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A roseira cultural de Eleonora

Atualizado: 3 de jan. de 2023

Anelito de Oliveira entrevista Eleonora Santa Rosa

A cultura, como já era esperado, teve especial atenção nos discursos de posse pronunciados por Luís Inácio Lula da Silva no primeiro dia deste 2023. O fundamento dessa atenção tem uma natureza contraditória: o desgoverno do inominável investiu brutalmente na destruição do sistema público de gestão da cultura; a cultura, representada por praticantes de artes diversas, desempenhou papel notável no enfrentamento do fascismo bolsonarista e nos ajudou, especialmente, a continuar vivos nos momentos mais terríveis da Pandemia do Coronavírus. Mais uma vez na história, a cultura revelou seu papel fundamental na resistência à opressão, ao sofrimento, à política da morte, e afirmou seu lugar central na própria sustentabilidade das vidas humanas e não humanas na terra devastada.


Entre as inúmeras vozes que se levantaram contra a destruição do sistema de gestão pública da cultura no país nos últimos quatro anos, uma comporta um “tonus” muito distinto: a de Eleonora Santa Rosa. Seus inúmeros artigos publicados no Portal Dom Total e disseminados pelas redes sociais constituem um dos documentos mais relevantes sobre a gestão da cultura num tempo de barbárie em que pudemos, inclusive, ver mais claramente quem são os verdadeiros bárbaros que corroem o projeto civilizatório brasileiro, suas caras brancas de ódio. Esses textos estão agora reunidos em três livros lançados por Santa Rosa: Interstício (2017) Cultura! (2021) e Soliloquio (2021). São, em sua maioria, textos breves, urgentes, produzidos no calor de uma hora ainda mais conflituosa em razão do seu grau elevado de obscurantismo, de amnésia social generalizada, de aberrações cognitivas.

A entrevista que Sphera Habitações do Encantado aqui publica, realizada via e-mail no apagar das luzes do fatídico 22, tem motivações e finalidades diversas. A principal motivação é o papel que a leitura de poesia, que atravessa os artigos, tem na relação sensível, crítica e responsável com a cultura, no modo como a autora lida com a gestão cultural. A finalidade principal é desvelar para as leitoras e leitores deste periódico a trajetória notável de Eleonora Santa Rosa, Jornalista, Gestora Cultural, Empreendedora. Ela esteve à frente da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais no início deste século e, mais recentemente, do Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR). Sua contribuição à cultura no país é enorme, como se verá. A rebeldia de sua trilogia “tebana” – afinal, o Brasil foi reduzido a uma espécie de Tebas com a peste bolsonarista, não é? - , sua fúria de mulher medeica, passante do “agon”, tem muita razão de ser e estar!


Trabalho de Traplev



Sphera Habitações do Encantado (SPH) Vamos começar falando sobre sua relação com a poesia? Como começou? Quais seus poetas preferidos? Sabemos, claro, de sua relação com a Poesia de Vanguarda. Ainda é possível pensar em Poesia de Vanguarda?


Eleonora Santa Rosa (ESR) Minha relação com a poesia propriamente dita começou por volta dos 16/17 anos, comprando algumas traduções de Maiakóvski, Rimbaud e Baudelaire, de tradutores da velha guarda. Lia também um volume de poemas selecionados da biblioteca da casa de meus pais, se assim posso me referir aos livros de minha mãe, em meio a enciclopédias, atlas, anuários e outras obras de referência histórica. Aliás, coletânea muito bem selecionada com poemas de Bandeira, Drummond, Murilo Mendes, Cecilia Meireles, Mário de Andrade e tantos outros autores de relevo, mas ainda de recorte mais tradicional por assim dizer.


Esse gosto foi se refinando e se aprofundando a partir da convivência com meu então namorado, depois marido, Carlos Ávila, poeta e jornalista, leitor arguto e sensível, nascido e formado no melhor berço poético possível. Tínhamos enorme sintonia e interesses comuns ao longo de nossos 31 anos de convívio. Por razões naturais de amor e afinidades eletivas, adentrei, com gosto e foco, o universo da poesia brasileira da segunda metade do século XX, particularmente conheci a obra daqueles que seriam meus grandes afetos poéticos: Affonso Ávila (pai de Carlinhos), Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Assim, a partir dos 19 anos, de 1981 em diante, mergulhei na obra de diversos poetas, como Laís Corrêa de Araújo (mãe de Carlinhos), José Lino Grünewald, José Paulo Paes, Ronaldo Azeredo, Ferreira Gullar, Edgard Braga, Pedro Xisto, Sebastião Nunes, Paulo Leminski, Sebastião Uchoa Leite, Max Martins, Régis Bonvicino, Antonio Risério, Age de Carvalho, Nelson Ascher, Júlio Castanõn Guimarães, Cláudio Nunes de Moraes, José Américo Miranda, Guilherme Mansur, Arnaldo Antunes, Antonio Cícero, afora a poesia de Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Mário Faustino, Augusto dos Anjos, Jorge de Lima, Luís Aranha, dentre outros bissextos ou não. Graças também ao extraordinário trabalho de tradução dos irmãos Campos, de Boris Schnaiderman e de Zé Lino, apenas para citar os mais significativos para mim, pude conhecer ou mesmo ampliar a leitura de obras da poesia russa, provençal, metafísica, alemã, americana, italiana, francesa, dentre outras. Abriu-se para mim a porta do reino da poesia, da qual permaneço súdita fiel.


Não sei se aplica, hoje, a definição de Poesia de Vanguarda. Creio que há aquela comprometida com a alta voltagem criativa, com o domínio da fatura poética, de cunho instigante, provocativo, aquela que move e comove, que incomoda e acolhe, aquela que “experencia”, que rompe os cânones, que te leva a outros territórios e conexões, que desafina o coro dos contentes, que te provoca e desalinha, aquela que rompe com o fácil, com a mesmice e a diluição. A mais “inútil” das artes, por isso mesmo, para mim, essencial.



SPH O “solar dos Ávila” representou uma certa tradição de Casas Culturais em Minas, não? A “Casa de Arinos”, a “Casa de Alphonsus”, a “Casa dos Vivacqua”. Como vê essa relação Casa e Cultura? Quais suas recordações Culturais da “Casa dos Ávila”?


