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Foto do escritorRevista Sphera

Dobras lahars na poética serguilhiana por Luciana Abreu Jardim

Atualizado: 2 de nov. de 2021

O escritor português Luís Serguilha é um dos mais potentes da literatura de expressão portuguesa em plena ebulição. Seu gesto é dos mais fecundos e complexos, ultrapassando fronteiras discursivas e acontecendo numa incessante impermanência. A ensaísta Luciana Abreu Jardim, professora da Universidade Federal do Pampa (RS), escreve com exclusividade para Sphera sobre o processo criativo do profícuo autor de A actriz, publicado recentemente no Brasil pela Kotter Editorial.




uma LEITORA é afastada da bivalvia do mundo para se conectar às pulmoeiras-ganóides-das-efracções-catatónicas, transformando o seu corpo em silabarias criptogâmicas, desdobradas pelo excesso das cabeças de JANO que se desviam de qualquer domínio recognitivo, de quaisquer cronologias: há uma negação esfomeada que catalisa as traições das imagens sonoras imanentes às golfadas dos acasos extremados: há torções nas renascenças das carnagens em desaparição no alto demanche do poema porque os olhares-devolvidos ao plasma do animal se movem transversalmente sem contracções gráficas ao cimo dos espectogramas com velocidades indefinidas: os JOGOS dos haustórios demovem-se e abeiram-se dos coleccionadores vitrificados que se de-compõem com os movimentos fabulares ir-reflectidos nos ritmos das transleituras: a leprosaria silabária vascoleja-se entre as variações catalisadas das extremidades esfomeadas onde as afecções ecoantes do futuro eternizam os intercessores da desmesura: ritmos circadianos povoam-se de vértebras transparentes: escoantes-diagonais misturam os traços do vazio com as vibrações ínferas dos espelhamentos alcançados pelas sombras das stygiomedusas (o it kodâmico):

Plano movimento___8_____ (it lahar pampeano kodâmico) LS


Nos poemas de Luís Serguilha, entramos em contato com um fecundo e perturbador diálogo que compreende temas desde o impacto das cosmogonias dos pré-socráticos, reconhece a herança de Platão e Aristóteles, recupera o esquecimento dos estoicos, chama à cena os modernos, alcançando também conceitos que circulam sob o interessante encontro entre filosofia e literatura, cujos expoentes se concentram sobretudo naqueles que contribuíram para a ampliação do que pode ser escrito para além de suas áreas específicas, habitualmente marcadas pela complexidade de perguntas que não deixam espaço para a experiência dos deslocamentos intempestivos. A referência ao grupo Tel Quel, que, nas palavras de Kristeva, foi, depois de Lautréamont e Rimbaud (1996, p. 170) do surrealismo (1996, p. 172), o terceiro encontro entre a literatura e o impossível (1996, p. 173), restitui um caminho errante de leituras a deformar a linearidade de certas trajetórias destinadas à perturbação, ao movimento, incluindo os seus riscos intrínsecos – uma prática distante de certa tendência ao culto da minúcia. Entre os que recebem o epíteto de malditos (Georges Bataille, Antonin Artaud ou mesmo Céline) e os pós-modernos, considerando as duas diferenças e até mesmo divergências (Michel Foucault, Jacques Derrida e Julia Kristeva) somam-se às indispensáveis pesquisas de Roland Barthes e de Maurice Blanchot, que compõem heranças conceituais da experiência de arte e pensamento da Tel Quel e que estão na sinuosa trilha serguilhiana.


Ao lado dessas referências, é preciso abrir espaço para um filósofo que se destaca no conjunto do poeta – Gilles Deleuze. Observa-se que ambos, a despeito do encontro-desencontro com certas motivações temáticas e da produção de estilos de escritas singulares, envolvem-se, por exemplo, com Melville, com Lawrence, com Kleist, com Lewis Carroll ou com Proust, levando-nos a produzir pensamento a partir de composições que guardam o jogo intrincado da criação-pensamento, no qual a ficção interfere e produz pensamento, muitas vezes distanciando-o das expectativas tanto daqueles que pertencem ao que pode ser pensado quanto daqueles que participam dos grupos cuja criação atinge o reconhecimento almejado e “permitido” pela instituição literária. Luís Serguilha pode ser inserido no grupo de escritores que pratica uma escrita híbrida – como foi percebido já nos seus poemas da adolescência, no volume K’oa’e por Melo e Castro [1]. A exemplo dos contos de Borges, com mundos atravessados pela filosofia de Berkeley, há na poética serguilhiana algo que nos faz pensar a partir do interior de uma criação que constrói ritmos de pensamento para escapar da representação, o que é diferente de Borges, obviamente, mas joga na zona das cegueiras iluminadas a despertar o pensamento-criação. As ressonâncias deleuzianas no pensamento-poema de Serguilha não estão somente em escolhas literárias que atravessam o campo de gosto do filósofo e do poeta. Há que reconhecer a busca do poeta em torno da diferença, ampliando-a, como faz o filósofo, para a herança nietzschiana. E sabemos que Deleuze dedicou um tempo de vida a escrever sobre Nietzsche. Ao lado da recuperação desse caminho e para além dele, há que voltar à gestualidade de Zaratustra, esse dançarino que parece contagiar uma das obsessões do poeta: essa fascinação pelo gesto-corpo bailarino, que escapa das próprias limitações, ultrapassa o desgaste das articulações, desagrega-se para capturar um movimento sempre outro e às vezes simples, que poderia ser executado por qualquer um, mas que esculpe no vazio um gesto a atravessar, modificar o leitor-excriptor, afetado por um corpo tocado por forças que retornam na experiência desse leitor criador de uma cena rítmica, a fugir da representação, incitando-o a alguma coisa que não é mais somente o gesto de levantar a cabeça, em expressão de “trabalho de corpo” (2004b, p. 29), como nos relata Barthes ao referir a experiência despertada pela leitura de Sarrasine, de Balzac, em “Escrever a leitura” ou mesmo ao problematizar esse gesto de forma teórica em “Da leitura”, para nos dizer da experiência do desejo que acompanha a leitura [2] (2004a, p. 36-40). Em Falar é morder uma epidemia, o poeta nos leva a saltar com Nijinski:


[...] o poema é a força mais espraiada, mais estiraçada, repuxada da duração, o seu movimento-maracatu volta-se sobre si mesmo e a memória cósmica do frevo-jazzístico assimila todas as horizontalidades, quebrando-as para incorporar a loucura do inacabado que vasculha as fendas do infinito nos saltos de Vaslav Nijinski, nos arrastamentos das intersecções simbióticas rés ao real indizível: [...] (SERGUILHA, 2019, p. 165).


De sua escrita eclode a paixão pelo movimento. Falar é morder uma epidemia vem carregado de uma gestualidade feminina, misturando a sintaxe a vertiginosas piruetas ou à simplicidade de um caminhar ziguezagueante de perdição entre páginas sem começo ou fim. Assim como em outros poemas, por aqui pode-se começar de qualquer página e não é apenas a cabeça que se inclina para fora da página, parece antes ser as mãos que esboçam movimentos circulares a desenhar alguma coisa indefinível, talvez abóbadas ou arabescos. Seria a ilusão de liberdade despertada pela dança que se faz desde o estranhamento das palavras tão inatingíveis quanto os saltos de Nijinski?


[...] ritmos inverbalizados-a-significantes que reduplicam as armadilhas dos instantes fugidios, ultrapassam patamares adentro do animal-poema de sensações destruidoras da observância do verbo: dizem: dança das expressões ou acontecer por meio das des-costuras inconscientes que se expandem nas rotações dos obstáculos, SIM, o poema é o animal de sensações perfuradas que se prolonga si próprio, existindo-se, incorporando-se ao anexar à incomensurabilidade do estar dentro-e-fora de si-mesmo, transfronteirando o mundo numa correnteza do impossível (SERGUILHA, 2019, p. 165).


Trata-se também de pôr em cena a expansão de um tórax que se manifesta no gesto de leitura – e parece causar tanto escândalo quanto os efeitos produzidos por Zambinella. O peito de Nijinski expande-se e contrai-se. E o leitor-excriptor é levado a uma delicada curvatura da coluna, já que é dito nessa sequência afetada pela gestualidade de Nijinski que “o corpo do leitor será infectado e arremessado no mundo sem saber sua força geodésica” (2019, p. 165).


Em Kalahari, que já contém reflexões sobre a leitura, a loba, personagem rítmica, uiva esboçando ritmos que são chamados de “autônomos”. Em seguida, ela dança: “a Loba é feita de instantes coreografados” (2017, p. 108). O gesto, na poética de Serguilha, se manifesta à primeira vista fortemente esculpido através do corpo feminino, mas podemos ampliá-lo para uma força feminina sem sujeito social ou biográfico, e assim ele não é redutível ao impacto biológico da condição feminina, deixando-se percorrer através de outros corpos. Ao lado de Nijinski, essa força desponta nos efeitos coreográficos da bailarina Ana Montenegro, que, em Falar é morder, oferece a sua coluna vertebral (2019, p. 79) para uma experiência de leitura-excripta-fêmea: “as pinças de milhares de fêmeas mortíferas entreabrem os tecidos das alumiações vertiginosas até à caligrafia giratória das sibilas sumptuárias (tudo é acarrapatado)” (2019, p. 80). Na mesma composição, a força emanada pelas coreografias de Pina Bausch se articula ao que poema reconhece como as “muitas vozes” de Heinz von Foerster, formando “ínsulas paleodesérticas” (2019, p. 355). Do encontro gesto e natureza, a performance da bailarina Mariana Muniz, cuja excripta está no ensaio “Dançar a vernação do mundo”, emerge numa série de considerações enumeradas sobre o corpor da dançarina: “[...] é uma solidão do indizível fora dos tentáculos da deserção e do abandono” (2021).

