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História de um lugar: entrevista com Ana Teresa Fernandez por Anelito de Oliveira

Atualizado: 10 de nov. de 2021


A mexicana Ana Teresa Fernandez realiza seu trabalho artístico num diálogo frontal com o tempo presente. Seu foco é o território e sua ação consiste num tensionamento da noção de fronteira. Motiva-a a compreensão de que a globalização impulsionada pelo Neoliberalismo desde o início dos anos 1990 não unificou os povos diferentes, ao contrário do que muitos dizem. O mundo permanece dividido, permanece a xenofobia de castas europeias, estadunidenses e asiáticas em relação aos estrangeiros, refugiados, imigrantes, sempre considerados bárbaras ameaças à civilização.


Nascida na cidade de Tampico, no Estado de Tamaulipas, no litoral do Golfo do México, em 1980 e radicada em São Francisco (EUA) há vários anos, Fernandez foi uma das participantes da exposição coletiva de artistas mexicanos realizada em Berlim em 2014 em homenagem aos 25 anos da queda do muro que separava a Alemanha em duas, a Ocidental e a Oriental, a Democrática e a Comunista. Expôs ali sua vídeo-instalação intitulada em castelhano e inglês “Borrando la frontera – Erasing the border”, com a qual constrói uma metáfora subversiva do apagamento da fronteira entre México e EUA. A cena tem seu lugar geográfico no limite Tijuana-San Diego.


Obra e artista não se separam nessa criadora que, obviamente, não padece dos preconceitos secularizados no campo das artes, que separam arte e não-arte. A necessidade de “entrar” no trabalho, de participar da arte, tem levado Fernandez a inúmeros lugares, como o Brasil. Aqui esteve ainda em 2014 realizando, juntamente com o paulistano Coletivo PI, uma intervenção performática no bairro de Itatinga, em Campinas (SP). A obra ali consistiu em organizar uma caminhada de profissionais do sexo, que são em grande número naquele território, todas de vestido e salto alto, em defesa sutilmente crítica da dignidade humana, contra as tantas formas de violência contra as mulheres que exercem a mais antiga das profissões.


Tomei conhecimento do trabalho de Ana Teresa Fernandez ao acaso quando pesquisava na internet artistas plásticos contemporâneos de países latino-americanos, africanos e asiáticos. Tentava encontrar, especialmente, coisas relacionadas a território, urbanidade, cidade. Surpreendi-me imensamente com tudo que vi da artista mexicana, a começar por “Borrando la frontera”. Estabeleci um contato com ela via Facebook no início de 2014, parei várias coisas urgentes que fazia e realizei essa entrevista com ela por escrito em inglês (língua que ela prefere), um conteúdo bastante esclarecedor sobre seu processo criativo e questões afins.


Assim que concluí o trabalho de tradução e primeira edição desse material, fiz contato com a Editora da Chão de Feira, Carolina Fenatti, que tem realizado um trabalho brilhante na contramão editorial. Pensava em contribuir para a difusão da voz da artista – e para o interesse pelo seu trabalho –no Brasil, especialmente em razão do barroco marino da sua poética, um gesto transbordante que encontra parâmetro, por exemplo, na obra de uma Adriana Varejão. Infelizmente, não foi possível a publicação e esse material permaneceu inédito por sete anos! Talvez à espera de uma habitação adequada, encantada, esta Sphera.



"Apagando a fronteira" (Borrando la frontera - Erasing the border), trabalho com o qual você participou da mostra de artistas mexicanos na Alemanha em homenagem aos 25 anos da queda do muro de Berlim, denuncia que ainda estamos num mundo dividido. A ambientação desse seu trabalho na fronteira Tijuana-San Diego é metáfora de uma situação global? O que a levou a esse ponto de vista?

Estamos realmente num mundo dividido, com fronteiras culturais, intelectuais, de classe, socioeconômicas e de crenças espirituais-religiosas, tudo isso que nos faz ter medo e nos investe de um senso de violência e raiva contra nossos vizinhos. O medo frequentemente se transforma em violência e abuso, em vez de compreensão e confiança. “Apagando a fronteira” é uma oferenda de paz, uma insistência em derrubar um muro, então, para que possamos ver mais claramente quem cada outro é. Às vezes, não entendemos o que não podemos ver. Trata-se de uma metáfora do desvendamento de um muro.



A vídeo-instalação "Apagando a fronteira" é expressiva de uma relação entre arte e território em seu processo criativo, um traço que o coloca na fronteira de várias formas artísticas, como o cinema e a arquitetura, bem como campos de saber, como a geografia, a história e a política. Poderia nos falar um pouco sobre o seu sentido de arte?

Meu trabalho é muitas vezes um lugar específico. É impulsionado pela história de um lugar, seu trauma, sua genealogia. Tenta reconciliar tensões através de ações – a performance. Em “Apagando a fronteira”, faço aproximar a obra do lugar de um artista, um arquiteto e um ativista porque todos esses campos têm influenciado meu trabalho. Vivo diariamente a experiência das repercussões das marés políticas da imigração, como começaram a separar famílias, as tensões que criaram no trabalho, nas escolas, no cotidiano etc. Sou sobrinha-neta de um arquiteto, cresci indo para canteiros de obras, aprendendo os meandros dos edifícios, o processo e o “porquê” dos lugares construídos. Então, tenho um desejo agudo de querer saber o “porquê” das coisas expostas ao público. E, por último, minha formação artística se caracteriza por um questionamento contínuo de normas que nos constrangem, que limitam nosso modo de ser e pensar. Gosto de cultivar as perguntas: por que não uma maneira diferente? Que tal essa outra realidade?