ESR Não sei se dessa forma, mas, fato é que a casa da Rua Cristina, o ‘Solar dos Ávila”, como bem disse Haroldo de Campos, era um reduto da poesia de excelência, da crítica de alto nível, do ambiente de erudição sem afetação, de muito humor e sarcasmo, de fina ironia e de muita informação, de inteligência e instigação intelectual. Por excelência, uma casa de cultura, arte e criatividade. Convivi ali, amiúde, por mais de vinte anos e depois, de modo menos intenso, por mais dez. Foi fundamental na minha formação pessoal, profissional, afetiva, familiar. Tenho as melhores recordações, de momentos singulares, excepcionais, intensos e de muito humor e sabedoria.



SPH A Senhora é um exemplo notável de leitora assídua de poesia. O leitor de literatura em geral, e de poesia em especial, é cada vez mais raro. Com as redes sociais, quase todo mundo se acha Autor, Editor etc. O que pensa sobre isso?


ESR Infelizmente, seu comentário procede e muito. Aliás, não há quase leitores de poesia e quando os há, normalmente, preferem livros confessionais, melosos, de rima pobre e estrutura frouxa. E, assim como, de resto, em outras áreas da criação , há enorme profusão de equivocados, pernósticos, pretensiosos, epígonos e outras subespécies chatíssimas e paupérrimas em termos de língua, linguagem e poesia.



SPH A leitura é, sem dúvida, um dos pontos mais críticos da questão da Cultura no país, um grande desafio, não? Quais os obstáculos a uma política da leitura no país?


ESR Desafio imenso num país com seríssimos problemas de evasão escolar, de pobreza e miséria acachapantes, com falta de investimento robusto e estruturado na Educação, com o massacre salarial remuneratório de professores, do analfabetismo funcional, da politicagem e compadrio - vide governo que ora se encerra em nível federal -, com décadas de equívocos e ausência de políticas públicas articuladas entre os entes federativos, enfim, uma lástima agravada pela ausência do domínio do software básico - saber ler e escrever, como dizia Décio Pignatari.



SPH Com a pergunta anterior, resvalamos, claro, para o seu lugar de Gestora Cultural. Poderia relatar, em poucas linhas, sua atuação nesse campo?


ESR Inicio minha trajetória em 1983 a partir de um estágio na Fundação João Pinheiro, órgão de muito prestígio e respeitabilidade em Minas Gerais, ligado ao Sistema Estadual de Planejamento, na Assessoria Técnica da Presidência (ATP), dirigida então pelo poeta Affonso Ávila.


Foi essencial para minha formação trabalhar, ainda muito jovem, numa diretoria que lidava com desafios e complexidades no campo cultural e de estudos urbanos. Ademais, a Fundação tinha algumas peculiaridades, o Estado bancava o salário dos funcionários e a infraestrutura, mas as diretorias, que eram várias, tinham de buscar recursos financeiros e, desse modo, firmavam convênios, contratos, termos de cooperação para viabilizar seus projetos. Nesse sentido, foi uma universidade para mim, já que desde muito cedo tive de aprender não só a elaborar projetos, mas a colocá-los de pé, preparar orçamentos, trabalhar com equipes interdisciplinares, prospectar recursos financeiros, desenvolver pesquisas com cronogramas e prazos ajustados. Aprendi inúmeras lições e ações típicas de planejamento, de análise e mensuração de resultados. Havia também uma excelente biblioteca, verba para aquisição de bibliografias atualizadas e tempo formal, apropriado, dedicado a estudos e leituras. Algo realmente único.


Em 1989, fui convidada pela então secretária municipal de Cultura de BH, a queridíssima Berenice Menegale (pianista mineira nascida em1934), para assumir a Diretoria de Planejamento e Coordenação Cultural da então recém-criada Pasta. Uma experiência e tanto. Em primeiro lugar, pela honra de trabalhar com uma pessoa do porte e da trajetória da Berenice. Em segundo, pela oportunidade de estruturar, de modo profissional, uma área de planejamento e projetos especiais, com muitos desafios, o mais complexo deles reciclar e capacitar servidores do quadro funcional da PBH que trabalhavam com o cadastramento de expositores da Feira de Artesanato da Praça da Liberdade, transferida posteriormente para a Avenida Afonso Pena.


Foram três anos intensíssimos na municipalidade, onde você via os resultados imediatos da gestão e mais um outro ano, já na administração do PT, com o prefeito Patrus Ananias à frente, aprofundando as conquistas e o trabalho exemplar, referencial, desenvolvido por Berenice e equipe. Em 1993, redigi a minuta do anteprojeto da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, que, posteriormente, converteu-se em instrumento fundamental para o florescimento cultural da cidade. Importante relembrar, ainda, dois projetos sob a minha batuta nessa época e que marcaram BH: a celebração crítica dos 10 anos da demolição do Cine Metrópole – realizamos pesquisa, editamos um volume fartamente ilustrado sobre o triste episódio, produzimos filme e uma exposição no Cine Belas Artes, foi um estrondoso sucesso, com o livro esgotado na noite de lançamento.


O outro, em agosto de 93, foi o projeto comemorativo dos 30 Anos da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, sobre o qual falaremos mais adiante. Ainda nesse mesmo ano, dirigi por cinco meses, interinamente, o Museu de Arte da Pampulha, onde fizemos exposições importantes e significativas, como a dedicada à obra de Lygia Clark, que naqueles idos estava fora de circulação e à margem do cenário expositivo nacional.


Posteriormente, retornei à FJP, uma vez que pertencia ao corpo técnico da instituição. Logo depois, em abril de 1994, fui convidada a assumir a direção do então Centro de Estudos Históricos e Culturais da Fundação João Pinheiro (novo nome da minha antiga diretoria quando entrei na FJP, como estagiária, em 1983).


Foram quatro anos de muito trabalho, negociação de projetos, viagens a Brasília em função de pesquisas sob encomenda do Ministério da Cultura, reestruturação técnica e funcional do Centro, realização de dois empreendimentos editoriais de grande envergadura – as coleções Mineiriana e Centenário, a realização de projetos voltados ao centenário de BH, o assessoramento a órgãos do Estado, enfim, uma usina de produção num ritmo frenético, extenuante, que acabou me acarretando problemas de saúde.


Em 1998, assumi, a convite de Fernando Pinheiro, então presidente do Palácio das Artes, a Assessoria de Captação e Marketing da Fundação Clóvis Salgado, com “status” de Diretoria. Era uma situação de muita aflição e apreensão em função do incêndio que havia destruído o grande teatro, o maior de Minas Gerais. Paralelamente, o secretário de Estado da Cultura na ocasião, o deputado e historiador Amílcar Martins, me incumbiu de uma missão complexa: a formulação do anteprojeto da Lei Estadual de Incentivo à Cultura e de toda a sua regulamentação. Missão dada, missão cumprida! Esta legislação teve e tem papel fundamental na viabilização da produção cultural em Minas Gerais desde a sua implementação.