Grande impacto de movimento surge quando nos conectamos com “Mães-crias”. As mães, essas criadoras que estão na nossa formação da linguagem, mas aqui elas são personagens maiores do que a sua condição biológica poderia indicar:


a DANÇARINA-mãe é um acto de mosaicos-de-fala que gera tempo demente com limiares de uma alma em antropofagia-pura: um sopro nas lobotomias da tragédia ressurge no insondável das ulcerações, adentra-se estranhamente nos gestos-com-falhas-dispersas e transverte-se num fluido anatómico carregado de vazios no meio da DANÇA abertamente sanguissedenta: tegumentos das crias mineralizam as turbulências das mães e nas elevações do caos um cântico de cabotagens excede os batimentos da morte (as hastes das casas são cantadas pelos bichos agachados no poço das luzes): DANÇAR o limite turbulento das mutilações do ar onde os GESTOS fogem do refreamento negador do corpo (as ervas das sonâncias abismam os espelhos das crias): criar sintaxes na trama dos GESTOS góticos que assimilam os cernes graníticos com os látegos das palavras dentro de uma língua com minúsculos ritmos insanos (um estoma incendeia o sangue com as frestas do vazio onde as cabeças movem a abstracção das casas por dentro e por fora dos clarões que cercam as crias): DANÇAR as cavidades da língua em riste com uma bifurcação anónima, uma errância caída na cegueira das mães com bordaduras nos extravios criadores de novas ressonâncias do real: [...] (SERGUILHA, 2020).


Aqui essas forças dançantes da criação esculpem, em gestos góticos, formas sintáticas, palavras e ritmos loucos. Reparem nas falhas da língua-dançar, na cegueira e até mesmo nos estomas dessa antropofagia-bailarina.


uma LEITORA abre-se infinitamente às afluências metabolizadoras de gestualidades intersticiais e de arrancamentos caóticos para se revigorar nos equívocos semi-obscuros desafiadores de dédalos por dentro dos ecossistemas do animal-poema: aqui, apêndices abíssicos carregados de carbúnculos e de acontecimentos sem teceduras-terminais acordam as cabeças heurísticas com estames alucinógenos: há uma aproximação das fulgurâncias descontínuas à polinização das dobras das estranhezas embrionárias que eliminam os veredictos-sensório-motores:

Plano movimento___8_____ (it lahar pampeano kodâmico) LS


Outra ressonância deleuziana que poderia nos limitar a um retorno à série do filósofo dedicada ao cinema, seguindo as pistas conceituais de Cinema 2: aimagem-tempo, está na obsessão cinematográfica do poeta. Bergson, Visconti, Cassavetes, Ozu, Kurosawa, para citar alguns, são artistas da imagem cinematográfica que reaparecem em vários poemas de Serguilha. Voltemos àquele que deixou rastros escritos de sua criação – Tarkovski –, pois ele percorre diferentes poemas serguilhianos. Vejamos um fragmento de Kalahari:


Em transe performática navega na reconstrução-impermanência nanoenergética OU no grafitte-devir de Tarkosvsky-Allen Ginsberg-Sousândrade-Marosa di Giorgio: os caminhos involuntários, a regeneração nómada, os acervos errantes-mas-ecológicos-e-a-sangradura-das-sagas são atracções da incorruptibilidade dançante do mundo, do uivo dançarino, do uivo Manray: som a ressoar nos pórticos do esquecimento, no ferro da impossibilidade, no diamante blindado, na mirra do canavial, na sombra de GOYA ( SERGUILHA, 2016, p. 124, grifos do autor).


Pensemos no cristal que está na imagem-cristal. É um caminho possível para entrarmos em contato com o uso do sema cristal na poesia de Serguilha, expandindo-se para a repetição do verbo esculpir, que tem acompanhado todas as composições criativas de nossas pesquisas, as quais, diga-se de passagem, ainda precisam de uma longa trajetória de leituras.


No sugestivo título de Esculpir o tempo, Tarkovski arrisca uma definição de poesia, aproximando-a da filosofia: “A poesia é uma consciência do mundo, uma forma específica de relacionamento com a realidade. Assim, a poesia torna-se uma filosofia que conduz o homem ao longo de toda a sua vida” (1998, p. 18). Curiosamente, a primeira ocorrência do signo cristal nesse livro surge com o poeta russo Vyacheslav Ivanov, que, nas observações do cineasta, discorre sobre o que chama de símbolo para defini-lo como algo na ordem do “inexprimível [3]” (1998, p. 53).


Percebam, pela referência à mônada, que o cristal poético de Tarkovski abriga o pensamento de Leibniz, um dos pensadores que também cruza a escrita do nosso poeta. Reparem que o cineasta produz um vínculo poético-filosófico ao pôr em cena a ideia do cristal. Em outro momento, ao mencionar o perturbador filme Stalker, ele define o cristal a partir de sua indestrutibilidade e a consequente reafirmação do vivo no humano [4]. Retornar ao tempo cristal recuperado por um filósofo (Deleuze) depois de (re)voltar às camadas poético-filosóficas de seu escultor, o artista da imagem (Tarkovski), instaura um debate que deveria ser atravessado por um poeta. Em Plantar rosas na barbárie, o poeta-lahar ambiciona tocar, assim como o poeta escolhido pelo cineasta, no que chama de “inexprimível”. Aqui estamos diante do imperceptível: “Exaltada e com o tempo no corpo, a poesia sente os abalos do silêncio ao colocar tudo em risco, em vascolejamento, fica imperceptível ao asseverar a metamorfose completa dentro do cristalino dramático de Tarkovski” (2017b, p. 36). Diz-se que Hamartía “surfa nas lentes” daquele que é chamado de “escultor do tempo”.


HAMARTÍA exalta a ressurreição das línguas, a reaparição das línguas, colocando a matéria expressiva em transposição geográfica.


FLONA é uma durável descodificação esboçada por movimentos infinitos entre a vivificação do presente-futurível e um presente eternamente recomeçável onde a matéria não se perpetua, vive aferrolhada na agoridade que reprincipia a todo o instante sem história. Sentir o inexplicável gerador de diferenças não mensuráveis, o confronto da transparência na claridade dramática de Tarkovski onde a alma é uma força de concatenação da matéria, é uma velocidade infinita de intermezzos sem tempos históricos” (SERGUILHA, 2020b, p. 32).


Nessa poética, a categoria do tempo compreende um dos acessos indispensáveis para a articulação entre a duração e poema, desenvolvida pelo poeta. Assim, retornar ao pensamento de Bergson e a sua definição de duração permite que aprofundemos o vínculo pretendido pelo poeta na sua busca de uma escrita (excripta) em tensão com um tempo que, na tradição filosófica, jamais se deixa apreender. Nessa experimentação poética tributária do pensamento de Bergson, para além do necessário estudo deleuziano sobre o filósofo – Bergsonismo –, somos provocados a voltar ao conjunto de textos de Bergson (do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência à Evolução criadora). Fiquemos, a título de instigar possíveis pesquisas, com a tese de Bergson, que foi retomada por Deleuze, segundo a qual o passado coexiste com o presente, o que é diferente de pensá-lo com base em momentos sucessivos. E formulamos algumas questões acerca do significado da duração nas experimentações serguilhianas. Como acontece a excripta da duração? O que significa durar nessa poética-lahar? Por que há recorrentemente um “aqui e agora” nessa excripta e qual o seu vínculo com o hic et nunc dos estoicos? Quem é afetado pela excripta da duração? Selecionamos alguns fragmentos poéticos que, longe de responder a essas questões, despertam antes para a fruição da partilha que acompanha a experimentação da leitura envolvida numa temporalidade repleta de várias camadas de memórias e matérias.


Será que o animal-poema de Hamartía acompanha a rica a herança da duração bergsoniana ou há momentos de criação poética heterogêneos aos conceitos do filósofo?


as efracções das lavras arrancam os corpos intercessores de intensidades demoníacas para radicularem os eclipses das linhas caológicas e tudo se desmorona, se rasga diante de imanências-caleidoscópicas regerminadoras de instintos que surgem, voltam da natureza repetitiva dentro de forças inéditas: voos nos voos, manchas nas manchas do ritmo-mundo, refazem a duração indeterminada da luz-matérica produzida pelas velocidades inexactas do real espargidor de visibilidades turbilhonantes dos sensíveis, gerando sons-estéticos, friccionados nas escutas transversais das trilhas estimuladoras de espaços-tempos que nos forçam a absorver forças obscuras aglutinadas aos signos sem memorações: imanentes cânticos-não-cantantes de IRRÉ, as artes não-artísticas de IRRÉ rastreiam, fraccionam circunferências com voaduras perseguidas e conectadas pelo pululante das caoticidades que não desperdiçam o mundo, dizendo a diferença simultaneamente fora da totalização mimética e entre as tonalidades-larvares dos balanceamentos do caos afectivo (SERGUILHA, 2020b, p. 291).