A Sra. se dirigiu aos Estados Unidos inicialmente para estudar artes, mas acabou elegendo San Diego como sua casa, seguindo, portanto, o caminho de um grande número de mexicanos. O que a levou a essa decisão, além da questão profissional propriamente dita? Como é ser mexicano, latino, nos EUA nestes tempos de Barack Obama [o então presidente dos EUA, 2009 a 2017]?

Vivo e trabalho em São Francisco (Califórnia) porque é uma cidade de vanguarda intelectual que me inspira constantemente a ir além de sentimentos confortáveis. É uma cidade que oferece muitas oportunidades de crescer e criar e pensar diferentemente. Mas é complicado ser um mexicano neste tempo de Obama. Tenho dupla nacionalidade e dois passaportes, mas, infelizmente, houve mais deportações durante esta administração que em períodos anteriores. Mais famílias foram separadas que antes, e isso provoca um trauma na sociedade.



No seu célebre ensaio de 1950, El labirinto de la soledad (O labirinto da solidão), Octavio Paz diz que, para um mexicano, basta transpor a fronteira e chegar aos Estados Unidos para que se lhe apresente, como questão "verdadeiramente vital", o problema da identidade. Foi assim com a Sra.? Como a questão identitária entra na sua obra?

Acho que quando cruzamos qualquer fronteira temos a oportunidade de olhar para trás e ver de onde viemos de uma perspectiva diferente. Isso não resolve nada, apenas investe a pessoa de uma perspectiva mais ampla, que é o primeiro passo para a solução de conflitos: ver o outro lado da pessoa.



A interface entre arte e cidade em seu trabalho, a exploração de temas e formas afins do grande público, traz-nos à lembrança o "Muralismo" dos modernistas mexicanos. Como é sua relação com essa tradição?

Sou incrivelmente influenciada pelo Muralismo e obras de muitos grandes artistas, infelizmente homens, em sua maioria, devido a época, do México. Meu trabalho é monumental e público, mas é bastante minimalista. “Apagando a fronteira” é uma peça calma, contemplativa, que cria presença através da ausência. Este trabalho não é figurativo, como o de Diego Rivera ou Siqueiros, mas alude ao corpo.



O mundo da mulher é explorado no seu trabalho de modo bastante inquietante, inusitado, com ênfase em objetos - um tamanco - ou na elegância de um corpo bem vestido, como na série "Annunciation". Poderia nos falar um pouco sobre suas preocupações, neste caso?

Talvez eu seja mais o anjo da anunciação que Maria. Em nenhum momento estou surpresa ou inativa. O tempo todo sei o que preciso fazer e vou às últimas consequências, incluindo a interferência da polícia.


Ainda sobre o mundo da mulher: a Sra. esteve no Brasil ano passado, desenvolvendo um trabalho com as profissionais do sexo de Itatinga, na cidade de Campinas. Poderia nos falar sobre esse trabalho e, em especial, sobre como vê a relação entre arte e política hoje?

Minha experiência em Itatinga foi incrivelmente emocionante, as mulheres dali são muito fortes. Foi uma experiência incrível que nos ligou a um projeto que derrubou muros intelectuais e psicológicos entre nós e nos unificou para entender melhor o outro. E acho que isso é o que a arte poderosa faz: quebra estereótipos relacionados ao outro.



Assim como a trouxe ao Brasil, seu trabalho a tem levado a outros tantos lugares do mundo. Parece-me razoável dizer que o espaço geográfico é um elemento atuante na sua obra. Como fica a questão da nacionalidade, da sua nacionalidade, em face dessas deambulações pelo mundo?

A arte tornou-se meu passaporte, minha lente através da qual vejo o mundo. A arte me permite fluir melhor não só entre fronteiras, mas entre as divisas que a sociedade criou. Sou muito mexicana, mas também tenho em mim pedaços da África do Sul, pedaços do Haiti, pedaços do Brasil. O fato de ter visto e sentido o cheiro desses lugares e criado ali fez-me pertencer a eles ainda que momentaneamente.



Pelas suas postagens recentes no Facebook, a Sra. tem estado bastante preocupada com a situação política no México, e com o narcotráfico, em especial. Fale-nos um pouco sobre essa situação e sobre o que isso tem significado para as artes.

A atual situação política do México é um pesadelo. Nosso presidente [o então Enrique Peña Nieto, 2012 a 2018] inteligente é muito ausente. Não é apenas vergonhoso que ele esteja nos representando, mas assustador. Despencaram-se os padrões de abuso de poder que resultam em violência em massa contra pessoas inocentes. Há pouquíssimo respeito pela humanidade no México neste momento. A vida não é considerada preciosa. Privilégio é.



Finalmente, gostaria que nos falasse sobre o que o reconhecimento alcançado mais recentemente mundo afora pela obra de Frida Kahlo significou ou tem significado para artistas mexicanas, mulheres, como a Sra.

Acho fenomenal que uma mulher, artista mexicana, tenha chegado a tanto reconhecimento e validação. É esplendoroso, mas é bom também entender que isso não significa que todas as mulheres artistas mexicanas devam gostar de parecer com ela. Se não tivermos cuidado, pode ser sufocante.



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