A partir de 2000, me licenciei do Estado, partindo para iniciativa privada, turbinando meu escritório, recém-fundado, o Santa Rosa Bureau Cultural, um ateliê de projetos de referência, de desenvolvimento de inciativas sob encomenda, de produção diferenciada e de trabalhos singulares, ousados e fora do padrão tradicional de escritórios congêneres. Foram muitas atividades e ações de relevo e magnitude com projetos premiados no campo da Educação Patrimonial, de pesquisa, de inventário de bens culturais, de publicações e documentários, de produção de eventos, de criação de museus, como, por exemplo, o Museu de Artes e Ofícios, na Praça da Estação, cujo planejamento, articulação institucional, captação de recursos, coordenação executiva de implantação, gestão de equipe, agenciamento, produção e assessoria técnica estratégica, de 2000 a 2004, coube ao Santa Rosa Bureau Cultural. Aliás, quem quiser conhecer o trabalho do SRBC pode acessar o site Santa Rosa Bureau Cultural.


Em 2003, por intermédio do Jota D´ângelo, ator, teatrólogo, figura reconhecida e respeitada no universo cultural mineiro, houve o convite, em nome do Governo, para que assumisse a função de Secretária de adjunta de Cultura de Minas Gerais, como reconhecimento à minha trajetória profissional, ao trabalho que desenvolvia no campo cultural, naquela altura, há quase vinte anos, sem qualquer vinculação partidária ou algo do gênero. Um convite técnico. Declinei, não só por estar comprometida com a finalização da primeira fase do Museu de Artes e Ofícios, inaugurado em dezembro daquele ano, como também por outros afazeres do Bureau; afora o fato, dele, D´ângelo, não saber, naquele momento, quem seria o secretário e os principais ocupantes dos cargos do Sistema de Cultura. Hoje me pergunto se tivesse aceitado de pronto o convite, se teria sido Secretária titular da Pasta dois anos depois.



SPH Da sua trajetória na Gestão Cultural, gostaria que nos falasse, de modo específico, do seu trabalho à frente da Coleção Mineiriana na Fundação João Pinheiro.


ESR Rapidamente, para não cansar o leitor, quando retornei à FJP, em 1994, logo depois assumi a direção do Centro de Estudos Históricos e Culturais – CEHC. Encontrei uma diretoria desarticulada, desprestigiada, com vários problemas funcionais e executivos, de descumprimento de prazos e compromissos. Dentre as várias propostas paralisadas, estava a Coleção Mineiriana, dedicada ao resgate e publicação de textos, ensaios e obras referenciais da história de Minas Gerais, idealizada, inicialmente, pelo professor Júlio Barbosa. A situação estava caótica: havia contratos assinados e atrasados com especialistas do porte dos historiadores Francisco Iglésias (1923/1999), Maria Efigênia Lage de Rezende, Laura de Mello e Souza e Carla Anastasia, para citar alguns. As minhas primeiras medidas foram resgatar os contratos, recontactar os especialistas, estruturar cronogramas de entrega e de produção editorial, buscar recursos financeiros, enfim, destravar o processo, sobretudo no sentido de assegurar a elaboração dos ensaios introdutórios dos cinco primeiros volumes propostos. Outro grave problema que impactou também a situação foi a morte precoce do professor Carlos Baesse, que havia sido contratado pelo meu antecessor no CEHC para traduzir o que viria a ser uma das obras mais interessantes da primeira fase da Coleção, o livro do engenheiro inglês James Wells – Explorando e viajando três mil milhasatravés do Brasil – do Rio de Janeiro ao Maranhão, composto por dois volumes. Convidei Myriam Ávila (tradutora e professorada UFMG) para assumir a tradução, tarefa desincumbida com excelência, agilidade e extrema competência.

Enfim, colocar a coleção de pé demandou uma trabalheira diuturna e dedicação absoluta. Em dezembro de 1994, portanto, oito meses depois de ter assumido o CEHC, lancei os cinco primeiros volumes, um sucesso editorial tremendo, tendo como fiel escudeira uma Roseli de Aguiar, que desempenhou a função de produtora editorial. Posteriormente, fui convidada a permanecer como diretora do CEHC na nova gestão da da FJP, tendo atuado por mais três anos, sem trégua ou descanso, realizando ainda outra coleção editorial, também muito exitosa, voltada à celebração do centenário da capital mineira. Composta por 11 títulos, a Coleção Centenário alcançou enorme repercussão crítica e de venda, com seus volumes esgotados.


Foram ao todo mais de trinta obras. Reproduzo abaixo os títulos que lancei como responsável pela coordenação e edição das duas coleções:


Coleção Mineiriana/FJP

• A Província Brasileira de Minas Gerais.

• Barroco Mineiro - Glossário de Arquitetura e Ornamentação.

• Belo Horizonte. Memória histórica e descritiva. História antiga e história média.

• Brasil, Novo Mundo.

• Breve Descrição Geográfica, Física e Política da Capitania de Minas Gerais.

• Códice Costa Matoso.

• Discurso Histórico e Político sobre a Sublevação que nas Minas Houve no Ano de 1720.

• Efemérides Mineiras - 1664-1897.

• Explorando e Viajando Três Mil Milhas através do Brasil.

• Geografia Histórica da Capitania de Minas Gerais.

• Instrução para o Governo da Capitania de Minas Gerais.

• Lembranças de uma Vida Feliz.

• Memória sobre a Capitania das Minas Gerais.

• Minas Gerais - Monumentos históricos e artísticos.

• O Ouro em Minas Gerais.

• Resgate Bibliográfico de Minas Gerais.

• Seis Semanas nas Minas de Ouro do Brasil.

• Tratado de Geografia Descritiva Especial da Província de Minas Gerais.

• Visitas Pastorais.



Coleção Centenário/FJP

• Belo Horizonte e o Comércio - 100 anos de história.

• Belo Horizonte: bilhete postal.

• Engenheiro Aarão Reis - o progresso como missão.

• Itinerário da Imprensa de Belo Horizonte. 1895-1954.

• Notas Cronológicas de Belo Horizonte.

• Omnibus - uma história dos transportes coletivos em Belo Horizonte.

• Salão Vivacqua - lembrar para lembrar.

• Saneamento Básico em Belo Horizonte: trajetória em 100 anos - Os serviços de água e esgoto.