Em A Actriz, A Actriz, o constante desaparecimento dessa personagem rítmica atravessada por “uma vida delicada que nunca morre” (2020a, p. 247) marca-se pelos gestos do vazio e do esquecimento. Seria interessante envolver o esquecimento da Actriz ao desaparecimento das palavras para Mallarmé, relido por Blanchot, no ensaio “O mistério das letras”, sobretudo no ponto em que o poeta reflete sobre a tripla existência das palavras do escritor, de forma a ampliar a necessidade do existir para desaparecer (2011, p. 56). O possível vínculo entre duração e esquecimento reforça um debate que é da ordem poética-filosófica e também da crítica literária, reaparecendo na composição híbrida que compõe o longo poema A Actriz, A Actriz: “Na boca da ACTRIZ as palavras fundem-se espontaneamente por meio de larvas anorécticas, de consoantes enfermas como um curto-circuito de esquecimentos entre dicionários ágeis, sagazes, desconhecidos” (2020a, p. 64).


O corpo do leitor entra em cena, inicialmente sob a sugestão da excripta de um fazer acordar desde os poros, libertando-o do sensório-motor. O leitor, transformado em personagem rítmica, esboça-se em Plantar rosas na barbárie, retorna em Kalahari, mas ganha espaço a atravessar todo o poema em Falar é morder uma epidemia. Ler-se em problematizações que tocam a duração consiste no deslindamento de possíveis efeitos vertiginosos sobre os receptores, que, nessa composição, surgem vertidos em personagens rítmicas delirantes. O leitor parece durar no caos:

O leitor produz-se a si-mesmo ao incorporar o meio do acontecimento-por-vir para se infinitizar na capacidade acentrada e labiríntica de viver, de se movimentar na duração ritmável-emaranhada do mundo que exige travessias intensivas entre a exultação da protérvia e as fendas-pensantes, fazendo do poema uma estremadura óptica-tátil, incontrolável de si mesma, um vórtice compositivo aspirando contradições inexcedíveis numa polissemia incomensurável, sim, o corpo vibra ao cartografar o reencontro caológico e uma multidão assintática se improvisará entre topografias-em-choque dos ladrões ecosóficos, sim, o poema não se deixa capturar, faz-nos desviar dos sustentáculos mediadores para arrancar, abrir, fender, extrair, escavar, gaguejar diagonalmente o mundo até à sua saturação sem qualquer troca porque é uma força de desmando (SERGUILHA, 2019, p. 187).

Durar com as palavras do excriptor implica estar apto a uma desterritorialização, significa perder o próprio rosto, correr o risco dos contornos imprevisíveis, deixar-se ser atravessado por um outro – não necessariamente um humano. Não é à toa que o poema recebe o nome de animal-poema, provavelmente o primeiro outro que vem à mente quando pensamos em alteridade. Com o conceito da duração, acontece um abalo das marcas temporais, e desenvolvemos uma percepção do tempo que se alarga para outras temporalidades e, por conseguinte, para alteridades distantes do nosso campo visual. Qual é o tempo de vida de uma rocha? O que significa durar para uma matéria ínfima e imperceptível para o nosso contexto? O tempo do escorpião é diferente do tempo do humano? São perguntas que surgem quando nos conectamos com as composições de Serguilha, quando nos permitimos durar na experiência de leitura do seu animal-poema. Se levarmos o debate para a categoria espaço, entenderemos que o abalo do espaço humano passa pela percepção de um estar depois na terra, de ocupar depois um espaço e também um tempo. Mas depois de quem?


uma LEITORA ressoa fractalizada nas fímbrias do poema-animal que dança as cartilagens hiulcas do futuro atravessado por inconscientes de um esquecimento respiratório renovador da vascularidade do insituável: a exorbitância do esquivo se torna cruel para disseminar visões euforizantes sobre intermitências verbais ao redor de escorpiões necrosados pela língua da LEITORA: um lapso gigantesco transmuta-se através do turbilhão das palavras que catalisam as fugas das porosidades gâmicas do animal-poema: uma LEITORA relança as viscidezes dos esporos do absurdo contra os vórtices de uma prática do sublime repleta de ondas anorgânicas e as ataduras dos tecidos das hipófises emancipam os sensores da egiptologia:

Plano movimento___8_____ (it lahar pampeano kodâmico) LS

O animal como aquele que vem antes no tempo e no espaço causa o que Jacques Derrida reconheceu sob o nome de animal-estar, em O animal que logo sou. E, quando ele é visto nu pelo próprio gato, esse que vem antes, o filósofo confessa, em relato poético, que sente vergonha de sentir vergonha (1992, p. 16). Pelo fato de ser alguém dentro da linguagem e com acesso ao logos, o filósofo é aquele que “deveria” manter essa diferença de herança aristotélica. No entanto, ele aprofunda a crítica que faz ao logocentrismo desde Da gramatologia, abalando, assim, a primazia do conjunto que, no início da consolidação da filosofia, confere imenso status ao sentido da visão e ao que o circunda – podemos pensar na voz e no rosto como parte desse legado.

Quando o excriptor esculpe o poema dando-lhe o nome de animal-poema, o privilégio da visão, da voz, do rosto, toda essa composição logocêntrica é abalada, o que faz pensar, por outro lado, nos elementos rebaixados: a mão, por exemplo. O poeta é aquele que se envolve com uma mão destinada a escrever. Nesse caso, temos uma mão em trabalho de excriptura. Daí entendemos por que ele esculpe suas experimentações escritas, que seguem melhor compreendidas se forem excriptas. Ao lado desse movimento da desconstrução, o poeta nunca perde a inquietação aristotélica, que nos deixou como herança a tarefa de pensar a respeito da enigmática passagem entre o grito e a voz, instigantemente retomada por Derrida no célebre ensaio “A mitologia branca [5]”. É preciso sempre retornar ao abismo despertado por esse vínculo perdido ou, a título de provocação, para sempre diferido, entre grito animal e voz, de modo a fazer durar a questão proposta por Aristóteles. Essa perplexidade da filosofia antiga retorna sintetizada em Falar é morder uma epidemia: “O animal grita para dar passagem ao inominável” (2019, p. 156).


A busca de poema animal de Serguilha conecta-se a essa experimentação, sempre atravessada pelas falhas, pela “passagem ao inominável”. Em permanente travessia sinuosa, o poeta segue pela exuberância temática e linguística para dar excriptura ao que parece escapar do campo visual de uma composição artística que, a despeito da liberdade de criação, também padece da influência do primado visual no fazer poético. Não podemos nos esquecer que as metáforas da visão sempre foram e continuam sendo muito exploradas pelos poetas de todos os tempos. Mesmo quando excedem o mero ver e ampliam-se para as visões, elas guardam qualquer coisa enigmática acerca do olho, a exemplo das visões de Blake. O deslocamento do primado visual encontra em Nietzsche, o filósofo do martelo, a abertura de caminho para as metáforas da escuta, produzindo ressonâncias para leituras poéticas de Heidegger e, de modo mais amplo, para as investigações literárias de Derrida, em suas Otobiografias. Nessa perspectiva, a sugestão de deslocamento da visão para outros sentidos parece acompanhar também a busca de Deleuze, sobretudo em seu ensaio A lógica da sensação (2007, p. 62), que encontrará na pintura de Francis Bacon o acesso para a captura de forças e o consequente desencadeamento de sensações. Contaminado pela reflexão do pintor Paul Klee, que defendia o “tornar visível” ao invés de apresentá-lo, o filósofo propôs uma busca a incentivar o que não está dado, uma busca pelas forças do por vir: “a música deve tornar sonoras forças insonoras, e a pintura, visíveis forças invisíveis” (2007, p. 62).


Como efeito literário, reencontramos essas forças na designação das “personagens rítmicas”; no entanto, elas não acompanham Bacon – pelo menos não diretamente como referência no texto que as desenvolve, intitulado “Tornar audíveis forças não-audíveis por si mesmas”. Essas personagens surgem a partir de um enredo que é musical (Boulez, Liszt, Wagner, Debussy), ou, em outras palavras, em conexão com o ouvido e a escuta, ou seja, algo que, na esteira de Nietzsche, foge da metafísica da presença. Na leitura de Deleuze das personagens rítmicas, que consiste em ilustrar a troca do par matéria e forma por “material-forças”, o exemplo de alguns motivos da ópera de Wagner pode ser associado à sugestão das personagens rítmicas. Interessa ao filósofo pensá-la à luz do que chama de um tempo não pulsado, no qual ficamos diante de uma “multiplicidade de durações heterócronas, qualitativas, não coincidentes, não comunicativas” (2016, p. 164). Deleuze faz uma articulação com a literatura, aproximando o tempo não pulsado a ‘“um pouco de tempo em estado puro”’ segundo Proust (2016, p. 164). Deleuze reconhece que há algo de musical na recuperação do tempo não pulsado, mas também observa que ele “é outra coisa também” (2016, p. 164).

Na esteira dessa “outra coisa”, mesmo reconhecendo a possibilidade de encontrar várias passagens ao redor do desencadeamento de forças audíveis que eclodem a partir de forças não-audíveis por si mesmas, poderíamos considerar que a poética de Serguilha se afeta especialmente por forças da pintura, as quais, a exemplo do que acontece com a atividade musical, pode acontecer com a arte da pintura na sua manifestação poética. Há muitos pintores citados nessa poesia, e eles estão em maior quantidade do que os músicos. Paul Gauguin, Van Gogh, El Greco, Paul Klee, Bosch, Goya, Modigliani, Rubens, Turner, Lucien Freud: a lista é longa e compreende diferentes momentos estéticos. No entanto, dois se destacam, adquirindo status de personagens rítmicas – Jackson Pollock e Francis Bacon. Por uma questão de recorte e de estratégia ensaística, na intenção de manter o diálogo com as opacidades enunciadas por Aristóteles a partir do par grito e voz, selecionamos alguns fragmentos de diferentes volumes das composições de Serguilha para dar visibilidade ao grito na excriptura atingida desde a animalidade.


