pudessem trazer de volta o sentimento que tive quando naquela época o li pela primeira vez e anotei a lápis nas últimas páginas o quanto tinha gostado do poema “Confissão Banal”. Eu, que não sou fumante, fiquei a pensar nos adeptos do tabaco. Por causa da ocasião, volto a relê-lo em 2021 e sua beleza continua acesa. Peço-lhes permissão para reproduzi-lo aqui:


CONFISSÃO BANAL


Sempre que a vejo

quero me aproximar

com a simplicidade

de quem pede fogo


Beijar seu beijo

tocar seu corpo

como quem acende

um cigarro no outro


Uma das forças desse poema está na confissão, que é banal, mas por isso mesmo é delicada no seu gesto de entrega ao encontro, que pode acontecer na imagem tão comum dos fumantes que solicitam acender o cigarro no cigarro do outro. Mas para além desse gesto comparativo ao encontro amoroso, é a forma pela qual os oito versos se encontram um no outro para que os corpos/versos se acendam, ou, numa leitura livre, para que o próprio poema se acenda para nós.


Negativo, num trocadilho oposto ao seu sentido, é um livro bastante positivo, pois há muitos poemas de grande apuro linguístico, formal. Prima por uma rigorosa lapidação na linguagem de cada poema, porém sem nunca cair na aridez. Às vezes o excesso de “capricho” pode levar o poema a uma espécie de refinamento estéril de modo a anular qualquer expressão mais lírica. Ao contrário disso, a decantação fez bem a essa poesia, reflexiva e profunda em relação aos temas escolhidos. Temas de um lirismo mais intimista, como no forte poema “Ser”, no qual o filho, assombrado, interroga insistentemente, em versos de concentração dramática, a figura enigmática do pai perdido. Outras perdas trazem lembranças severas. Vale mencionar nesse contexto o grande mergulho na imagem do pai que é “Viagem na família”, de Carlos Drummond de Andrade. Poemas em diálogo, porém com histórias paternas diferentes. Aliás, é curioso que a dedicatória que abre o livro de Augusto Massi lembra a de Drummond no seu livro de estreia, Alguma poesia (1930): “A Mário de Andrade, meu amigo”. Na dedicatória de Massi: “A Raduan Nassar, meu amigo”. Gestos não só de grande apreço, mas de reconhecimento da importância de uma amizade sincera e crítica como foi de Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. Em Negativo, a amizade se estende para outras pessoas próximas, que certamente conheciam o que o poeta vinha escrevendo.


Vale ressaltar duas matrizes que estão em Negativo e que foram bem observadas pelo crítico Alfredo Bosi na orelha do livro. Uma: “o poeta nos dá, sobre o branco da página, o negro das ausências: a sua educação pela e para a morte”. Outra: “o amor convoca para o ato poético não só as vibrações do corpo, mas também os valores concretos da cultura e da arte, a que o poeta Augusto Massi é particularmente sensível”. Essas duas observações de Alfredo Bosi suscitam uma questão que me parece fundamental: o quanto a erudição não deve jamais se sobrepor ao próprio texto literário em análise. De fato, isso se confirma, por exemplo, no seu olhar para a poesia de um poeta estreante, como foi o caso de Augusto Massi. Recordar aqui essas observações argutas e certeiras de Bosi é homenagear também a perda recente desse que foi um intelectual que jamais se distanciou do horizonte social e histórico de nossa realidade.


Ainda em Negativo, é de se notar o lado imagético de alguns poemas. Para além da cultura que ali se manifesta, sobretudo vinda das artes plásticas – esse pendor pictórico revela o quanto a experiência de olhar objetos, peças, quadros, pode, nas mãos de um poeta, dar a ver aquilo que só aparentemente é uma imagem estática. O belo poema “Cerâmica” é um exemplo de como as imagens ali “aprisionadas” ganham vida:


CERÂMICA


Exposto no prato

o peixe procura:

praia da pintura


À revelia do olho

– o pensamento abstrato –

ao objeto adere

Aprisionado no prato

o peixe lembra e sugere:

a linguagem de um leque


Há outras questões que poderiam ser ditas sobre esse primeiro livro, cujo primor na limpidez e na elaboração dos poemas não o deixa menos lírico nem diminui em nada os diálogos com a cultura e nem tampouco encobre os traços da experiência pessoal. Negativo, embora parta do escuro, é um livro que continua iluminando, mesmo após trinta anos de sua publicação. Assim se pode dizer que o livro contém um aprendizado que associa estreitamente o plano entranhado da vida do poeta ao seu interesse pela cultura. Nessa mescla, tão bem observada por Alfredo Bosi, Augusto Massi sempre se mostrou atento e crítico. A “Caixa de ferramentas” é prova viva e permanentemente aberta para o que viria depois:


Exploro a carga de crueldade

e ternura que cada uma delas

carrega e concentra.

Eis minhas ferramentas:


os diários de Kafka,

os desenhos de Klee,

a sagrada leica de Kertész,

os cahiers de Valéry


a visada irônica de Svevo,

as elipses de Erice

as hipóteses de Murilo,

revelações de Rossellini,


a potência de Picasso,

minérios rancorosos de Drummond

o Más allá de Jorge Guillén

os territórios de Antonioni


as lições da pedra cabralina

o no estar del todo de Cortázar

as ideias de ordem de Stevens

e o alicate da atenção.



Poss scriptum


Só depois de dez anos é que Augusto Massi volta a publicar mais um livro, agora em edição modesta, com tiragem de apenas cem exemplares (penso que merece amplamente uma nova tiragem). A vida errada (2001) é um livrinho diminuto, de apenas 14x10 cm. A coleção simpaticamente se chama “Moby Dick” e é editada por Jorge Viveiros, da Editora 7Letras.

Se tomarmos por base as duas matrizes assinaladas por Alfredo Bosi, acrescentaria pelo menos mais duas: a rudeza na linguagem e um tema pouco comum na poesia contemporânea, que é a família. Portanto, linguagem e tema se acentuam no livro A vida errada, cujo título já é um indício do que mudaria do primeiro livro para o segundo. Se por um lado a linguagem se mostrou muito límpida, quase rarefeita, num trabalho refinado de carpintaria, por outro, o poeta enfrentou assuntos agudos e polêmicos, que são as questões sociais e familiares. A ironia e o humor aparecem de maneira corrosiva, expondo de forma muito crítica aspectos tão comuns na sociedade contemporânea: as separações e as liquidações. Se a vida andou errada, ironicamente os doze poemas são um acerto e, diga-se de passagem, muito atuais.

Em 2016, 25 anos distante do primeiro livro e 15 anos do segundo, sai Gabinete de curiosidades, mas com uma diferença: o livro contém também poemas de Lu Menezes. O projeto é da Editora Luna Parque, que já lançou outros títulos na sua maioria com dois poetas dividindo o mesmo projeto.


Há muitas curiosidades nesse gabinete, e uma delas são as peças escolhidas, que vão desde pregos, parafuso, tachinha, caixa de fósforos, até chip, entre outras. As diferenças desses poemas vão muito além de uma mera descrição dos objetos, muito ao contrário, neles se percebem, além de um humor, por vezes ácidos, a crítica industrial (“Pregar aos pregos”), a imagem violenta dos arames em “Arame farpado” ou a delicadeza no “Em torno de um estojo”.


Do lirismo mais recolhido em Negativo, o poeta, sem se distanciar muito de suas ferramentas/temas, abriu-se para olhar o mundo lá fora sem perder o escuro que há dentro de si. Iluminar o escuro é uma tarefa árdua no enfrentamento das palavras.


Estamos em 2021, dizem que o autor tem um novo livro pronto. Não há dúvida de que o tempo fez bem a esse poeta que nunca abandonou a poesia. Basta lembrarmos, por exemplo, de dois projetos que coordenou, como a importante Coleção Claro Enigma (1988-1991), e o essencial Artes e ofício da poesia (1990-1991), livro que é resultado de um encontro com vários escritores de gerações diferentes. Enfim, o poeta, crítico e professor continua com sua caixa de ferramenta aberta ao ofício das artes.

Devo o título desse texto ao meu amigo Rafael Fava Belúzio.






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