• Sedução do Horizonte

• Um século de histórias das artes plásticas em Belo Horizonte.

• Fascículos Belo Horizonte e o Comércio: 100 anos de história.

• Fascículos Saneamento Básico em Belo Horizonte: Trajetória em 100 anos. Os serviços de água e esgoto.



SPH Ainda como parte da sua relação com a Gestão Cultural em Minas Gerais, a Senhora organizou, em 1993, a Comemoração dos 30 Anos da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, evento organizado por Affonso Ávila em 1963. Como foi?


ESR Foi incrível, inesquecível. Na qualidade de diretora de Planejamento e Coordenação Cultural da Secretaria de Cultura de BH, era responsável também pelos projetos especiais, estratégicos, que não se encaixavam na rotina da diretoria de ação cultural da instituição. Numa conversa com o Carlinhos (Ávila), a partir de uma sugestão dele, pensamos em algo que pudesse marcar a celebração dessa data. Fizemos a quatro mãos a estrutura dessa programação e depois convidei o Ricardo Aleixo, poeta que trabalhava à época na SMC, para colaborar com a elaboração de um texto sobre o evento. A partir da sinalização positiva do gabinete da SMC, convidei os principais envolvidos com o evento de 63, o próprio Affonso, Laís Corrêa de Araújo (única mulher participante da Semana), Augusto e o Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Benedito Nunes e Luís Costa Lima. Para uma leitura contemporânea da Semana e mediação dos debates, participaram o Carlinhos, Wander Mello Miranda, Antônio Sérgio Bueno e José Maria Cançado. A grande surpresa, a cereja do bolo da programação, que contou ainda com uma belíssima exposição dos poemas-cartazes no Centro Cultural da UFMG, foi o espetáculo OUVER, dirigido pelo Walter Silveira, com a participação de Arnaldo Antunes, de Augusto, Haroldo, Décio, Carlinhos, Cid Campos, Alberto Marsicano, Lívio Tragtenberg e Marcelo Brissac, dentre outros. O espetáculo foi no Teatro Alterosa, recém-inaugurado e equipado com os melhores recursos técnicos da cidade. Foi uma noite gloriosa, com uma homenagem-surpresa a Affonso Ávila, plateia lotada e animadíssima. Eu diria que foi um dos mais importantes eventos acontecidos em BH. Antológico, de grande impacto, com performances poéticas inesquecíveis!



SPH Como um certo ápice da sua atuação na Gestão Cultural, a Senhora chegou a Secretária de Estado da Cultura de Minas Gerais. Como foi essa experiência? Quais os maiores avanços?


ESR Em fins de 2004, fui convidada a assumir a Secretaria de Estado da Cultura, missão que muito me honrou e que aceitei a partir de algumas premissas: liberdade para compor a equipe, a começar pelo meu secretário-adjunto e os presidentes de fundações, a ampliação da base orçamentária da SEC, a reestruturação do Sistema de Cultura, a realização de concursos e adoção de uma gestão profissionalizada.


O trabalho desenvolvido à frente da SEC daria um tratado e tanto, pois foi minha maior prova de fôlego e de resistência. Alguns legados da minha gestão presentes até os dias de hoje são a criação e implantação da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, a criação e implantação do Fundo Estadual de Cultura, a criação do Conselho Estadual do Patrimônio Cultural de MG (CONEP), a proposição e concepção do Memorial Minas Gerais, a efetivação do Circuito Cultural da Praça da Liberdade, o projeto de construção do Museu da Cachaça em Salinas, a criação do Prêmio Governo de Minas de Literatura, a reforma/construção da sede da Fundação de Artes de Ouro Preto (FAOP), a criação do Centro de Artesanato de Minas Gerais, projeto de Janete Costa, a meu convite, a restauração completa da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de de Chapada do Norte, demanda da comunidade havia mais de 30 anos, dentre inúmeros outros programas, ações e publicações.


Para minha tristeza, não sobreviveram projetos estratégicos, ousados, que propus e implantei, como o Plug Minas (primeira fase), no qual contei com a consultoria dos extraordinários dois irmãos Sílvio e Luciano Meira, assim como os programas específicos de fomento, por meio de editais, para as áreas de teatro, circo e música. Trabalhei firmemente na SEC para a interiorização de suas ações, promovi uma profunda reestruturação da lei estadual de incentivo à Cultura (que havia redigido em 1998), implantei o sistema operacional de Cultura com a integração de todos os órgãos que compunham a Pasta, reestruturei o trabalho do Arquivo Público Mineiro (APM), retomando, inclusive, a publicação da tradicional revista do APM, interrompida desde os anos 1990, assim como viabilizei a realização de concursos para o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA), para o APM, a FAOP e a Biblioteca Pública. Outro ponto de destaque foi a retomada do Suplemento Literário de Minas Gerais.


Um dos maiores desafios que encontrei foi soerguer a Rádio Inconfidência e a Rede Minas de Televisão, que se encontravam à míngua e totalmente desestruturados. Investi fortemente em capacitação de recursos humanos, em treinamentos e na formação técnica de servidores e gestores. Criamos ainda mais de 130 bibliotecas, com o apoio do MinC, e profissionalizamos todo o processo de análise e acompanhamento de projetos. Ademais, como mencionei no início desta resposta, lutei desde o início pela ampliação da base orçamentária direta da Pasta, o que, de fato, ocorreu ano a ano da minha gestão, robustecida também pelas verbas operadas por intermédio de incentivos fiscais das estatais para a área da Cultura, com a decisão compartilhada com a SEC, tendo como lastro as políticas públicas estabelecidas.


De fevereiro de 2005 a agosto de 2008, por três anos e meio, ocorreu uma revolução sem precedentes no “modus operandi” da Secretaria, uma trabalheira sem fim, mas que muito me gratificou, em que pesem todas as vicissitudes posteriores. Não tenho a menor dúvida de que o êxito desse trabalho só foi possível pela experiência e pelo conhecimento adquiridos na Fundação João Pinheiro e na Secretaria Municipal de Cultura de BH, bem como pela montagem de uma equipe técnica de primeira linha, com liberdade e autonomia de atuação.



SPH As leis de incentivo à cultura são um dos temas mais polêmicos desse setor, a começar pela Rouanet. Como a Senhora, que é uma das referências nessa questão, vê essas leis?