Falar é morder uma epidemia, na linha dos volumes anteriores, propõe pensar o poema. Na passagem que antecede a referência ao grito anunciado na tela de Bacon, o poema se esculpe como a “própria vida-transgeografada”, reunindo o que excriptor reconhece como “vestígios giratórios dos bichos hipnotizados” (2019, p. 321, grifo nosso). Na sequência, as forças pintadas atingem a mucosa nasal, deslocando-se do olho para o nariz, a fazer dançar desde um grito pintado: “(alcançar os defluxos espiriformes, ENLAÇAR espasmos, delírios e repintar, espargir o grito de Bacon com a hipérbole do crivo da palavra, das danças demoníacas da vida)” (2019, p. 321).

Plantar rosas na barbárie faz referência à pintura de Bacon. Aqui a excripta do grito, que se soma ao gesto da pintura-escrita de forças invisíveis, é deslocado não para o tornar audíveis as forças não-audíveis, mas para uma sugestão que faz da boca, heterogênea à voz e ao som, a via da eclosão do que não ambiciona ser visto ou representado – a via de um fora. No fragmento a seguir, o poema animal silencia o que poderia vir das forças audíveis, o que não implica descartar algum vir à tona das forças não-audíveis (a considerar também composições sinestésicas), mas impulsiona outro despontar: “(sair dos eixos por decifração e jamais começar, jamais terminar (sentir): acontecer entre vitrais de traças ensarilhadas, fugindo a Euclides até ao grito INSONORO na tela de BACON): [...]” (2017b, p. 55). Em Hamartía, como um projeto do excriptor, o grito insonoro de Bacon retorna como força excripta-pintada, suscitando a violência do açoite desde um verbo que sugere uma quase-cor ou a técnica de pintura em que o pincel golpeia o suporte das forças por vir – o verbo verdascar:

as energias murmurativas da potência placentária desviam-se do poder das coesões históricas com novos trajectos sanguíneos: marginações das lacunas cerebrais carregam as batidas das obsidianas para além dos limites: falas interpostas defrontam as crassidades da estranheza onde as soldagens animistas dos cristalinos jamais nos darão a conhecer os seus itinerários porque foram envolvidas pelas vazaduras insanas do mundo: uma cabeça recolhe os conceitos estranhos das fugas na sua própria antecipação: (golfadas e incêndios dentro das geometrias pulmonares fazem das viragens de Hume uma marchetaria da natureza humana entre revivescências espirituais e sensações irrefreáveis: o verdadeiro e o irreal se tornam indiscerníveis ou em profusões de reais-falsadores — Bacon continua a verdascar o rosto e a pintar o grito sem som) (SERGUILHA, 2020b, p. 463)


Em A Actriz, A Actriz, encontramos uma referência às personagens rítmicas, que são evocadas para dar vazão a um corpo libertado, envolvido por um silêncio fraturado (2020, p. 520). Aqui Palco e Actriz formam personagens rítmicas. Diz-se que há uma linguagem a desfazer-se na boca da Actriz. Na sequência, somos levados novamente ao grito insonoro de Bacon:


A ACTRIZ aproxima os ritmos múltiplos do PALCO dos gritos insonoros que espetam os escafandros nos pulmões do mundo, nas geografias nomádicas, nas reentrâncias obscuras do corpo com a sede de expiarem, de se esbulharem e de repulularem entre auspícios inumanos que atraem mas não nomeiam (avocar as coisas que não existem e que não têm nome para combater as pulsões de morte): se a Actriz cria zonas de vozes singulares, se produz tempo, cérebro, eternidade, corpo, espaço por meio da exultação do phaneron-cristalino da plenitude, a política do estranho com uma correnteza de pneumas sinápticos, penetrará o PALCO por meio de animais chamadores de cosmicidades feiticeiras, de multidões incorporais (SERGUILHA, 2020a, p. 541-542, grifos nossos)


O estilo da poesia de Serguilha, trespassado por forças que mobilizam múltiplos corpos, corta geografias estrangeiras, alcança heterogeneidades de superfícies deslizantes, esculpe signos sobre material magmático, forja-se no entrechoque de estranha exuberância temática e dos entretempos em ralentação. Com ritmos diferentes, cuidadosamente trabalhados para cada volume poético – onde coabitam áreas diversas como a petrologia, a fisiologia, a mineralogia, a botânica, a ecologia a arqueologia, a paleontologia, a anatomia, a química, a biologia, a geologia, a matemática, a filosofia, a joalheria, a linguagem poética, além de diferentes signos artísticos – o poeta-escultor encontra na estética barroca elementos para tornar possível sua excriptura-lahar. Em falar é morder uma epidemia, há um fragmento que reúne algumas definições do termo excriptar, carregado de muitos caminhos de leitura, relacionando-o a efeitos das dobras da estética barroca: “(excriptar é destruir imagens, desdobrar, transformar, reinventar, deslocar infralínguas por meio da bruxaria, da magicatura, da contravenção, do movimento que não se movimenta, produzindo sensações sem territórios, colhendo rosáceas na selvageria assintáctica)” (2019, p. 228). Essas dobras requerem uma releitura sob a capa de uma avalanche, palavra-chave do Laharsismo [6], estética que foi criada pelo poeta. Eis um fragmento da escrita-lahar, cuja publicação, no ano de 2014, menciona a necessidade escrever nas “redobras atmosféricas”, o que leva também a antecipar um cuidado com as “vítimas das epidemias”. Selecionamos, entre muitas dobras, uma perspectiva desse texto:


Escrever nas redobras atmosféricas coreografando as transferências dos búfalos sígnicos dentro das tensões aplicadas da floresta-ferroviária que é deserto acústico, formigueiro sonâmbulo onde os corpos ficam fora de si mesmos como dinâmicas de fluidos a laminarem os refluxos da língua que é cavada pelos abismos microscópicos: o poema, o poeta afundam-se nos trilhos envergados por dilatação, nos afastamentos das vagens e nos bustos das imanências que desanuviam as obscuridades, as blasfémias para libertarem o corpo da velocidade dos leitores-écrans que retornam sempre aos batuques das vítimas das epidemias: [...] (SERGUILHA, 2014, p. 112).

Na sequência da definição do gesto de excriptar, localizamos a leitora em contato de resistência mediado pela “petrologia lávica” (2019, p. 229). Estamos diante de um lahar demasiadamente serguilhiano, a queimar, mas é um fogo protetor [7].

um animal-poema exila-se nos creófagos das espirais multilíngues que raptaram uma LEITORA e a recriaram anonimamente por meio de transpiradeiros de bosquejos do insólito, absorvendo os espelhamentos do paradoxal com as batidas das incisões epifânicas e dos ressaltos das musicalidades perfuradoras das volteaduras das palavras:

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Sabemos que a estética barroca compreende o gosto pelas dobras [8]. Reconhecemos inclusive que a definição do barroco encontra imprecisões, como atesta a pesquisa de Octavio Paz, a começar pela amplitude geográfica, estendendo-se, por exemplo, “de Viena a Goa, de Praga a Quito” (2017, p. 75). Em nossa historiografia da literatura brasileira, encontramos o célebre e polêmico descaso do barroco, cuja ausência tocante do volume Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, surge problematizada por Haroldo de Campos, em O sequestro do barroco na Formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos, que questiona o projeto da história retilínea adotado por Candido. Além de retomar a exclusão de Gregório de Matos do sistema literário proposto por Candido, temos acesso, seguindo as fontes das pesquisas daquele período, a alguns aspectos que nos levam a contornos do barroco, de acordo com o estudo de Campos. O poeta ensaísta menciona, a partir de Severo Sarduy, a “superabundância e o desperdício” como contrapontos a uma linguagem destinada à informação ou à comunicação (2011, p. 41). Cita também a pesquisa de Affonso Ávila, que nos põe em contato com o que chama de “vertigem do lúdico” e acrescenta a referência ao estudo de Sor Juana Inés de la Cruz, de Octavio Paz.


