O espinho no olho
“A terceira morte de Ricardo Gimenes”, intrigante conto com ares de reportagem policial que integra O iludido (Páginas Editora, 2018), coletânea de narrativas de Anelito de Oliveira, apresenta-nos o protagonista escritor Camilo Franco. Defensor da democracia e avesso à mercantilização da literatura, o personagem oferece-nos sua visão sobre o seu ofício: “A literatura dói como um espinho no olho”. Esse texto é bastante emblemático, muito nos diz sobre todo o livro. Escritas há mais de vinte anos, só em 2018 essas histórias vieram a público, pois o autor, a exemplo de Franco (ou seria o contrário?), não se rendeu aos apelos editoriais e presenteou-nos com esses textos em um momento bastante oportuno, em que a democracia, a arte e os direitos sociais carecem de quem os defenda.
A despeito do perceptível trabalho estético, O Iludido é, antes de tudo, um manifesto corajoso e necessário nesses tempos de superficialidade, culto à ignorância e ameaça às pequenas conquistas que o país alcançou nas últimas décadas. Embora fluidas e agradáveis, as histórias não visam ao deleite; é uma leitura dolorosa, que nos leva a refletir sobre importantes questões humanas e sociais; não é livro para relaxar o leitor, mas para incomodá-lo; tirá-lo do seu lugar de conforto; um verdadeiro espinho no olho.
Todas os textos são, de alguma forma, perpassados pela dor, mas não são dores físicas, conforme nos adverte o primeiro conto, “Vestígios, vertigens”: “Aquela não era dor de dente, de barriga, de cabeça, de ouvido, de, aquela dor era em, in.”. As histórias falam da dor de existir em um mundo tão hostil, desigual e desumano, são dores que vêm de dentro, que refletem as angústias e tristezas dos homens, especialmente daqueles que vivem em situação de subalternidade, como o pobre, o negro, o velho, a mulher, o louco, enfim, todos aqueles que estão à margem da existência, cujos dramas são ignorados pela sociedade.
O livro é composto por treze narrativas curtas que não se deixam aprisionar pelas categorizações de gênero. Oscilando entre o conto, a crônica ou a reportagem, o autor compõe cada texto com a forma e a linguagem que seu conteúdo exige, como na história “Informações para uma narrativa policial”, cujo formato nos remete a uma reportagem, ou no texto “Noveleta (quase) radiofônica”, dividido em treze partes que nos fazem lembrar os capítulos de uma novela, ou ainda na crônica “O pedestre”, em que a ausência de sinais de pontuação nos transportam para um cenário dominado pela velocidade dos carros na avenida e pela tensão dos espectadores que, como a um espetáculo artístico, assistem à última performance daquele jovem cujo corpo se deixa estraçalhar pelos automóveis que correm pela cidade.
Enfim, o primeiro livro de narrativas de Anelito de Oliveira apresenta-nos temas e formas bastante variados, mas não se pode negar que as histórias são alinhavadas pela poesia, que nos toca ao tratar da pobreza, da loucura, da morte, da velhice, da solidão, da humanidade.
Apesar de tristes e dramáticas, as narrativas nos são apresentadas de forma sensível e delicada. É impossível não se emocionar, por exemplo, com o conto “A casa azul”, em que o narrador rememora sua infância pobre e triste em uma rua também pobre e triste; a possibilidade de mudar aquela realidade estava apenas nos sonhos do garoto, que devido à sua condição social já tinha seu futuro traçado: “Nosso destino era virar homens tristes como foi o de nossos irmãos mais velhos e dos conhecidos de nossos irmãos mais velhos.” O narrador e seus irmãos não podiam sequer sonhar com uma realidade diferente, deveriam apenas obedecer às ordens dos pais e “andar olhando só para o chão”.