ESR Importa dizer que essas leis, cada uma à sua medida, nasceram como instrumentos de financiamento e fomento à produção e circulação cultural e não para se transformarem no único meio de atuação do poder público nesse campo. Como responsável pelos anteprojetos das leis de incentivo municipal de BH e estadual de MG, sabia que era fundamental a existência desses mecanismos como parte de um programa de fomento e que não operassem com a dedução integral dos incentivos. Sempre defendi que houvesse, em cada um desses dispositivos, a obrigatoriedade de contrapartida efetiva por parte do patrocinador, além da constituição de fundo, com recursos orçamentários, para dirimir os efeitos perversos advindos da concentração dos benefícios fiscais. Esta, por exemplo, é uma das mais graves consequências da Lei Rouanet.

Ocorre que muitos efeitos negativos surgiram – desde a retirada paulatina dos investimentos diretos da União/Estados e Municípios, via subvenções, convênios e outras formas de repasse, até a transformação dos órgãos de cultura em meros gerentes dos processos atinentes às leis, esvaziados de seu papel e de suas funções constitucionais. Para piorar o cenário, ocorreu uma concentração desmedida das operações por meio de incentivos no eixo-Rio-SP, situação agravada pela letargia e opacidade do Fundo Nacional de Cultura e pela visão mercantilista da cultura em detrimento de suas obrigações e responsabilidades públicas.


Não é possível manter esse cenário indefinidamente, tendo-se em vista as distorções, as falências dessa modelagem, as crescentes exclusões e outros aspectos discriminatórios não menos relevantes. Portanto, regras de transição precisam ser criadas para redução do grau de dependência desses instrumentos, para adoção de um robusto sistema público orçamentário de cultura, para ampliação e diversificação dos mecanismos de financiamento, para limitação do poder das empresas na seleção de patrocínio de projetos que fiquem circunscritos à promoção de sua imagem, criando um equilíbrio entre esse tipo de investimento e aquele necessário em projetos de amplo interesse público. Ou seja, em síntese, rever, refletir e propor modelos estruturadores, menos viciados e mais equilibrados de financiamento da infraestrutura cultural, de acesso aos bens culturais, de incentivo à experimentação, de proteção ao patrimônio material e imaterial, de formação de novos públicos, de estímulo à leitura, de realização de estudos setoriais e da cadeia produtiva, de fomento à produção artística nas suas diversas formas de manifestação e de consumo cultural, em fina sintonia e articulação com as politicas públicas vigentes no setor.



SPH Vamos agora aos seus livros autorais de recente aparição? Os três estão fundamentados em sua experiência na Gestão Cultural. Quais os pontos fulcrais dessa experiência, a seu ver?


ESR A crença no poder e na importância da cultura, da arte, do território da livre criação, da experimentação, da ruptura com o arcaico, com o conservador, com o que acomoda, mediocriza, embrutece e emburrece. A crença de que é preciso profissionalizar, cada vez mais, a gestão na administração pública da Cultura. A crença de que a economia do futuro já passa agora, inexoravelmente, pela Cultura e pela Economia Criativa. A crença de que os museus hoje ocupam lugar central na discussão sobre Cultura e Identidade. A crença de que a cultura inclui, transforma as pessoas, as cidades, o país.

A cultura gera identidade, gera senso de pertencimento, de coesão, de civilização. Cultura é fundamental, é sinal de civilização, é o nosso legado. Se quisermos ser uma Nação, isso está profundamente conectado com a questão cultural. A nossa marca, o nosso patrimônio, o nosso legado, é cultural. Como bem lembrou Affonso Ávila, quando da celebração dos cinquenta anos do Iphan: pátria e patrimônio têm a mesma raiz semântica.



SPH Walter Benjamin, que tanto se dedicou a refletir sobre a experiência, como sabemos, diz que “a experiência é a máscara do adulto”. Seus textos, todavia, são desmascaradores de adultos gestores de cultura e seus padrinhos e madrinhas.


ESR Na verdade, quis, na medida do possível, que meus textos refletissem o momento, a sociedade, a politica e, particularmente, os assuntos que afetam a área da Cultura, no campo da administração pública, seus sucessos, insucessos, êxitos e fracassos, instigando reflexões, debates a respeito dos percalços, equívocos, impropriedades, despreparos e compadrio, além da inveja e da incompetência que grassam nas gestões do setor. Gente boa de bico e péssima de serviço, destruidora de legados, incapazes de deixar algo útil e sólido após suas passagens, às vezes, recorrentes, pelo setor público, “zeligs” que se apresentam a cada posse de uma nova administração, à direita ou à esquerda. Esses parasitas que preferem os salões mofados de certa sociedade outrora poderosa, mas há muito decadente, rancorosa e mesquinha, são o suprassumo da inércia, da preguiça, da esterilidade, da erudição vazia e balofa de anuários, sem qualquer sentido ou utilidade.



SPH Os textos desses três livros foram escritos no calor da hora e publicados, em sua grande maioria, no Portal Dom Total. O que isso diz sobre sua ideia de cultura? Cultura é algo urgente? Uma questão pública inadiável?


ESR Anteriormente, mesmo que de modo breve, expus o que entendo em termos da importância e do lugar da cultura. A cultura está na ordem do dia, no dia a dia, na vitalidade das ruas, das artes, da sociedade. É tema urgente, de interesse público, que precisa e deve ser considerado por sua magnitude, significado e dimensão. Tive a oportunidade de ter essa coluna, às sextas, no Dom Total, por convite generoso do jornalista Marco Lacerda. Foi a minha trincheira de debate e embate por quase cinco anos, em que a cultura foi matéria prima e destaque!



SPH Impossível não reconhecer na sua trilogia algo de tebano (rsrs), de um “agon” trágico encenado por uma mulher. São textos em voz alta, “dramáticos”. Esse estilo, parodiando o Conde de Buffon, é a mulher Eleonora Santa Rosa? Qual a relação entre o discurso e o gênero sexual nesses textos?


ESR Objetivamente, propositalmente, nenhum. Obviamente, por ser mulher, tenho meu viés e minha sensibilidade, mas não escrevi com o intuito de ser uma voz feminina, no sentido estrito do gênero. Escrevi com a pena de alguém de personalidade e temperamento fortes, uma pessoa aguerrida, sofrida por uma série de vicissitudes, que enfrentou desafios, preconceitos, discriminação, mas absolutamente convencida da importância da luta, da guerrilha, das batalhas em prol da cultura e da arte. Uma voz feminina por certo, mas, antes de tudo, a voz de uma pessoa comprometida com seu tempo e com sua missão de gestora pública, sobretudo.



