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Uma artista segredada: Maria Médicis, mulher, mãe e contadora no século XX


MARIA MÉDICIS, S/TÍTULO / PÍNTURA


Maria Médicis nasceu em outubro de 1930 em Caiana, Estado de Minas Gerais, à época um lugarejo habitado principalmente por imigrantes portugueses, espanhóis e alemães, a maioria lavradores. Viveu a maior parte de sua existência em Governador Valadares, também em MG. Faleceu em 2017.

Atendendo a solicitação de Sphera, a poeta France Gripp, filha de Médicis, organizou o material iconográfico que aqui disponibilizamos a título de estímulo ao interesse pela descoberta de uma artista segredada, caso paradigmático de tantas vidas mulheres num mundo capitalista sempre regido pelo patriarcalismo tóxico.

Todas as fotos são de France, guardiã dos guardados artísticos de sua mãe.



MARIA MÉDICIS, CACTOS / PINTURA



Uma mulher multitalentosa e pioneira


FRANCE GRIPP



Aos quinze anos, ela desenhou o autorretrato. Os traços são finos, delicados e detalhistas. O olhar se pergunta, serenamente, sobre o que há no mundo para ser vivido. Nunca perdeu essa curiosidade, nem jamais teve medo.

Nessa época, morava em Vitória, no Espírito Santo, e estudava no Colégio do Carmo. O talento artístico despontava e foi percebido por professores que a indicaram para a Escola de Belas Artes no Rio de Janeiro. Uma bolsa de custeio fazia parte da indicação.

Em 1945, a capital do Brasil fervilhava com as novidades de pós-guerra e o cenário artístico brasileiro era fortemente marcado pelo modernismo.

O convite recebido foi uma chama que ardeu com ela durante meses, mas os pais não permitiram que a jovenzinha saísse da companhia deles. Nem tinham condições de complementar as despesas da moradia fora de casa. Ela seguiu em frente.

Era premente, no entanto, a necessidade de trabalho remunerado. Então, ela reuniu pincéis e tintas e se ofereceu a desenhar e pintar letreiros em vidro e madeira, para fachadas de "pharmacias" e casas de armarinho, segundo o estilo da época.



MARIA MÉDICIS, S/ TITULO / PINTURA


A arte pulsava nela. Por isso, entre os quinze e vinte anos (1945-50), Maria Médicis pintou barcos, pescadores, peixes, coqueiros, o céu ao entardecer e amanhecer – o mar foi sempre sua grande atração. Pintou também recantos da cidade onde morava – casario, gente apanhando água na bica, carregando latas. Cenas que foram retratadas, na maioria das vezes, sobre papelão comum, e que ficaram como testemunho de seu talento em expressar percepções sobre contextos urbanos e paisagens naturais.

Maria Médicis, entretanto, optou por estudar contabilidade, área de conhecimento aparentemente oposta às artes visuais, e diplomou-se na Escola Técnica de Comércio de Vitória em 1949.



MARIA MÉDICIS / FOTO


O ano era 1951.  Ela assumiu a profissão e se orgulhava do pioneirismo: “Modéstia à parte, dei minha contribuição. Fui a primeira mulher a instalar e dirigir por conta própria o escritório Mercúrio Contabilidade. Lutando contra todos os preconceitos e a falta total de informações”.

A bicicleta era seu meio de condução e acesso aos comerciantes a quem solicitava serviços, de porta em porta, na pequena cidade interiorana de Governador Valadares.

Ao ser criticada pela postura ousada, nem olhou para ver quem era. E advertiu o noivo de que não abdicaria do trabalho e da independência, condição para o casamento. Casaram-se. E assim foi.

A pulsação criativa que se expressava em desenho e pintura, com o tempo ampliou-se para outros exercícios da inteligência, da persistência e da emoção.

A percepção espacial se expandiu e se desenvolveu de maneira autodidata, e ela adquiriu conhecimentos de arquitetura e engenharia. Desenhou projetos para casas e apartamentos, e sempre foi a principal administradora das obras em construção. Os trabalhadores a chamavam de “dona Maria pedreira”.



MARIA MÉDICIS, S/ TITULO / PINTURA


Passou a participar de iniciativas que visavam melhoria de certas situações sociais, num tempo ainda desprovido de muitas políticas públicas. Assim, auxiliou um padre a arrecadar fundos para uma escola de apoio a crianças com deficiência– e a pôs de pé por completo. Durante vinte anos supervisionou sua administração financeira. Enquanto isso, participava ativamente de ações do Rotary Club, e vindo a ser primeira presidenta.

O escritório de contabilidade, a essa altura, era um trabalho rotineiro partilhado com o marido, ambos parte do suporte para a expansão empreendedora feminina.



MARIA MÉDICIS, S/ TITULO / PINTURA



Nunca abandonou os pincéis e tintas. O desejo de pintar sempre vinha, ainda que houvesse intervalos para a criação - por exemplo, quando ocupada em criar seis filhos.

“Esse ano ainda não consegui pegar no pincel”. Escreveu, certa vez, em carta à filha. Depois, apanhava o cavalete e as telas, agora de material de boa qualidade e compradas em grande quantidade. E seguiu vida afora pintando, projetando e “inventando moda”.







FRANCE GRIPP / FOTO: DIVULGAÇÃO


France Gripp é poeta e ficcionista nascida em 1953 na cidade de Governador Valadares, Estado de Minas Gerais. Formou-se em Letras pela Universidade Vale do Rio Doce (UNIVALE) e fez Mestrado em Estudos Literários na UFMG, onde realizou pesquisa sobre Ana Cristina César. Lecionou na PUC Minas em Belo Horizonte, onde reside. Estreou com os versos de Eu que me destilo (1994) e publicou, na sequência, os infantis Vinte Lições (Dimensão, 1998) e Trililili Paralelá (2011). Voltou à poesia com Coração Incendiário (Pragmatha, 2014) e, em seguida, publicou o infanto-juvenil As aventuras de Bera Titan (Outubro Edições, 2020) e a ficção O rei dos imóveis (Caravana, 2021). Letrista, tem parceria com Basti de Mattos no CD "Luanaluz" (2002).

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