Um pouco de cor e de alegria, entretanto, invade a rua triste com a chegada dos novos vizinhos, uma família de São Paulo cujos filhos “branquinhos” andavam sempre bem vestidos e alegres. Com sua casa grande, azul, de rico, os novos moradores atraem a curiosidade e a desconfiança das pessoas. As crianças da rua ficam contentes, pois os moradoras da casa azul sempre riam, conversavam, faziam festa, promoviam eventos e atraíam gente importante da cidade para aquela rua outrora triste e vazia. Uma sucessão de tragédias, porém, põe fim à alegria da casa azul e de toda a rua. E o desfecho surpreendente nos faz perceber que durante todo o texto o narrador nos dera pistas de que tudo poderia não ter passado de um sonho, revelando-nos que o desejo e a possibilidade de alegria poderiam ser irreais, fantasiosos, para aquela gente.
O mesmo acontece no conto “O iludido”, em que o pobre garoto Germano perde o seu cobiçado emprego na loja de bicicletas por causa das ideias do seu irmão, Pedroso: “Vamos buscar a felicidade. [...] Achei uma mina de ouro [...] Vamos construir uma casa grande, no melhor bairro da cidade, lá no Castelo do Sol [...] Vamos ter carro e, quem sabe, até avião.” Logo no início do texto, o narrador nos alerta que não devemos esperar tudo de suas palavras, pois sua memória “parece estar se diluindo”; em alguns trechos ele diz que estava se sentido como um bêbado, “parecendo mesmo é que estava delirando”; e encerra a narrativa dizendo: “não sei o que aconteceu, nem se”; fazendo jus ao título do conto, uma vez que se deixou iludir, ludibriar-se pela própria memória, que não pode reconstituir com fidelidade os fatos da infância pobre e triste, com suas promessas de melhoria de vida.
Todos os textos abordam questões dolorosas da vida humana, mas o autor não expõe com objetividade esses problemas, muitas vezes apenas os sugere, mergulhando o leitor numa atmosfera de sonho, de dúvida, de delírio ou loucura. Por várias vezes precisamos nos perguntar se aquilo realmente aconteceu, pois o autor não nos dá respostas prontas, as coisas não são ditas por completo. Por isso fechamos o livro e as histórias continuam vivas dentro da gente, forçando-nos a pensar, a refletir sobre suas similaridades com o mundo real.
Um dos textos mais impactantes do livro é “Três embrulhos”, que se passa dentro de um ônibus que levava as pessoas para casa depois de um dia de trabalho na capital mineira. Era mês de junho, a noite chegava e o frio era muito forte. Três pessoas sem agasalho vinham encolhidas em cadeiras do canto do ônibus, escolhiam bem o corpo e esticavam as blusas, escondendo as cabeças e tentando se livrar do frio. O único sinal de humanidade que eles transmitiam era o tremor dos corpos e uma tosse interminável, que se intensificava à medida que a viagem avançava. As janelas estavam abertas e ninguém se preocupava em fechá-las para amenizar o sofrimento dos três; a tosse não incomodava ninguém, todos estavam acostumados e pareciam estar gostando da “Sinfonia de Inverno dos Três Tossistas”. Ninguém se solidarizou com a situação daquelas pessoas, que na narrativa não têm sexo, nem nome, nem humanidade. São apenas três coisas, três embrulhos que passariam a noite no ônibus por não terem onde morar.
Os assuntos abordados nos textos são duros, completamente conectados à vida real, mas é com ironia e fino humor que o autor os trata. Certamente essa característica, somada à estratégia de não dizer todas as coisas, é que torna leve e prazerosa a leitura de temas tão difíceis.
Para além da qualidade estética, entretanto, podemos dizer que O Iludido possui um forte aspecto ético, pois é um livro comprometido com sua época, é um manifesto contra as desigualdades sociais, contra a superficialidade e hipocrisia das relações, contra a mercantilização da arte e contra a insensibilidade humana. Após duas décadas engavetadas e prestes a completar seu terceiro aniversário de publicação, é perfeitamente compreensível por que só em 2018 Anelito de Oliveira tenha permitido que essas páginas chegassem até nós: O Iludido é ato político, leitura absolutamente necessária nestes tempos tão complicados.
Viviana Pereira
Comments