SPH Em termos jornalísticos, seus textos trazem de volta a inventividade que caracterizou o gesto de Torquato Neto na Coluna Geleia Geral, bem como a escrita de Augusto de Campos n’O anticritico, a de Waly Salomão em Me Segura qu’eu vou dar um troço, mas também escritos de Antonio Risério e Ana C. César. Trata-se de um retorno a um lugar de origem? Da leitora? Da escrita?


ESR A escrita de Affonso Ávila muito me influenciou. A de Ana Cristina menos, pois nunca fui uma leitora dedicada de sua obra. Torquato com certeza, Augusto, Risério e outros poetas e escritores que muito admiro, por certo. Por decisão, por gosto e por dever de ofício tomei a decisão de que a poesia estaria sempre que possível nos meus artigos, no encerramento ou na abertura. Considerava como missão precípua divulgar poemas e extratos de textos de criadores cujas obras são desconhecidas das redes, dos mais jovens e reinserir a poesia na veia, nos vasos, nas artérias da cidade, cotidianamente.



SPH Esse lugar de origem de sua escrita-leitura tem uma trilha sonora que perpassa os textos frequentemente. Pode-se falar numa trilha tropicalista – Caetano, Gil, Tom Zé etc. Como percebe a contribuição do Tropicalismo à cultura brasileira para além do óbvio? A interface com a indústria cultural, por exemplo.


ESR Tanta gente mais sábia e erudita do que eu já falou melhor e com mais propriedade do que poderia escrever agora. Repetiria, em essência, e sem o mesmo brilho, alguns aspectos das análises publicadas em obras antológicas como Balanço daBossa, de Augusto de Campos, ou em textos, artigos e ensaios de Décio Pignatari, José Miguel Wisnik, Gonzalo Aguilar, Celso Favaretto, Ivana Bentes, além do livro do próprio Caetano. A Tropicália foi fundamental para a cultura brasileira e seus frutos fora ou dentro da indústria cultural brotaram, frutificaram e nos alimentaram, conformando a nossa identidade cultural contemporânea.



SPH Por falar em música popular brasileira, um outro tema polêmico relacionado à gestão da cultura no Brasil é o “evento cultural”. Para grande parte dos gestores públicos, cultura é show de música – e “sertaneja” -, é pão e circo. Como vê esta questão?


ESR Com preocupação, porque, de fato, a cultura de eventos no Brasil impera e vai de vento em popa, ao contrário da cultura de infraestrutura, de preservação patrimonial, de formação de público, de iniciativas mais estruturantes e contínuas. Sem dúvida, uma das consequências perniciosas da legislação de incentivo, foi a proliferação de eventos caça-níqueis, de uma profusão de porcarias sonoras, dramatúrgicas, fílmicas e conexos. Não quero parecer preconceituosa, mas assim como há produção de relevância em todos os campos, há muito lixo também. Infelizmente, no entanto, quando se trata de dinheiro público, de renúncia fiscal de dinheiro público, de investimento em entretenimento público, aí o assunto muda de figura, precisa ganhar outra escala e parâmetros. Em períodos eleitorais, sobretudo, principalmente por intermédio de prefeituras, ou melhor, dos prefeitos candidatos, vê-se patrocínio indiscriminado e exorbitante para shows sertanejos de vários portes, com lastro no dinheiro público. Geralmente, pagamento de cachês absurdos e sem qualquer transparência ou informação.



SPH Assim chegamos ao presente político do país: Margareth Menezes no Ministério da Cultura. O que isso significa para além do óbvio (classe, raça, gênero, representatividade etc)? É a segunda vez que Lula escolhe um “pop star” para o Ministério da Cultura.


ESR Ainda estou refletindo a respeito. A situação nacional da Cultura é caótica, de terra arrasada, de destruição de todos os instrumentos, sistemas, institucionalidade, agravada pela falta de recursos, de pessoal, de estrutura, afora centenas de outros problemas. Acho que ela foi extremamente corajosa em aceitar a incumbência, nada fácil ou confortável. Serão anos de luta, de reestruturação, de penúria e de transposição de obstáculos. Fico na torcida para que consiga fazer uma gestão bem sucedida e modelar.



SPH Voltando aos seus livros: são documentos preciosos, lúcidos e honestos sobre um dos piores momentos da administração pública da cultura brasileira ou da cultura brasileira? Qual a diferença entre essas duas dimensões num Estado Democrático de Direito?


ESR Em certa medida, uma coisa está na noutra. Pelo ângulo da administração pública, o desgoverno que acaba de sair foi responsável pela mais tenebrosa e prejudicial gestão, em nível federal, superando em muito a terra arrasada deixada pelo governo Collor. Uma administração rancorosa e despreparada, eivada de absurdos e preconceitos. Imagino que as tristes e patéticas figuras que estiveram à frente do aparato institucional do Estado brasileiro nos últimos quatro anos respondam, judicialmente, pelos seus maus feitos.

Independente desse governo de trevas e travas, a cultura pulsa, a arte vibra, prescindindo do Estado, do governo. Como disse antes, o estrago foi enorme. Já vivemos momentos muito duros, mas talvez não tão duros quanto os de agora. Tivemos a junção da ignorância com o ressentimento, da pobreza de espírito com a virulência, do despreparo com o preconceito, da mediocridade com o servilismo, da simploriedade com a arrogância, um cenário muito hostil e desolador! Terminou agora, espero, e mãos à obra e à reconstrução.



SPH Apesar de toda a crise, da desativação do Ministério da Cultura, da Pandemia e outras mazelas tantas, expressões culturais genuinamente brasileiras mantiveram-se acesas, sobretudo às margens dos grandes centros, nas periferias e no Brasil profundo, no sertão. O que é fato e o que é “fake” na conversa sobre cultura no Brasil? Aliás, em termos de gestão, sua passagem pelo MAR (Museu de Arte do Rio) também é exemplo de resistência “na” cultura em crise. Fale-nos a respeito.


ESR Em relação ao MAR, gostaria de me estender um pouco mais pelo fato de ter assumido a direção executiva da instituição em novembro de 2017, em momento muito difícil, interno e externamente, de crise e obstáculos.