Diante dessa complexa e polêmica tradição, situamos a herança barroca do animal-poema proposto por Serguilha. Cabe-nos a pergunta de como pensá-lo a partir dessa herança. Trata-se de desafio que não se esgota na retomada das características já mencionadas, aquelas mais evidentes acerca do barroco, que circulam obviamente pelos mosaicos repletos de dobraduras e plissamentos, reunidos sob marchetaria esculpida muitas vezes na brutalidade das rochas, com banho de magma ou volfrâmio. Precisamos voltar ao passado, ao contexto recuperado por Octavio Paz (2017, p. 67), no qual nos defrontamos, no período da Reforma e Contrarreforma, com diferentes mudanças na áreas social, histórica e da ciência, produzindo o que ele resume por meio de pares antitéticos: “contínua tensão entre corpo e alma, fé e dúvida, sensualidade e consciência da morte, instante e eternidade” (2017, p. 67). Esses aspectos culminam em traços de uma arte que, em virtude de um mundo em desagregação, ele chamará de “violenta e dinâmica”, pautada pelo “claro-escuro”, pelos “contrastes” e pelos “paradoxos” (2017, p. 67). À exceção do claro-escuro, a ser repensado em pesquisa do futuro, essas características se presentificam no animal-poema. Contudo, precisamos nos deslocar para o contexto de nosso poeta e a rede de tensões que permanecem, a despeito das diferenças contextuais, nos mesmos campos de conflito (social, histórico, econômico, religioso), mas que ganham o incremento tecnológico, suscitando dobras mediadas pela virtualidade, pela desaparição e por outras forças que se tornam possíveis, fazendo o pensamento pensar. É preciso reler a dobra-desdobra à luz da velocidade das transformações técnicas e os vetores que as acompanham, de modo a refletir sobre a duração numa temporalidade assombrada pela dromocracia, conforme sugere conceitualmente Paul Virilio, em Guerra e política, para repensarmos os efeitos do estilo barroco sobre o animal-poema – encontro de signos artísticos envolvido simultaneamente com a estética do desaparecimento e com a duração [9].


há uma autonomia infractora nos desvios da LEITORA que perfura o animal-poema com sonoridades de vazios, de silêncios e de distâncias com gradações insaciáveis onde as passagens dos falhanços capturam uma língua ínfera dobrada pela barestasia do improvável: dizem: trajectos impuros a deslaçarem as adjacências das golpeaduras sígnicas com os volteios das membranas por vir: as ampolas do infindável que revelam um poema-animal sobre um instante fúlgido tornam-se a estranheza do vaivém diafragmático na exuberância da LEITORA já-mesclada por demudanças dos esboços de pariduras intrusivas: há recomeços delirantes nas distâncias do animal-poema deglutido a um só-tempo-animista pelas traqueias velozes de uma LEITORA composta pela subtileza das curvaturas dos acasos rizosféricos e pelas alteridades extremas andarilhadas por pontos de vista caóticos que elevam os extravios do animal-poema até ao ritmo dos rastos do intangível e da oscilação nérvea:

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Para voltar a uma das várias dobras dessas notas-dobras-lahars, é preciso retornar à tela de Francis Bacon, reconhecer a sua interferência mediada pela técnica da pintura e se abismar novamente diante do par grito e voz e do questionamento aristotélico. Torna-se necessário atar a perplexidade despertada pelo grito insonoro de Francis Bacon, conforme sugerimos a partir de diversos fragmentos do animal-poema, fazendo uma dobra literária a ser somada com a indicação proustiana outrora mencionada. Em seu estudo sobre o barroco, Deleuze confere à dobra o que chama de “noção mais importante de Mallarmé” (1991, p. 59). E Mallarmé, na leitura do barroco de Octavio Paz, ocupa o espaço fundamental na poesia da segunda metade do século XIX. O enredo da jornada do espírito do poema “Un coup de dés n’abolira le hasard” insere-se num momento da ciência que permite pensar o universo como “infinito” ou “transfinito” (2017, p. 434), seguindo as designações de Paz. Em suas pesquisas sobre o barroco, Paz encontra uma mulher que, distante dos temas da poética do seu século XVII (com Góngora, Quevedo, Calderón), inaugura a frustração na poética da viagem espiritual, que somente terá sucessor na experiência poética de “Um lance de dados”. Sobre o novo espaço que se manifesta pela escrita do poema “Primero sueño”, de sor Juana Inés de la Cruz, cuja faculdade da imaginação vivia sob o domínio das limitações de um universo finito, Paz reflete:


O espaço que sor Juana nos revela não é um objeto de contemplação, mas de conhecimento; não é uma superfície que os corpos percorrem, mas uma abstração que pensamos; não é o mais além celeste ou infernal, mas uma realidade rebelde ao conceito. A alma está sozinha, não diante de Deus, mas diante de um espaço sem nome e sem limite (PAZ, 2017, p. 434).


No enredo de “Primero sueño”, há uma viagem da alma em direção a uma esfera superior, o que a leva a uma experiência de luminosidade insuportável e ao enceguecimento. Trata-se de uma jornada espiritual frustrada que culmina no que Paz perceberá como uma “não visão”, repetida na viagem de Mallarmé e por outros poetas ocidentais. O mais surpreendente, para além da descoberta da escrita de uma poeta religiosa, está, já no século XVII, no abalo do primado da visão: “De um modo ou outro, todos os poetas modernos viveram, reviveram e recriaram a dupla negação de Primero sueño: o silêncio dos espaços e a visão da não visão” (2017, p. 434). Nota-se que essa cisão no âmbito da visão é reconhecida por Paz como “grave” e “radical” (2017, p. 435). Não temos dúvida que de sor Juana antecipa poeticamente a différance ao descrever a sua experiência de desencanto por meio de uma viagem espiritual que termina sem revelação. Impressionante também é a outra negação evidenciada por Paz, a saber, “o silêncio dos espaços”. A alternativa de herança nietzschiana contra os imperativos visuais, recuperada por Derrida no ensaio “Timpanizar – a filosofia”, encontra na obliquidade do ouvido uma espécie de caminho alternativo contra os desmandos logocêntricos desencadeados pela abrangência e pretensão totalizante do sentido da visão e seus desdobramentos espirituais, teológicos, os quais, na história do pensamento, se ligam aos ontológicos. No entanto, em sor Juana, o ouvido, e talvez até mesmo a escuta, se descrevem silenciados em sua viagem espiritual. Em “Timpanizar – a filosofia”, Derrida volta à inquietação de Zaratustra, cuja filosofia do martelo poderia se dar desde um arrebentar com instrumentos de percussão os próprios ouvidos, para deslocar o primado visual para o ouvido, ampliando-o a uma escuta e a uma forma de pensar diferente da tradição. Na síntese de Derrida, temos, a partir de Zaratustra, o ensinamento de um “ouvir com os olhos” (1991, p. 13). Sor Juana nos expõe a uma dupla negação, da visão e da escuta, e podemos pensar que ela antecipa um desafio que circula tanto na ficção quanto na filosofia. A experiência da poeta retorna, séculos mais tarde, como tema de análise de Derrida nesse ensaio que discute questões metafísicas e suas imbricações com a linguagem poética. O filósofo observa o que chama de “cumplicidade circular das metáforas do olho e do ouvido” (1991, p. 13). Se a viagem espiritual fracassada de sor Juana denuncia a antecipação dessa cumplicidade, é sinal que alguma coisa do barroco, em suas manifestações poéticas, poderá nos ajudar a romper com as limitações dessa cumplicidade circular.


Encontramos em Santa Teresa D’Ávila, por coincidência outra mulher religiosa, um caminho de escrita que antecipa uma resposta, ou pelo menos uma alternativa no interior da estética barroca, a abalar a cumplicidade metafórica em torno do olho e do ouvido. Teresa D’Ávila, que, sabemos ter inspirado Bernini, contribuiu, segundo a pesquisa monumental e híbrida de Julia Kristeva em Thérèse mon amour (2008, p. 37), para o pensamento da mônada infinita e do cálculo infinitesimal, de Leibniz. Para alcançar minimamente as suas visões, que não podem ser reduzidas à vista, e no entanto escondem um estranho parentesco com a captura de uma “imagem” fugidia, contornamos metáforas do gosto, aquelas que, na nossa hipótese, produzem a ruptura da cumplicidade metafórica ao redor dos sentidos da visão e da audição. No Livro da vida, Teresa escreve sua “visão” que se apresenta “sem imagem nem forma de palavras” (2010, p. 243):


[...] como ia dizendo, nós não agimos nem fazemos nada: tudo parece obra do Senhor. É como quando já está posto o alimento no estômago sem comê-lo, nem sabemos nós como se pôs ali, mas sabe-se bem que está. Ainda que nesse caso não se saiba que alimento é nem quem o pôs. Aqui sim, sabe-se quem pôs, mas como se pôs não sei, pois nem se vê nem se ouve nem jamais me tinha a desejá-lo nem tinha vindo a mim a notícia de que isso podia acontecer (D’Ávila, 2010, p. 244).


Na rota dessas observações sobre o gosto, a pesquisa de Kristeva (2008, p. 103), entrecortada por um romance filosófico que compreende outros gêneros, observa que Teresa segue um comportamento anoréxico [10], deixando em suspensão o cuidado da própria vida, os seus “desejos elementares”, para potencializar suas experiências de oração. Kristeva lê no gesto teresiano de amor carnal com Cristo o que chama de um “fantasma megalômano”, além de uma “escandalosa apropriação do divino” (2008, p. 81), que é, diga-se de passagem, realizada de modo oral, pois retorna, coletivamente, no sacramento da Eucaristia através da bebida e da comida. Kristeva evidencia, nos Pensamentos sobre o amor de Deus, as reflexões persistentes de Teresa a respeito do “amor oral dos católicos por Senhor” – um amor lido pela teórica como gourmand, com “suculentas imagens do Cântico dos Cantos” (2008, p. 220).


Por meio da obra da carmelita, Kristeva oferece generosamente a resposta que parece ser uma saída para a circularidade cúmplice das metáforas do olho e do ouvido. A teórica mostra que as visões da santa não se manifestam pela vista (2008, p. 110), mas antes encontram um caminho que passa inicialmente pelo tato, pelo gosto e pela escuta. Distante de um acesso às imagens, ou mesmo do que pode ser considerado “imaginação” e as interferências cognitivas do campo do olhar, de início se forma um bloco de sensações próximas da boca e da pele.