Quando eu entrei no MAR, o museu vinha de uma situação muito delicada, de um trauma em função da Mostra do Queermuseu, que estava pautada para acontecer no MAR e o prefeito Crivella, de triste memória, vetou e gravou um vídeo de larga divulgação, dizendo que só se fosse para o fundo do mar. Eu ainda não estava na direção executiva do Museu, entraria meses depois, mas num clima de abalo institucional com a própria organização social que era a gestora do espaço, e com o diretor artístico Evandro Salles, que muitos achavam que deveria ter apresentado seu pedido de demissão em função da censura política. Então o clima interno do Museu, no que tange a esse episódio, não era nada pacificado e o veto acarretou muitas fissuras na equipe e na instituição. Me parece que a questão da exposição, polêmica por natureza, não foi bem conduzida. E, ao mesmo tempo, para complicar um pouco mais o quadro, a então secretária municipal de Cultura do Rio, Nilcemar Nogueira, ficou aborrecidíssima com o Museu porque foi envolvida no meio de uma coisa que ela nem sabia e com graves consequências com sua relação com o edil, já que o MAR é um equipamento da Prefeitura. Quando eu assumi, encontrei esse esgarçamento nas relações do MAR com a Secretaria, além de um clima interno ruim e de enorme desarticulação.


A minha primeira providência foi tentar recompor essas relações institucionais, oficiais, mas tempos depois eu enfrentaria um problema complicadíssimo, que aconteceu com a mostra Arte, Democracia e Utopia, curada por uma pessoa extraordinária, um profissional seríssimo, que é o Moacir dos Anjos. Uma exposição intitulada Arte, Democracia e Utopia obviamente teria obras selecionadas que tocariam em questões indigestas, críticas, graves da história brasileira, em especial no momento que nós estávamos atravessando pré-Bolsonaro. Portanto, com trabalhos fortes, questionadores, cáusticos, irônicos. Sabia que essa barra poderia pesar e pesou. Fui instada, por três vezes, a fechar e depois a tirar trabalhos da exposição. Não topei e segurei a onda. Em função disso, fui chamada à Prefeitura e participei de reunião duríssima a esse respeito, mas não retiramos nenhuma obra!


Enfrentei também outros problemas como de uma vereadora do partido do Bolsonaro, do nordeste, que foi visitar o MAR, na véspera da eleição, e gravou um vídeo com o celular dela, dizendo que estava de férias no Rio e que resolveu ir ao museu, e aí ela entra com uma câmera no Arte, Democracia e Utopia e começa a mostrar as obras, falando: “olha o que que esses marxistas culturais estão fazendo, olha como eles estão destruindo as nossas famílias, olha o que que eles estão ensinando para as nossas crianças” e mostra um determinado trabalho de um jovem talentoso artista, e diz: “olha, o que que esse artista está pregando, o que esse museu está pregando”, e desceu o malho, uma sandice imensa de grande hostilidade. Essa vereadora tinha um blog em Fortaleza, salvo engano, com 9.000 seguidores, achei até que era muita gente seguindo essa criatura e aí nossa assessoria de comunicação constatou que o blog dela alimentava um site denominado Amigos da Direita, e aí eu fiquei muito impressionada, porque eu nem sabia disso, que havia, naquela época, um domínio com esse nome, com mais de 500 mil seguidores! E, por intermédio desse blog e do site, começaram a pressionar o prefeito para fechar a exposição, divulgaram notas e matérias fakes contra o MAR, contra a Secretária Nilcemar. Fui chamada já com uma ordem para tirar uma obra que eles consideravam ofensiva. O que eu disse à Secretária: “olha, você sabe tão bem quanto e eu, e eu já fui uma Secretária de Estado, que se eu tirar a primeira, eles vão pedir a segunda, a terceira, a quarta. Portanto, eu não vou tirar nenhuma.” Disse-lhe: “você é uma pessoa que vem da área da cultura, você vai querer encerrar a sua carreira dizendo que você praticou censura? “ Vai ser um escândalo nacional e internacional, já que o Bolsonaro acabou de ser eleito, e que, portanto, se a exposição fosse fechada haveria ondas de protesto”. Então, em suma, o que falei com ela: “primeiro, eu não vou tirar. Segundo, eu assumo a responsabilidade, eu sou a diretora do Museu, e terceiro, se você tiver que me pedir isso, tem de ser por escrito e te adianto que eu vou negar por escrito.” Posteriormente, narrei toda a situação ao diretor artístico do MAR e ao Moacir do Anjos, todos concordaram: nós não vamos tirar a obra, ou vai sair a exposição inteira ou não vamos tirar obra nenhuma, porque não vamos deformar a exposição. E claro que a partir dessa visita da vereadora vários outros, não muitos, mas alguns mais ruidosos foram ao museu. Passamos a monitorar de uma maneira mais cuidadosa a exposição, de modo que não fossemos surpreendidos com algum ataque ou qualquer coisa do gênero.


Uma outra ação que provocou grande repercussão foi a confecção e instalação da bandeira criada pelo Marcos Chaves, a partir do convite que lhe fiz. Criei na cúpula do prédio antigo do Museu, do Palacete, um mastro (na verdade, fiz uma obra que pudesse reconectar, de fato, não cenicamente, o mastro para hasteamento de bandeiras artísticas. Só que, nesse caso de uma bandeira como obra de arte! Queria demarcar, espacialmente, na Praça Mauá, o território de liberdade criativa do MAR, a primeira artista convidada foi Adriana Varejão, que criou um bandeira belíssima e o segundo artista que pensei e chamei foi Marcos Chaves.


A ideia de Marcos, com a qual concordei e viabilizei de pronto, era uma bandeira verde e rosa, com a inscrição frontal VAI PASSAR, e, no verso, um sinal interrogação. A bandeira de Marcos foi um dos maiores sucessos do MAR e um dos mais bem sucedidos e trabalhos do artista, tendo permanecido hasteada por um ano. Posteriormente, foi reproduzida em tamanho menor para uma exposição em Nova York.


Transformou-se num símbolo de resistência artística ao governo Bolsonaro, sinal de esperança de dias melhores!



SPH Um dos grandes paradoxos da democracia no Brasil é o desaparecimento gradativo do debate sobre cultura, que se converteu mais em conversa – e tantas vezes conversa de políticos espertalhões. Como vê esta questão?


ESR Creio já ter abordado essa questão nas minhas respostas anteriores. Em síntese, muito papo e pouca prática, muito improviso e pouco conhecimento de causa, muito conversa fiada e pouca competência.



SPH Enfim, voltemos às nossas Minas sem ouro e desertos Gerais... Como tem visto a gestão “nova” da cultura por lá? O “Estado mínimo” consegue maximizar o cuidado necessário, por exemplo, com o patrimônio material edificado?


ESR Vejo com muita apreensão e melancolia a somatória dos novos velhos equívocos. A questão do patrimônio é seríssima em Minas, um dos maiores desafios, agora agravado pela posição de omissão e conivência do Estado com a mineração em áreas tombadas e protegidas. Os trágicos acontecimentos em Mariana e Brumadinho, e, mais recentemente, a questão da Serra do Curral compõem um cenário sombrio e desalentador, que demanda a mobilização e a vigilância da sociedade civil, das entidades comprometidas com as causas do patrimônio cultural e ambiental.



SPH Uma questão premente em Minas é, sem dúvida, de ordem antropocênica, os desastres ambientais processados e iminentes. O verso de Drummond está soando cada vez mais real: “Minas não há mais”. Como vê a relação entre cultura e ambiente nas Minas?


ESR De modo complexo e muito desafiador, merecendo uma entrevista à parte para que possa abordá-la de modo articulado e aprofundado. Em resumo, ligação intrínseca, visceral, presente na obra de inúmeros criadores. Nesse sentido, retomando a sua citação do verso doloroso e magnífico de Drummond, citaria o excelente livro de José Miguel Wisnik, Maquinação do Mundo: Drummonde a Mineração, leitura atualíssima e obrigatória, assim como toda a obra poética de CDA.



SPH Referência do urbanismo moderno no Brasil, desde seu fundamento francês de Cidade-jardim até o complexo da Pampulha, BH perde cada vez mais seu horizonte identitário, seus traços culturais específicos, com um notável sacrifício da memória coletiva. Exagero? Se não, o que há de genérico e de próprio nesse estágio da cidade? Como vê a relação entre cultura e urbanismo?


ESR Provocativa e relevantíssima a sua indagação. De fato, Belo Horizonte sofreu um processo feroz de destruição de seus marcos, de seus símbolos, da história de personagens referenciais assim como uma espécie de apagão da memória coletiva daqueles que foram desterrados do seu lugar de origem, dos que aqui chegaram e construíram a cidade planejada por homens brancos e positivistas, de atores anônimos mas não menos importantes, personagens de fatos e acontecimentos que nos moldaram. Muito precioso e essencial o trabalho desenvolvido, em BH, pelo padre Mauro Luiz da Silva, diretor do Muquifu – Museu dos Quilombos e Favelas, coordenador do projeto NegriCidade. Ambas as iniciativas buscam dar vez, voz e rosto aos historicamente banidos, excluídos e desclassificados. Padre Mauro empreende um trabalho marcado pela diversidade étnica, cultural, de resgate da memória dos povos que constituíram a cidade, das memórias negras e indígenas soterradas debaixo das ruas da capital. Recentemente, inaugurou a placa indicativa do Largo do Rosário, contando e recontando a história da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do antigo Curral del Rey. Nesse diapasão, há, atualmente, outras iniciativas de relevância partindo das universidades, de museus públicos e privados, de organizações não governamentais e associações como o Museu da Pessoa, que há anos realiza ações referenciais no campo da história oral.


Quanto à relação entre cultura e urbanismo, intrínseca, mereceria também, por seu turno e envergadura, entrevista à parte. Paisagem cultural, dimensão territorial da cultura, patrimônio cultural e memória urbana, a cidade como lugar da cultura, fenômenos culturais populares-urbanos, urbanismo a serviço da cultura e da pessoas, o papel da cultura na formação das cidades, os equipamentos contemporâneos culturais e urbanos, enfim, uma miríade de assuntos que perpassam essa estreita e indissociável relação, que demandaria um depoimento à parte.



SPH Como Milton Santos tão bem elucidou, os territórios são produzidos segundo necessidades dos indivíduos, e por isso mesmo exibem uma dimensão ontológica, pertinente às subjetividades, ao mundo dos sujeitos. É possível o poder público desenvolver políticas culturais que não subordinem as subjetividades a interesses de gestores políticos momentâneos do Estado? Como vê a relação entre o Estado e os Diferentes, os incapturáveis, os estranhos?


ESR Pergunta complexa, assunto tortuoso e desafiador. Difícil formular uma resposta à altura pela multiplicidade de abordagens. Esse tema já me “assaltou” muito. A relação é quase sempre desbalanceada, opressora e excludente. Geralmente, o Estado não acolhe bem os estranhos e os incapturáveis, até por sua própria natureza fugidia e contestadora.


SPH Termino com a recordação de um Estranho estranhíssimo: Itamar Assumpção. Na abertura do primeiro volume do seu “PretoBras” (1998), ele fez um dos mais sensíveis exercícios de crítica da cultura do nosso tempo, relacionando toda a decadência cultural brasileira (representada pela música de massa, uma decadência da cultura urbana, portanto) à ditadura, que, pela via do consenso, da anulação da Crítica, continuou depois de 1985: “porcaria na cultura / tanto bate até que fura”. Como, da perspectiva da dinâmica cultural, chegamos ao fascismo bolsonarista? O que espera do Governo Lula 2?


ESR Assunto que tem sido vivamente debatido por especialistas, sociólogos, professores, antropólogos, cientistas políticos, jornalistas, dentre outros. Gente gabaritadíssima em busca de respostas necessárias ao que se abateu sobre nós nos últimos quatro anos, mas que, na verdade, já repousava em berço esplêndido e silencioso há muito e que emergiu, sem vergonha, misericórdia, dó ou piedade, com enorme carga de violência, perversidade, preconceito e crueldade sem limites. Muito se escreverá e se debaterá sobre as razões e fatos que nos levaram a esse período melancólico, perpassado por barbaridades de toda a espécie, sendo a mais letal delas, o número de mortos pela Covid-19.

Por fim, espero do governo Lula humanidade, generosidade, fraternidade, distribuição de renda, justiça social, cultura, educação, saúde e habitação na cesta básica! Que venham os novos tempos e que consigamos cicatrizar as feridas e as chagas abertas pela divisão provocada pelo ódio, pela mentira, pela brutalidade e pela discriminação. Nesse sentido, a cultura também será fundamental, uma espécie de amálgama e alma da nação. Assim como a poesia:


“libertas quae sera tamen

liberto é o ser que come

livre terra ao sertanejo

livro aberto será a trama

LIBERTO QUE SERÁ O HOMEM”


(Affonso Ávila – Código de Minas - fragmento do poema Frases Feitas)




Vídeos

Registro do hasteamento da bandeira de Marcos Chaves no MAR, em 2018, a convite de Eleonora.




Eleonora em registro videográfico da exposição O Rio do Samba, que reposicionou o MAR e foi um dos maiores sucessos de público e crítica da instituição.



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