Dessa experiência sensível, o corpo da religiosa transformado em escrita encontra no revestimento da boca e da pele, sendo, portanto, “essencialmente gustativo e tátil” (2008, p. 129), os meios para dar vazão à fluidez do elemento água em sua arte da escrita, a produzir efeitos que, na iluminadora crítica de Kristeva, faz vibrar tudo que é por ela afetado.


dizem: desmaios espalhados pela dilatação do corpo da LEITORA com choques miméticos a insuflarem anamorfoses do animal-poema pleno de bisturis e de esgotamentos abióticos: infinidade de propagações vertiginosas por dentro das geologias opióides do poema, ou serão esquírolas infiltradas na irrupção das atiradeiras genómicas criadas pelo estômago babelesco da LEITORA

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O animal-poema de Serguilha, apesar de não apresentar essa conexão teresiana com o elemento água, ainda que encontremos plasma e outros fluidos, enreda os leitores numa experiência vertiginosa, de intensa plasticidade em suas composições inusitadas – mosaicos de múltiplos materiais, peças delicadamente entalhadas a partir da escolha cuidadosa de rochas, repteis, joias e vermes, por exemplo. Trabalho de pensamento-lahar, no qual o excriptor, a exemplo da viagem espiritual realizada por sor Juana de Inés de la Cruz, no século XVII, e por Mallarmé, no século XIX, faz tremer a linguagem com a sugestão do topos da arte como vertigem diante do infinito. Podemos reconhecer, como nos conduz Octavio Paz em seu estudo sobre o barroco (2017, p. 460), que há outras viagens ao estilo das propostas por Inés de la Cruz Mallarmé. Poderíamos buscar elementos de contato com o animal poema em Cimetière Marin, de Paul Valéry e, na tradição hispânica, em Muerte sin fin, de José Gorostiza ou em Altazor, de Vicente Huidobro.

Não nos esqueçamos que a A Actriz, mais do que fazer uma referência a Altazor, de Huidobro, espalha uma atmosfera de superação estelar num universo desencantado. “O PALCO chama o intocável, o invisível, não é reflexo, nem imagem, mas o grito-pixel que risca novos territórios com o seu próprio desaparecimento (ou serão imagens mágicas do ALTAZOR)” (2020a, p. 548). Há música em A Actrizjazz cósmico e ventania folk – mas há também uma boca insonora pintada por Bacon, que não nos deixa esquecer o périplo de sofrimento e cura desse animal-poema. A linguagem, na boca da Actriz, se desfaz, como são perdidos os contornos do rosto, a incluir a boca desmanchada em telas de Bacon: “Construir matérias vivas que vazarão e fissurarão os rostos que tentam prevalecer no mundo da servidão: o atractor estranho da agoridade (a linguagem desfaz-se dentro da boca da ACTRIZ e as falas entrecruzam-se para escarificarem a língua e redobrar o PALCO ao infinito)” (SERGUILHA, 2020, p. 541). Como personagem rítmica, não podemos limitá-la a um sujeito histórico, à consciência empírica ou à biografia. Estamos diante de uma personagem rítmica que ousa romper com visibilidade contida na presença da fala: “acontecer nas mandíbulas baptismais de quem faz fugir o animal dentro da própria língua [...]” (2020, p. 19).

Em Plantar rosas na barbárie, o que está infinitamente a ser dobrado e desdobrado é a boca. Reparem no desaparecimento do par cúmplice olho-orelha no que se desenha sob o nome de “excriptas do mundo”. E aqui a boca escreve-se “boca-da-palavra”:

as incomensuráveis excriptas do mundo, porque a visão-sonora e viajante desaparecerá nos tremores do rosto ao tangenciar a crueldade da extrema claridade entre máquinas assombrosas de cristais que empurram as cordas bambas das catedrais nocturnas (casulos em chamas transmutam a sazonação da boca-da-palavra que mistura os ritmos metamórficos da língua nas vizindades indiscerníveis da fala onde o silêncio das facas da excepção ascende às épocas frias da mineração silábica sem amestramentos, nem oficinas (SERGUILHA, 2017b, p. 78, grifos nossos).


Hamartía e sua floresta sígnica, Flona, segue barrocamente a perseguir dobras no interior de dobras, volteaduras sem finalidade, sem utilidade. A experiência do mundo-Flona encontra na boca, ainda que distante da captura dos sentidos, quase à semelhança da Khora platônica referida no diálogo Timeu, o receptáculo para a sua revolução poética-ecológica:


HAMARTÍA busca uma boca imperceptível para gritar e mergulha em tudo o que acontece nas dobras, nos traços, nas rasuras das sensações, sente o insólito das intensidades que alongam os sentidos e se descerra por fora, por dentro e por meio da geografia do pensamento, do desejo em revolta sem função utilitária (SERGUILHA, 2020b, p. 16-17).


Hamartía faz pensar o mistério. A poética de Serguilha encontra a busca etimológica realizada por Kristeva ao estudar a obra de Teresa D’Ávila. O termo mistério associa-se ao estar fechado. Os exemplos de Kristeva (2008, p. 51), que via a santa mais barroca do que católica, liga essa condição do “mistério” ao encerrar-se dos lábios, dos olhos e, pasmem, da úlcera.


Quem fala tem o mundo hesitante, os rasgos metamórficos na boca sem retardamentos, tem a força matérica a baloiçar nos lábios do animal, sim, a coreografia da matéria entranha-se nos labros e nutre-se de pontes de velocidades ilimitadas que nos arremessam por meio de múltiplas lentidões para o interior hesitante das palavras (SERGUILHA, 2020b, p. 100).


Há mundos nessas dobras, que não iniciam no rosto, ou na própria boca-corpo, mas nos levam à perdição com seus desdobramentos insanos. Da boca aos lábios, dos lábios aos labros, que constituem tanto o lábio superior dos mamíferos quanto parte da boca de insetos, – sentimos os abismos nos desdobramentos kafkianos do animal-poema. Retornemos à úlcera porque a úlcera contém mistério. Não são poucas as ulcerações e patologias do sistema digestivo que se manifestam nas dobras do longo conjunto do animal-poema. Interessante encontrar uma alusão à Macabéa a andarilhar pelo Pampa, região ao sul do Brasil. Essa personagem rítmica erra ao lado de Clarice Lispector em composição que carrega o it no seu título: “Plano movimento___8_____ (it lahar pampeano kodâmico)”. Percebam a geografia em movimento do mangue-pampa contornada pelo-it e pelo charme feminino fronteiriço da ritmicidade de uma mulher vinda de outras geografias – Kodama –, mas com Clarice e também com Macabéa: “Será uma dor sem itinerários na ulceração da fome?” (2021) Essa nordestina, como uma dobra da fome brasileira a ser chamada à cena em momento anterior ao contexto pandêmico, retorna discretamente numa dessas dobras infinitas de Falar é morder uma epidemia, em “êxtase” (2019, p. 217) a se somar à Teresa D’Ávila, para nos falar, ao lado daquele chamado umas linhas acima, Lévinas, esse outro estrangeiro, de uma boca, do apetite, de uma dobra interna num barroco que se criou desde as apoplexias do mangue, das correntezas da pororoca, mas com azulejarias nos entretempos, para nos dizer que os plissamentos de mármore branco de Teresa D’Ávila por Bernini, a compor mosaicos entre larvas, vermes, rendas, rochas, tapeçarias, joias, e peças quase imperceptíveis, são possíveis de eclodir como forças tornadas visíveis-audíveis. Em Falar é morder, essas forças são tornadas material-forças pele-palato pelas mãos do poeta, coabitando com as forças diaspóricas africanas a atravessar uma mulher desde uma linha que se faz no nordeste brasileiro para o infinito: “acontecer nas simultaneidades profusas do saber a-gramatical-sacro-profanizado-mina-nagô-adjeje” (2019, p. 138). O animal-poema lahar transgeográfico acentua-se no encontro do escultor barroco que deu vida à santa Teresa D’Ávila com as forças dançantes do frevo, desdobrando-se n’A Actriz: “captar a insânia do infinito vasculhador de fendas esfíngicas nas esculturas de BERNINI, nos arrastamentos guerreiros do FREVO, do MARACATU)” (2020, p. 77). Para sentir esse barroco, é preciso durar com as linhas de Falar é morder, que dizem assim: “O eco-gritante... escavação do deserto-bucal (a língua atinge o ponto mais alto adentro da própria pele)” (2019, p. 264).


uma LEITORA bate as castanholas de sangue nas terminações nérveas do poema-animal e através de demudamentos intraduzíveis bifurca a transudação do magma pulmonar para incrustar uma obsidiana nas rugosidades das ofídias: uma LEITORA torna-se uma trapezista de vidraças com furúnculos-de-vespeiros que resvalam continuamente nas golfadas das gestações falciformes, dos sugadouros hipovolêmicos e das protuberâncias freáticas do poema para esponjar a fagocitose das atmosferas microscópicas-estocásticas carregadas de verbos anapésticos e… de vigílias de uma catástrofe por acontecer (concretização psicodélica das heranças antropofágicas-hiperbarrocas com virilhas glicolíticas da LEITORA): desdobramentos propiciadores de interacções catalíticas seduzirão uma traqueia-babélica-de-composições-adivinhatórias que impulsiona um animal-poema contra os balanços da língua simultaneamente sexângula, mutante, ulcerada, criptográfica, parasítica, pituitária e tacteada intervaladamente pelas parataxes aracnídeas do mundo:

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Que barroco desponta da experimentação poética de Luís Serguilha? Não podemos escapar da leitura dessa poética, generosamente sintetizada nas suas potencialidades por Fernando Segolin, que nos oferece não atalhos, mas antes (des)caminhos, trilhas, cujas heranças são constelações:


Poesia que temos de chamar de labiríntica, dado o movimento espiralado e coleante de suas linhas/versos sem começo nem fim; poesia que conjuga falas e silêncios, o branco da página e o negro dos sinais gráficos, a continuidade e a descontinuidade de seus versos ou re-versos longos ou curtos, sem contar jamais com as marcações limitadoras dos sinais de pontuação; poesia que renova e transgride as transgressões normativizadas da arte poética tradicional, ao libertar-se do ritmo, da rima, da metrificação regular, dos paramorfismos convencionais, das gradações crescentes e decrescentes, dos clímax e anticlímax; é uma poesia que se quer desafogada, descontraída, aberta, abissal, constelacional, além de enigmática, obscura, sibilina, vaga, etérea, repleta de lusco-fuscos cesárioverdianos, simbolistas, decadentistas, pessoano-sensacionistas, malarmaicos, galáctico-haroldianos, ultraístas, cubistas, futuristas, surrealistas etc (SEGOLIN, 2014, p. 64).


Não podemos nos esquecer do que retorna especialmente nos ensaios de Jane Tutikian [11] e Maria Luiza Berwanger [12]: dobras de Fernando Pessoa. Não podemos nos esquecer que o tema do barroco no animal-poema, por ter sido uma questão referida pela crítica serguilhiana, segue como tema a ser aprofundado pela historiografia literária. A pesquisa de Fernando de Castro Branco menciona outro aspecto que retorna e serve de inspiração para os estudos de História da literatura, a saber, o poema contínuo, que se expressa por meio de variadas correntes estéticas, entre elas o Neo-Barroco e o Neo-Gótico [13] (2018). No prefácio de Falar é morder uma epidemia, Ana Lúcia de Oliveira retorna às dobras barrocas do estudo deleuziano, além de referir a leitura de Sarduy sobre Haroldo de Campos, para buscar ressonâncias no animal-poema. Uma ressalva importante e um caminho ramificado eclodem desse prefácio: “Em suas múltiplas dobras e desdobramentos, o texto serguilhiano constrói um diálogo com o barroco, não o barroco histórico, seiscentista, vincado pela Contrarreforma, mas com um conceito estético extemporâneo que é mencionado amiúde ao logo do texto” (2019, p. 11). Na sequência, Oliveira volta à indicação das dobras deleuzianas, indicando-nos uma entrada rizomática no animal-poema. Trata-se, portanto, de um tema aberto, dependente da recriação do excripto-leitor.

Não podemos nos esquecer do que foi anunciado por Luís Adriano Carlos (2015, p. 54), já no prefácio de Kalahari, ao retomar as duas tradições da poética ocidental (a clássica e a barroca) a respeito da poética de Serguilha. O poeta participa da segunda, que, na síntese do crítico, encontra forças conceituais como “pluralidade, desproporção, obscuridade, desarmonia, dissonância, razão do excesso, inverosímil, expressividade” (2015, p. 54), as quais devem ser lidas à luz do fantasma de Joyce (2015, p. 55) e também do que ele reconhece sob o revelador sintagma “floração luxuriante” (2015, p. 54) para fundamentar a originalidade do poeta:


A poética de Serguilha inscreve-se na segunda tradição, mas ocupando as suas margens, porque obedece ao princípio estrutural da acumulação e da amálgama, gerador de uma floração luxuriante de sensações e imagens sôfregas, nutridas por um discurso anacolútico e espasmódico sem igual em língua portuguesa (CARLOS, 2015, p. 54).

É preciso voltar à tradição para compreender a dimensão criativa dessa poética “sem igual”. O ensaio “A prosódia da prosa”, de Carlos, nos expõe singularmente a diferentes heranças estéticas e a novas aprendizagens sígnicas, conceituais e críticas sobre as construções poéticas de Luís Serguilha.

A pensar sobre a sugestão teórica dessas florações luxuriantes, considerando a sua heterogeneidade, ao lado de considerações conceituais atuais que eclodem nas pesquisas de Kristeva a partir de transbordâncias inflorescentes, compondo uma experiência-escrita repleta dessa proliferação lahar, em Thérèse mon amour e nas suas vibrações fluidas do verbo encarnado dessa carmelita, além de muitas referências esparsas e estudos sobre os desdobramentos da pintura-escrita-floral de Georgia O’Keeffe [14], encontramos algumas heranças esquecidas de volteaduras possíveis, às vezes soterradas, para fazer outras dobras nesse barroco que também parece ser florestal-lahar, com bordaduras de carne escorregadia – arabescos sustentados por cicatrizes da própria crueldade.

Não podemos nos esquecer que, no último poema publicado pelo excriptor – “Plano movimento___8_____ (it lahar pampeano kodâmico)” –, encontramos o it lahar a costurar durações desse ensaio-mosaico. Invade-nos a homenagem à Água viva, de Clarice Lispector, misturando-se à estética do laharsismo e ao refinamento da violência grácil contida na tentativa sempre fracassada de captura do instante-já. Heterogêneo aos debates direcionados a temas como gênero e sexualidade, algo dessa última composição do poeta acentua o feminino do futuro, a ser infinitamente escrito, como foi antecipado no ensaio de Luís Adriano Carlos, que nos expõe ao desafio de pensar sobre as “florações luxuriantes”. Carlos nos situa na tradição filosófica e literária, sintetiza generosamente diferentes séculos de arte e pensamento, e encontra aproximações literárias e psicanalíticas ao chamar à cena a lalangue, de Lacan, referindo a tradução do termo por lalíngua, realizada por Haroldo de Campos (2015, p. 56). Não podemos deixar de lado o que acena para um diálogo a partir do desdobramento dessa fonte retomada pelo crítico e a sua relação com o barroco, algo a ser pensado na poética de Serguilha. Subjacente à referência lacaniana, reencontraremos o barroco de Santa Teresa e uma obra que o psicanalista dedica à carmelita: O seminário: mais, ainda. Seria interessante contrastá-la com a pesquisa de Julia Kristeva sobre o barroco, desenvolvida em Thérèse mon amour. Desenha-se, nessas diferentes dobras de pensamento, alguma coisa que é da linguagem poética e apresenta no barroco o impulso para a construção de seus infrassignificados. De um lado, a lalangue, de Lacan, e, de outro, o semiotique, de Kristeva. Nos interstícios, temos a herança barroca. A despeito dessas diferenças e fricções conceituais e de seus possíveis efeitos e dobraduras, trata-se de, reproduzindo as palavras de Carlos, repensar a aspiração de Diderot diante da poesia: ‘“a poesia quer qualquer coisa de enorme, bárbaro e selvagem’” (2015, p. 54).


E sobretudo não podemos nos esquecer o que escreveu Luísa Monteiro a respeito da poética de Serguilha. Ao compará-lo a Novalis e a sua “perseguição simbólica” à Flor Azul, encontramos algo da selvageria poética nesse excriptor de dobras-lahars: “um jardineiro de rosas no inferno, um jardineiro órfão no Inferno do seu próprio fogo” (2017).


Um barroco está sendo excripto ao longo do imenso, exuberante e interminável animal-poema serguilhiano, que seguirá pelas dobras da crítica, com a excripta pintada do grito de Francis Bacon, com o retorno aristotélico do par grito e voz, com o deslocamento da primazia da fala-presença para a boca-pele, com as heranças de outras excripturas (Góngora, Quevedo, Lezama Lima, Huidobro, Juana Inés de la Cruz, Teresa D’Ávila), com as dobras, os arabescos, voltas e (re)voltas dos entretempos e seus holomovimentos, com as gestualidades acósmicas de Nijinski a curvar as vértebras, com a leitura-duração contaminada por Bergson, com as cine-telas-poéticas dos tempos esculpidos por Tarkovski, com as vernações-lahar imprevisíveis do por vir.


Nas peças desse ínfimo mosaico ao estilo barroco-lahar-floral, lançamos algo que não nos permite mais o contato com o eu-lírico, que nunca recebeu essa designação pela crítica de Serguilha, ou mesmo a de um sujeito-lahar. A avalanche do animal-poema segue em busca de dobras esculpidas pelas forças-lahar em floração – a atravessar excriptor e excripto-leitores em mar intempestivo e efervescente de Turner, cabeças escovadas de Bacon e danças acósmicas de Pollock.

as capturas rebarbativas-espontâneas-cinestésicas estão aí: nos lisossomas gangrenados, nos capilares lacerados e nos prolapsos cefálicos do animal-poema que se detalha vivamente por dentro de excretores de hematomas onde despontam as gusas da visão aformal da LEITORA com tremendas animadversões polirrítmicas, rasgadoras de um rosto de certezas e de crenças.


Plano movimento___8_____ (it lahar pampeano kodâmico) LS


Notas


[1] Nas palavras de Melo e Castro sobre o livro de estreia de Serguilha: “A sua poesia interessa-me, não só porque é uma poesia diferente mas porque, não acreditando na lógica do sentido, propõe textualmente uma não-lógica dos sentidos. É uma poesia que desafia e seduz, pelo jogo sem rede em que lança o leitor, propondo-lhe um experimentalismo semântico que se realiza no texto através da utilização das palavras como objetos manipulados, muito para além dos seus significados dicionáricos” (2015, p. 119).

[2] Sobre o aprofundamento dessas questões, sugerimos o ensaio de Contador Borges, no qual ele sustenta, antes de nós, e com base em Barthes. a relação de gozo da experiência de leitura: “os livros de L.S só poderiam ser lidos como textos de gozo (jouissance), justamente aqueles que desestabilizam o leitor em sua relação com a cultura ou com aquilo que responde por ela convencionalmente e de acordo com o saber instituído” (2020).

[3]“Tem uma multiplicidade de faces e abriga muitas ideias, permanecendo inescrutável em suas mais recônditas profundezas... E formado por processos orgânicos, como um cristal... Na verdade, é uma mônada. e, como tal, essencialmente diferente de alegorias complexas e redutíveis, parábolas e símiles... Os símbolos são inexprimíveis e inexplicáveis, e, diante da totalidade do seu significado secreto, somos impotentes" (Tarkovski, 1998, p. 53).

[4] “Neste filme, o que pretendi foi demarcar aquele traço essencialmente humano que não pode ser anulado ou destruído, que se forma como um cristal no espírito de cada um de nós e constitui o seu maior valor. E muito embora, a partir de um ponto de vista exterior, a viagem pareça terminar em fracasso, na verdade cada um dos protagonistas adquire algo de inestimável valor: a fé. Cada um torna-se consciente do que é mais importante que tudo. E esse elemento está vivo em cada indivíduo” (Tarkovski, 1998, p. 240).

[5] Conforme Derrida: “É a diferença entre o animal e o homem: os dois, segundo Aristóteles, podem emitir sons indivisíveis, mas apenas o homem pode fazer uma letra: ‘“A letra é um som indivisível, não qualquer um mas aquele que pela sua natureza entra na formação de um som composto; porque os animais também emitem sons indivisíveis mas não dou a nenhum deles o nome de letra’ (1456 b)” (1991, p. 277).

[6] Sobre o Laharsismo, indicamos, para os iniciantes, a nota n. 5 da pesquisa de Daniel Gomes, publicada no posfácio de Kalahari e também na Revista Acrobata: “Interessante fixar atenção na palavra “Kalahari” – nome do imenso deserto africano – advindo do termo “Kgalagadi” (a grande sede) e, dentro deste nome próprio notar que, conscientemente ou não seja a escolha deste título para seu livro, está oculta a palavra “lahar”, em: Ka “lahar” i (grifo meu)” (2020). Em reflexão-lahar sobre paisagem, Maria Luiza Berwanger da Silva propõe uma leitura que contribui para os movimentos transgeográficos que atravessam a poética-avalanche de Serguilha e também estabelece conexões com Fernando Pessoa: “Sob justamente a figura dos Lahars, compreende-se se a função do poeta-crítico e do crítico-poeta articulada pela liberalidade da experiência como estratégia de diluição e, pois, de superação do desassossego pessoano cedendo espaço ao trabalho fertilizador da dança com vistas a recartografar as Paisagens extraviadas” (2014, p. 8). Em reflexões que chamam a atenção para a tradição literária, Luísa Monteiro nos oferece muitas dobras para pensar o lahar em seu ensaio “Da desertificação das lobas”: “corrente estética que pretende lutar contra a extinção da literatura, a qual, em muitos pontos da Europa se tornou, como diz o autor, um “produto comercial que se vende como pipoca”. Uma luta contra a extinção, mas pela destruição, pois é isso o que uma avalanche provoca: um novo deserto. Isto faz-nos pensar na destruição como possibilidade de uma nova experiência, tal como almejou Walter Benjamin; só que Benjamim desejou uma relação diferenciada com a Filosofia e Serguilha pretende-o com a Literatura; um, com uma aparente orientação sistemática nessa procura e outro sem qualquer eco-sistema: diz-nos: “a-loba-é-a-força-do-olhar-sem-ecossistema” (2017). [7] Observem a indicação do fechamento dos olhos para suportar a avalanche de sua excripta, segundo o poeta, em “Excriptura acósmica laharsista": “Quando EXCRIPTAMOS vemos de olhos fechados o deslocamento fugidio, somos contaminados pelo devir do sensível, ensejamos o irreal-do-real do intensivo, aproximamos instantes desvinculados e a memória-futuração sofre hiatos-repetições, transes e renascimentos como contínuos fluxos espiriformes, sempre acrescidos de ritmicidades cósmicas, dissipando e transformando possíveis excriptas que geram tempo inesperado espiritualmente (Serguilha, 2017a, p. 103).

[8] Consultamos a pesquisa de Deleuze, intitulada A dobra: Leibniz e o barroco, na qual a dobra é logo na abertura associada ao barroco: “Ele não inventou essa coisa: há todas as dobras vindas do Oriente, dobras gregas, romanas, românicas, góticas, clássicas... Mas ele curva e recurva as dobras, leva-as ao infinito, dobra sobre dobra, dobra conforme dobra. O traço do barroco é dobra que vai ao infinito” (Deleuze, 1991, p. 13).

[9] Fica-nos a pergunta de como durar poeticamente diante das reflexões de Ana Maria Haddad, que ultrapassam a resenha do livro A Actriz, contribuindo para a compreensão da sintaxe e do estilo do poeta: “A linguagem do romance-poema, objetivamente, escamoteia os períodos compostos por subordinação. Na construção dos textos deste livro as orações, frases e períodos são plenamente justapostos. As orações coordenadas assindéticas (sem conjunções) predominam. Reinam nos planos sintáticos e demais planos quase inexprimíveis em seus abismos que se estruturam, na verdade, em densidades e espessuras (aqui vai, em parte, a possível balança do qualitativo). Serguilha grita furiosamente: habitamos, para o bem e para o mal, uma cosmologia em que o todo existe. Mas em que medida? Mesmo se considerarmos as determinações necessárias que colocam algumas invariáveis no caos, existem outros caminhos que recusamos porque nosso corpo, infelizmente, ainda é um corpo, em todos os sentidos, domesticado” (2021, p. 4). Fica-nos o desafio de durar diante de uma trans-poética, conforme o estudo sobre Kalahari, de Daniel Gomes, que nos ajuda a compreender o poema contínuo para além da composição desértica desse livro: “Kalahari trabalha na densidade da exuberância do poético. Uma densidade onde o poético, como alucinação, como mar, como margem, como mirada, já não é o que parece ser em seu lugar, é trans-poético” (2020).

[10] No sétimo capítulo do Livro da vida, confirmamos a relação dos distúrbios alimentares, além de outras doenças, que irão acompanhar a vida e a escrita de santa Teresa: “(...) ainda que tivesse sarado daquela tão grave, sempre, até agora, as tive e tenho bem grandes. Mesmo que, de uns tempos para cá, não com tanta gravidade. Mas não me deixam, doenças de muitos tipos. Em especial tive durante vinte anos vômitos pela manhã, que até depois do meio-dia me acontecia não poder fazer o desjejum, algumas vezes até mais tarde. Depois, aqui, como comungo com mais frequência, é à noite, antes de dormir, com muito mais desgosto, que eu tenho que causá-los com plumas ou outras coisas. Porque, se deixo, é muito maior o mal que sinto. E quase nunca estou, a meu parecer, sem muitas dores, e às vezes bem graves, especialmente no coração. Ainda que o mal que me acometia muito continuamente seja agora só muito de vez em quando. Da paralisia grave e das doenças de febre que costumava ter muitas vezes, me acho boa há oito anos. Esses males me incomodam já tão pouco que muitas vezes me alegram, parecendo-me que em algo se serve o Senhor (D’Ávila, 2010, p. 78).

[11] No legado de Pessoa, Tutikian situa a poética-lahar no sensacionismo do nosso século: “Em Serguilha, a decomposição das sensações emerge em colagens de imagens poéticas fortes e o jogo dos instrumentos repica na demonstração de uma viagem desconhecida, trazendo sentimentos e conceitos de natureza complexa, porque o contrário seria traição à viagem empreendida. Ela, a viagem, não se submete à sequência tradicional do verso, ao eixo de acontecimentos de causa-efeito, à passagem de um equilíbrio a um outro equilíbrio, à, enfim, ação canonizada. Ela é ruptura, ponte do equilíbrio ao desequilíbrio, onde tudo é imagem, movimento, som, cor, inquietude” (Tutikian, 2014, p. 53).

[12] Ver nota n. 6 sobre a autora.

[13] Reproduzo a leitura de Castro Branco, que reconhece no barroco uma das formas estéticas adotadas pelo poeta: “Expressionismo, Futurismo, Surrealismo, Cubismo, Simultaneismo, Neo-Barroco, Neo-Gótico, parecem ser matrizes, e matizes, plausíveis para compor esta arquitectura verbal, formas estéticas de que o poeta se socorre para dar corpo ao seu poema gigantesco e proteiforme, subordinado a uma acção criativa que balança entre o épico e o agónico, entre o excesso e a perda” (Branco, 2018).

[14] Sobre o tema, consultamos o ensaio “La forme inévitable” (2005, p. 481-500). Para uma abordagem entre ficção e literatura, indicamos o romance policial filosófico intitulado Possessions, de Kristeva (1996).




Referências


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Luciana Abreu Jardim



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